sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A insustentável leveza do ser - Milan Kundera, 1983


Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. P. 14

O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma série inumerável de mulheres), mas pelo desejo de sono compartilhado (este desejo diz respeito a uma só mulher). P. 21

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento. P. 39

Acreditamos todos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa imponderável; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida. Convencemo-nos de que Beethoven em pessoa, triste e de cabelos revoltos, toca seu “Es muss sein!” para nosso grande amor. P. 40

Num passado remoto, o homem deve ter ouvido com assombro o som de batidas regulares que vinham do fundo de seu peito, sem conseguir saber o que seria aquilo. Não podia identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida. O corpo era uma gaiola e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer que olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se; essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma.
Hoje, é claro, o corpo deixou de ser um mistério, sabemos que o que bate no peito é o coração, o nariz nada mais é que a extremidade de um cano que avança para poder levar oxigênio aos pulmões. O rosto nada mais é que o painel onde terminam todos os mecanismos físicos: a digestão, a visão, a audição, a respiração, a reflexão.
Depois que o homem aprendeu a dar nome a todas as partes do seu corpo, esse corpo o inquieta menos. Atualmente cada um de nós sabe que a alma nada mais é que a atividade da matéria cinzenta do cérebro. A dualidade da alma e do corpo estava dissimulada por termos científicos; hoje, isso é um preconceito fora de moda que nos faz rir.
Mas basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça. P. 46

E ainda uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Nesse café ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta. Contra o mundo de grosseria que a cercava, não tinha efetivamente senão uma arma: os livros que pedia emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles não só lhe ofereciam a possibilidade de uma evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um significado como objetos: gostava de passear na rua com um livro debaixo do braço. Eram para ela aquilo que uma elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam dos outros. P.53

Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem o fundo de uma xícara o desenho deixado pela borra de café. P. 54

O acaso tem suas mágicas, a necessidade não. Pra que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco. P. 55

O homem inconscientemente compõe sua vida segundo as leis da beleza mesmo nos instantes do mais profundo desespero. P. 58

Aquele que deseja continuamente “elevar-se” deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados. P. 65

A invasão russa, repitamos, não foi somente uma tragédia, foi também uma festa do ódio repleta de uma estranha euforia que hoje parece inexplicável. P. 73

Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa própria fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com nossa própria fraqueza, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em pela rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão. P. 81-82

Aquele que se entrega ao outro como um prisioneiro de guerra deve antes entregar todas as armas. Vendo-se sem defesa, não pode deixar de se indagar quando virá o golpe. Posso, portanto, dizer que o amor era para Franz a espera contínua do golpe que iria atingi-lo. P. 89

Esse olhar o incomodava pois não podia compreendê-lo. Entre todos os amantes estabelecem-se rapidamente certas regras de jogo, das quais eles não têm consciência, mas que têm força de lei, e que não devem ser transgredidas. O olhar que ela acabava de lançar sobre ele escapava a essas regras, não tinha nada em comum com os olhares e os gestos que precediam habitualmente a aproximação deles. Não havia nesse olhar nem provocação, nem sedução, mas uma espécie de interrogação. Só que Franz não tinha nenhuma idéia da pergunta que esse olhar lhe fazia. P. 90

Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem fazer juntas a composição e trocar os temas, mas quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras musicais estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo de diferente na partitura do outro. P. 94

Até aqui, não tinha consciência disso, o que é compreensível: a meta que perseguimos é sempre velada. Uma moça que deseja um marido deseja uma coisa que lhe é totalmente desconhecida. O jovem que corre atrás da glória não tem nenhuma idéia do que seja a glória. Aquilo que dá sentido à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido. P. 127-128


MULHER:

Ser mulher é para Sabina uma condição que ela não escolheu. Aquilo que não é conseqüência de uma escolha não pode ser considerado como mérito ou como fracasso. Diante de uma condição que nos é imposta, é preciso, pensa Sabina, encontrar a atitude certa. Parecia-lhe tão absurdo insurgir-se contra o fato de ter nascido mulher quanto glorificar-se disso. P.95
  
Para ele, a música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas e abre-lhe no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar-se. P. 98

A feiúra no sentido absoluto começou a manifestar-se pela onipresença da feiúra acústica: os automóveis, as motos, as guitarras elétricas, as britadeiras, os alto-falantes, as sirenes. A onipresença da feiúra visual não demoraria a aparecer. P. 99

Para Sabina, viver significa ver. A visão é ilimitada por uma dupla fronteira: a luz intensa que cega e a escuridão total. Talvez seja daí que vem sua repugnância por todo extremismo. Os extremos delimitam a fronteira para além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, em arte como em política, é um desejo de morte disfarçado. P. 100

Nos países comunistas, a inspeção e o controle dos cidadãos são atividades sociais essenciais e permanentes. Para que um pintor consiga permissão para expor, para que um simples cidadão consiga um visto para passar férias à beira-mar, para que um jogador de futebol seja aceito no time nacional, é preciso em primeiro lugar que se reúnam todas as espécies de relatórios e de certificados que lhes digam respeito (do porteiro, dos colegas de trabalho, da polícia, da célula do partido, do comitê da empresa em que trabalha) e esses atestados são, em seguida, completados, revistos, avaliados, recapitulados por funcionários especialmente destinados a essa tarefa. Aquilo que é mencionado nesses atestados não tem nada a ver com a aptidão do cidadão para pintar, jogar futebol, ou com seu estado de saúde que pudesse estar justificando uma temporada à beira-mar. Só importa uma coisa, aquilo que se chama “o perfil político do cidadão” (aquilo que o cidadão diz, pensa, como ele se comporta, se participa ou não dos desfiles do 1º de maio). Tendo em vista que tudo (a vida cotidiana, a promoção e as férias) depende da maneira como a pessoa é julgada, todo mundo é obrigado (para jogar futebol no time oficial, para fazer uma exposição ou passar férias à beira-mar) a se comportar de maneira a ser bem julgado. P. 101-102

Ficou triste, mas, uma vez na calçada, pensou: no fundo, por que deveria encontrar-se com os tchecos? O que tinha em comum com eles? Uma paisagem? Se alguém perguntasse o que a Boêmia evocava para eles, essa pergunta faria surgir diante de seus olhos imagens disparatadas, desprovidas de unidade.
Seria então a cultura? Mas o que é isso? A música? Dvorak e Janacek? Sim, mas suponhamos que um tcheco não goste de música? Num só golpe, a identidade tcheca não passa de vento.
Seriam os grandes homens? Jan Hus? Aquelas pessoas jamais tinham lido uma linha de seus livros. A única coisa que podiam compreender unanimemente eras as chamas, a glória da cinza em que se transformara, de modo que a essência da alma tcheca, pensava Sabina, era para eles apenas um pouco de cinza, nada mais. Essas pessoas só tinham em comum sua derrota e as reclamações que se faziam mutuamente. P. 102-103

Ela quis lhes dizer que o comunismo, o fascismo, todas as ocupações e todas as invasões simulam um mal fundamental e universal; em sua maneira de entender, a imagem desse mal era o cortejo de pessoas desfilando com os braços para cima, gritando as mesmas sílabas em uníssono. Mas sabia que não ia conseguir se fazer entender. P. 106

Sabina disse: - A beleza involuntária. É isso mesmo. Poder-se-ia dizer também: a beleza por engano. Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza. P. 107

Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para desenrolar seus pergaminhos é preciso que eles encontrem temas de dissertação. Existe um número infinito de temas pois pode-se falar sobre tudo e sobre nada. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos que são mais tristes do que os cemitérios porque neles não vamos nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de sinais, na loucura da quantidade. Creia-me: um só livro proibido em seu antigo país significa muito mais do que os milhares de vocábulos cuspidos pelas nossas universidades. P. 108-109


VIVER DENTRO DA VERDADE

É uma fórmula que Kafka usou num diário ou numa carta. Franz não se lembrava bem. Estava seduzido por essa fórmula. O que era viver dentro da verdade? Uma definição negativa era fácil: era não mentir, não se esconder, não dissimular nada. Depois que conhecera Sabina vivia na mentira. Conversava com sua mulher sobre congressos em Amsterdã, conferências em Madri que jamais haviam acontecido, tinha medo de passear com Sabina nas ruas de Genebra. Acha divertido mentir e esconder-se, já que nunca o fizera antes. Sente o prazer de um primeiro aluno da turma que decide um dia, finalmente, fazer gazeta.
Para Sabina, viver dentro da verdade, não mentir nem para si nem para os outros, só seria possível se vivêssemos sem público. Havendo uma única testemunha de nossos atos, adaptamo-nos de um jeito ou de outro aos olhos que nos observam, e nada mais do que fazemos é verdadeiro. Ter um público, pensar no público, é viver na mentira. Sabina despreza a literatura em que o autor revela toda a sua intimidade, e também a de seus amigos. Quem perde a sua própria intimidade perde tudo. Pensa Sabina. E quem a ela renuncia conscientemente é um monstro. Por isso Sabina não sofre por ter de esconder seu amor. Ao contrário, para ela está é a única forma de viver “dentro da verdade”. P. 118

Então qual a relação entre Tereza e seu corpo? Teria seu corpo direito de chamar-se Tereza? Se não tinha, o que significava este nome? Apenas uma coisa incorpórea, intangível?
(São sempre as mesmas perguntas que desde a infância passam pela cabeça de Tereza. As perguntas realmente sérias são aquelas – e somente aquelas – que uma criança pode formular. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não existe resposta. Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência). P. 142-143

O que é flerte? Pode-se dizer que é um comportamento que deve dar a entender que uma aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser entendida como uma certeza. Em outras palavras, o flerte é um promessa de coito, mas uma promessa sem garantia. P. 145-146

Quando levantou os olhos e viu o rosto dele, compreendeu que jamais aceitaria que aquele corpo, onde a alma gravara sua marca, pudesse estar nos braços de alguém que ela não conhecia e que não queria conhecer. P. 158

... e os amores são como os impérios: desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela. P. 172

Aqueles que pensam que os regimes comunistas da Europa Central são obra exclusiva de criminosos deixam na sombra uma verdade fundamental: os regimes criminosos não foram feitos por criminosos mas por entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso. Defendiam corajosamente esse caminho, executando, por isso, centenas de pessoas. Mais tarde ficou claro como o dia que o paraíso não existia, e que, portanto, os entusiastas eram assassinos.
Assim todos acusavam os comunistas: vocês são os responsáveis pelas desgraças do país (que está pobre e arruinado), pela perda de sua independência (caiu sob a tutela dos russos), pelos assassinatos judiciários!
Os acusados respondiam: não sabíamos! Fomos enganados! Acreditávamos! Somos inocentes do fundo do coração!
O debate conduzia a essa pergunta: seria verdade que não sabiam? Ou apenas fingiam não saber?
Tomas acompanhava esse debate (como dez milhões de tchecos), e acreditava que haveria certamente entre os comunistas alguns que não eram assim tão ignorantes (deviam pelo menos ter ouvido falar dos horrores que tinham acontecido, e que não paravam de acontecer na Rússia pós-revolucionária). Mas é provável que a maior parte deles não soubesse de nada.
E ele dizia para si mesmo que o problema fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda a responsabilidade somente pelo fato de ser um imbecil?
Vamos admitir que o procurador tcheco que pedia no começo dos anos 50 a pena de morte para um inocente tivesse sido enganado pela polícia secreta russa e pelo governo do seu país. Mas agora que sabemos que as acusações eram absurdas, e que os condenados eram inocentes, como podemos admitir que o mesmo procurador defenda sua pureza de alma batendo no peito: minha consciência está limpa, eu não sabia, eu acreditei! Não é precisamente no seu: “Eu não sabia! Eu acredite!” que reside sua falta irreparável?
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas.
Tomas ouvia o grito dos comunistas que defendiam sua pureza de alma, e dizia a si próprio: por causa de sua inconsciência o país talvez tenha perdido séculos de liberdade. Mesmo assim vocês gritam que se sentem inocentes? Como podem ainda olhar em torno de si mesmos? Como?! Não estão espantados? Vocês não enxergam? Se tivessem olhos deveriam furá-los e deixar Tebas! P. 178-179

Tomas compreendeu uma coisa estranha. Todo mundo lhe sorria, todo mundo queria que ele escrevesse a retratação, retratando-se faria todo mundo feliz. Uns ficavam contentes porque a proliferação da covardia banalizava suas próprias condutas, devolvendo-lhes a honra perdida. Outros estavam acostumados a ver em sua honra um privilégio particular, do qual não queriam abrir mão. Também nutriam um amor secreto pelos covardes. Sem eles, sua coragem seria um esforço banal e inútil – ninguém os admiraria. P. 184

Como a adulação nos desarma! P. 186-187

Já havia compreendido que as pessoas se alegravam tanto com a humilhação moral do próximo, que jamais abriam mão desse prazer ouvindo explicações. P. 193

Se fosse possível classificar as pessoas por categorias, seria certamente a partir desses desejos profundos que as conduzem para esta ou aquela atividade que exercem durante a vida inteira. Um francês é diferente do outro. Mas todos os atores do mundo se parecem... P. 194

Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado do outro. P. 200

Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. P. 209

Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial. P. 221

Os personagens do meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além da qual termina o meu eu). P. 222

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do “ES muss sein!”.
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo, como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha. P. 238

No reinado do kitsch totalitário, todas as respostas são dadas de antemão e excluem qualquer pergunta nova. Vai daí que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás. P. 256

Os movimentos políticos não se baseiam em atitudes racionais, mas em representações, em imagens, em palavras, em arquétipos, cujo conjunto constitui esse ou aquele kitsch político.
A idéia da Grande Marcha, com a qual Franz gosta de se embriagar, é o Kitsch político que une as pessoas de esquerda de todos os tempos e de todas as tendências. A Grande Marcha é essa soberba caminhada para a frente, essa caminhada em direção à fraternidade, à igualdade, à justiça, à felicidade, e mais longe ainda, a despeito de todos os obstáculos, pois os obstáculos são necessários para que a marcha seja a Grande Marcha. P. 259

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca. P. 287-288

Tereza acaricia a cabeça de Karenin que descansa tranqüilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras. P. 291

A nostalgia do paraíso é o desejo do homem de não ser homem. P. 298

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Alienista - Machado de Assis, 1882




Machado de Assis fala por si próprio. Sou uma grande admiradora da obra deste homem. O grande sarcasmo e ironia de seus escritos são fantásticos. O Alienista parece leitura batida, daquela obrigatória da escola, que a maioria ficou com trauma. O fato é que é mais uma trama muito bem elaborada, e o melhor dela, sobre a loucura. Entretanto o autor não aborda o tema tradicionalmente, ele o coloca sobre uma perpectiva ambígua que deixa qualquer um se perguntando sobre sua sanidade. Aqui vão algumas passagens:

...tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. P. 29

O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como água de Botafogo. P. 38
Não há remédio certo para as dores da alma. P. 38
Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. P. 45 (autor sobre o sistema de “matraca” da época)

- Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. P. 45 (Simão Bacamarte)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O macaco nu. Desmond Morris, 1967.


Alguns livros simplesmente mudam sua vida para sempre. Constituem marcos evolutivos na sua maneira de pensar, caracterizam a expansão das suas perspectivas e idéias. Depois de ler esse livro você nunca mais vai olhar as cenas do cotidiano humano, ou mesmo suas próprias atitudes e comportamentos com os mesmos olhos e referências. Uma viagem incrível através do comportamente humano. Não só recomendo, como acho que a leitura é obrigatória para todo e qualquer macaco nu.
Aqui vai apenas alguns trechos da introdução para que percebam do que se trata:

"Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Essa insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais. O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila. Trata-se de um símio com enormes qualidades vocais, agudo sentido de exploração e grande tendência a procriar, e já é mais do que tempo de examinarmos o seu comportamento básico.
Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance da minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas das suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de se ter tornado tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado, e embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isto causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos – e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução. Na verdade, o Homo sapiens andaria muito menos preocupado e sentir-se-ia muito mais satisfeito, se fosse capaz de aceitar esse fato. É talvez nesse sentido que um zoólogo pode ajudar.
Ao encarar estes problemas, avalio bem quanto me arrisco a ofender certas pessoas. Muita gente não gosta de pensar que somos animais. E podem dizer que eu avilto a nossa espécie quando a descrevo em rudes termos animais. Posso apenas afirmar que não é essa a minha intenção. Outros ofender-se-ão pelo fato de um zoólogo se intrometer nos seus campos especializados. Mas eu admito que essa perspectiva poderá ter grande valor e que, apesar de todos os desfeitos, introduzirá novos (e de certa maneira inesperados) esclarecimentos sobre a natureza complexa da nossa extraordinária espécie."

(Introdução, páginas 7 e 10)



MORRIS, Desmond. O macaco nu. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 1967. 188 p.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pergunte ao pó. John Fante, 1939


O Fante é um autor extremamente visceral. Consegue injetar as mais profundas e controversas emoções numa história simples de roteiro. Traz em sua obra uma carga extremamente grande de existencialismo. Seu personagem, Arturo Bandini é uma espécie de anti-herói, representando alguém mais próximo da realidade, com suas mágoas, ansiedades, frustrações, desejos. Um excelente autor, com uma excelente obra.



FANTE, John. Pergunte ao pó. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 205 p.










Não era realmente um mentira; era um desejo, não uma mentira... (p. 14)
 

Os livros dizem não, a noite grita sim.


...este é o seu pensamento, que você nasceu de pais miseráveis, pressionados porque eram pobres, fugiu da sua pequena cidade do Colorado porque era pobre, esperando escrever um livro para ficar rico, porque aqueles que o odiavam lá no Colorado não vão odiá-lo se escrever um livro. Você é um covarde, Bandini, um traidor da sua alma, um péssimo mentiroso diante do seu Cristo ensangüentado. É por isso que escreve, é por isso que seria melhor que você morresse. (p. 21)


Desci os degraus de Angel’s Flight até a Hill Street: cento e quarenta degraus, com os punhos cerrados, sem medo de homem algum, mas apavorado pelo túnel da rua Três, apavorado de atravessá-lo a pé – claustrofobia. Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o romrom e o zumzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso. (p. 22)


Aqui estava a igreja de Nossa Senhora, muito antiga, a argila escurecida pela idade. Por motivos sentimentais, vou entrar. Por motivos sentimentais, apenas. Não li Lênin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: li O anticristo e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatões.

[...]

Uma prece. Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo Poderoso, vou jogar limpo nesta questão: vou Lhe fazer uma proposta: Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E Lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o Velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém. (p. 24)


Bandini (sendo entrevistado antes de partir para a Suécia): Meu conselho para todos os jovens escritores é bastante simples. Eu lhes recomendaria que nunca evitassem uma nova experiência. Eu os instaria a viver a vida em estado bruto, a atracar-se com ela bravamente, a golpeá-la com os punhos nus. (p. 25)


Magoavam-me tanto que eu jamais poderia me tornar um deles, empurraram-me para os livros, empurraram-me para dentro de mim mesmo, empurraram-me para fugir daquela cidadezinha... (p. 57)


Conversamos, ela e eu. Perguntou sobre o meu trabalho e era um pretexto, não estava interessada nisto. E quando respondi era um pretexto. Eu também não estava interessado no meu trabalho. Só havia uma coisa que nos interessava, e ela sabia, pois eu deixara claro com a minha vinda. (p. 115)


Doente na alma, tentei encarar a provação de buscar perdão. Mas de quem? De que Deus, de que Cristo? Eram mitos em que eu certa vez acreditara e agora eram crenças que eu considerava mitos. Este é o mar, e este é Arturo, e o mar é real e Arturo o considera real. Então me afasto do mar e, por toda parte onde olho, vejo terra; sigo caminhando e a terra vai se estendendo até o horizonte. Um ano, cinco anos, dez anos e não vi o mar. Digo a mim mesmo, mas o que aconteceu ao mar? E respondo: o mar está ali de volta, de volta no reservatório da memória. O mar é um mito. Nunca houve um mar. Mas havia um mar! Eu lhes digo que nasci à beira-mar! Banhei-me nas águas do mar! Deu-me alimento e deu-me paz e suas fascinantes distâncias alimentaram meus sonhos! Não, Arturo, nunca houve um mar. Você sonha e deseja, mas atravessa a terra desolada. Nunca verá o mar de novo. Era um mito em que certa vez acreditou. Mas tenho de sorrir, porque o sal do mar está no meu sangue e podem existir dez mil estradas sobre a terra, mas nunca irão me confundir, pois o sangue do meu coração sempre voltará para a bela fonte.

Então o que devo fazer? Devo erguer a boca ao céu, tropeçando e balbuciando com uma língua temerosa? Devo abrir o peito e bater nele como num tambor, buscando a atenção do meu Cristo? Ou não será melhor e mais sensato que me cubra e siga em frente? Haverá confusões e haverá fome; haverá solidão com apenas minhas lágrimas como pequenos pássaros confortadores, rolando para suavizar meus lábios secos. Mas haverá também consolação e haverá também beleza como o amor de uma garota morta. Haverá algum riso, um riso contido, e quieta espera na noite, um medo macio da noite como o beijo pródigo e mordaz da morte. Então haverá noite e os doces óleos das praias do meu mar, derramados sobre meus sentidos pelos capitães que desertei na sonhadora impetuosidade da minha juventude. Mas serei perdoado por isto, e por outras coisas, por Vera Rivken e pelo incessante bater das asas de Voltaire, por parar para ouvir e observar aquele fascinante pássaro, para todas as coisas haverá perdão quando eu retornar à minha terra natal pelo mar. (p. 120/121)


Que bem faz a um homem se ele ganha o mundo inteiro, mas sofre a perda de sua própria alma? E então aquele pequeno poema: Tome todos os prazeres de todas as esferas, multiplique-os por anos intermináveis, um minuto de céu vale todos eles. Quão verdadeiro! Quão verdadeiro! Eu lhe agradeço, oh luz celestial, por indicar-me o caminho. (p. 131)


A noite toda, choramos e bebemos, e bêbado eu podia dizer as coisas que fervilhavam no meu coração, todas aquelas palavras bonitas e os símiles inteligentes... (p. 163)


Saí para uma caminhada pelas ruas. Meu Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade. (p. 200)




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A hora da estrela. Clarice Lispector, 1977.


Esse foi o primeiro livro que li da autora. Sinceramente, fui de olhos fechados, como muitas vezes já fiz ao pegar um livro. Não sabia que a carga existencialista de sua obra era tão latente. Acho que isso de certa forma afetou a minha leitura. Sabendo que era ao mesmo tempo um romance, fiquei esperando os "fatos", os "acontecimentos", mas esses elementos são absolutamente secundários para Lispector. O livro em si é uma espécie de ironia acerca da opinião pública sobre a obra da autora, que se queixava da falta de "fatos". No prefácio, Clarisse Fukelman trás uma frase da autora que diz muito a seu respeito "Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro". Sem dúvida é uma grande escritora do gênero. Certamente lerei outras obras de Lispector.


LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990-1993. 106 p.



Porque há o direito ao grito. Então eu grito. (p. 27)




Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. (p. 28/29)



As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer. (p. 31)



Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. (p. 32)



E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico. (p. 34)

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. (p. 35)



E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples, mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica. (p. 50)



(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo) (p. 51)



Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. (p. 51)



Em todo caso o futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim. (p. 55)



Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? (p. 74)



É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade – provoca aquela saudade desmaiada e lilás, aquele perfume de violeta, as águas geladas da maré mansa em espumas pela areia. Eu não quero provocar porque dói. (p. 78)

Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada. (p. 81)



Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. É a minha vingança. (p. 87)



Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez ma faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. (p.88)



Estou me interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo. (p. 89)








Pandora. Anne Rice, 1997.

Esse livro é relativamente novo. Seja pela posição dele na trama ampliada das Crônicas Vampirescas, ou pela própria falta de presença de espírito da personagem Pandora, esse livro perde de longe para outras obras de Rice, como, por exemplo, Memnoch, grande obra da autora. O livro é curto. A impressão que tive é que a autora apostou demais na mitologia já criada sobre seus belos vampiros e acabou criando uma vampira bela e vazia. Por vezes as auto-descrições de Pandora perdem completamente a credibilidade, principalmente quando negadas pura e simplesmente por suas atitudes pouco expressivas. Ao mesmo tempo em que se nega ser a sombra de um homem (Marius) cumpre justamente esse papel ao permitir que este se torne personagem muito mais expressivo através de seus pensamentos e atos. Uma mulher tola, eu diria, que trai a si mesma na empreitada de se provar uma mulher forte e inteligente. Todavia, como todas as obras de Rice, sempre conseguimos tirar passagens que realmente  nos dizem muito, como essas que seguem:


RICE, Anne. Pandora : Novos contos vampirescos. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 205 p.:



- Ah, eu poderia ensinar filosofia ali embaixo das arcadas, sabe, ficar falando sobre Diógenes e fingir que gostava de andar maltrapilho, como fazem os seguidores dele atualmente. Que circo é aquele lugar, já viu? Nunca vi tantos filósofos na vida quanto nesta cidade! Dê uma olhada quando voltar. Sabe o que a pessoa tem que fazer para ensinar filosofia aqui? Tem que mentir. Tem que despejar a toda velocidade um monte de palavras sem sentido nos jovens, e ficar meditando quando não souber responder, e inventar absurdos e atribuir tudo aos velhos estóicos. (Personagem Flavius, p. 80)
- Senhora, aprendemos a esconder a alma porque somos traídos pelas pessoas. (Flavius, p. 82)

- Está bem – eu disse. – Vou lhe dizer o que quero. Quero que você me ame, Marius, que me ame, mas me deixe em paz! - protestei. Eu nem sequer refletira. As palavras foram saindo. – Me deixe em paz, para que eu procure meus próprios confortos, meus próprios meios de continuar viva, pouco importa o quanto esses confortos lhe pareçam idiotas ou sem nexo. Me deixe em paz! (Pandora, p. 182)

E estou sempre vendo indícios de amor à minha volta nesse mundo. Por trás da imagem da Virgem Abençoada e seu Menino Jesus, por trás da imagem do Cristo Crucificado, por trás da recordação daquela estátua de basalto representando Ísis. Vejo amor. Vejo amor no esforço humano. Vejo a inegável penetração do amor em todas as realizações humanas, na poesia, na pintura, na música, nas relações interpessoais e na recusa à aceitação do sofrimento como destino. (Pandora, p. 198)



sábado, 10 de outubro de 2009

O queijo e os vermes. Carlo Ginzburg, 1976.

Buenas, esse livro é realmente muito especial. Se apresenta como uma análise crítica de um processo inquisitorial da idade média. O autor e historiador Carlo Ginzburg analisa todos os documentos deste processo, motivado pela evidente peculiaridade desse indivíduo e de suas idéias. O moleiro Menocchio, membro de uma camada "inferior" da sociedade medieval, demonstra conhecimentos e idéias que não seriam comuns para sua condição sócio-histórica. Mas, entre os conhecimentos e informações demonstrados por Menocchio, sua capacidade de articulação e fundamentação é o que mais chama a atenção. A proposta do autor é mostrar que o conhecimento de uma sociedade ou época não é necessariamente disseminado, ou retido, a partir da elite sócio-econômica, num movimento linear de "cima" para "baixo", mas que os mecanismos dessa disseminação podem ser muito mais complexos do que supomos até então. A leitura do livro é muito leve e agradável. Recomendo...





Aqui vai a ficha de leitura:

“Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”. P. 27


“Menocchio não reconhecia, na hierarquia eclesiástica, nenhuma autoridade especial nas questões de fé”. P. 44

“- Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus”. P. 46/47

“- Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. P. 51
“- E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres”. P. 51

“- E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo até depois da morte”. P. 52/53

“-Acho que a Sagrada Escritura tenha sido dada por Deus, mas, em seguida, foi adaptada pelos homens”. (...) “A respeito das coisas dos Evangelhos, acho que parte delas é verdadeira e, noutra parte, os evangelistas puseram coisas da cabeça deles, como se pode ver nas passagens onde um conta de um modo e outro de outro”. P. 55

“Papa, cardeais e padres ‘arruínam os pobres’: mas em nome de quê? Com que direitos? O papa é ‘homem como nós’, com a diferença de que tem poder (‘pode fazer’) e, portanto, mais dignidade. Não existe diferença alguma entre clérigos e leigos: o sacramento da ordenação é uma ‘mercadoria’. Assim como todos os outros sacramentos e leis da Igreja: ‘mercadorias’, ‘invenções’, e graças a elas os padres engordam. A essa construção colossal baseada na exploração dos pobres, Menocchio contrapõe uma religião bem diferente, em que todos são iguais, porque o espírito de Deus está em todos”. P. 64

E justamente sobre os pigmeus Mandeville escrevera uma página que alcançaria grande sucesso: “É um povo de pequena estatura, cerca de 3 palmos, homens e mulheres belos e graciosos por causa do tamanho. Casam-se com a idade de seis meses e com dois ou três anos já têm filhos; em geral não vivem mais que seis ou sete anos e os que chegam a sete são considerados velhíssimos. Estes pigmeus são os mais habilidosos e os melhores mestres no trabalho com a seda, algodão e qualquer outra coisa que exista no mundo. Com freqüência fazem guerra contra os pássaros do lugar e muitas vezes são mortos e comidos por eles. Essa pequena gente não trabalha na terra, nem têm vinhas, mas existia gente grande como nós que trabalha a terra para eles. Eles [os pigmeus] desprezam-nos assim como nós os desprezaríamos se vivêssemos junto com eles...” p. 106

Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão e, se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco”. “O senhor acredita então”, insistiu o inquisidor, “que não se saiba qual a melhor lei?” Menocchio respondeu: “Senhor, eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acreditar que essa seja a melhor fé”. P. 113

“Suas afirmações mais desconcertantes nasciam do contato com textos inócuos, como As viagens, de Mandeville, ou a Historia Del Giudicio. Não o livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva”. P. 116

“Nos discursos de Menocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo, tão pouco comum que se torna quase incompreensível. Este caso, diferentemente dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Pra que essa cultura diversa pudesse vir à luz, foram necessárias a reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças à segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele”. P. 127

“Desejava que existisse um novo mundo e um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa”. P. 160

“A sociedade sonhada por Scolio é pia e austera, como nas utopias camponesas: livres das profissões inúteis ( “Não existam lojas ou artes manuais/ senão as mais importantes e principais;/ estime-se como vaidade toda sabedoria de médicos e vivam sem doutores” ), baseada em agricultores e guerreiros, governada por um único soberano, que é o próprio Scolio”. P. 213

“É mais complexa e, em parte, impossível de demonstrar. O estado da documentação reflete, é óbvio, o estado das relações de força entre as classes. Uma cultura quase exclusivamente oral como a das classes subalternas da Europa pré-industrial tende a não deixar pistas, ou então deixar pistas distorcidas. Portanto, há um valor sintomático num caso-limite como o de Menocchio. Ele repropõe, com força, um problema cuja importância só agora se começa a perceber: as raízes populares de grande parte da alta cultura européia, medieval e pós-medieval. Figuras como Rabelais e Bruegel não foram, provavelmente, exceções notáveis. Todavia, fecharam uma época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular. O período subseqüente, ao contrário, foi assinalado tanto por uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa quanto pela doutrinação das massas populares, vinda de cima. Podemos localizar o corte cronológico entre esses dois períodos na segunda metade do século XVI, que coincide significativamente com a intensificação das diferenças sociais sob a influência da revolução dos preços. Mas a crise decisiva ocorrera algumas décadas antes, com a guerra dos camponeses e o reino anabatista de Münster. Então se impôs às classes dominantes, de maneira dramática, a necessidade de recuperar, mesmo ideologicamente, as massas populares que ameaçavam escapar a qualquer forma de controle vindo de cima – porém mantendo e até acentuando as distâncias sociais. Esse renovado esforço de obter hegemonia assumiu formas diversas nas várias partes da Europa; mas a evangelização do campo por obra dos jesuítas e a organização religiosa capilar baseada na família, executada pelas igrejas protestantes, podem ser agrupadas numa mesma tendência. A ela correspondem, em termos de repressão, a intensificação dos processos contra bruxaria e o rígido controle dos grupos marginais, assim como dos vagabundos e ciganos. O caso de Menocchio se insere nesse quadro de repressão e extinção da cultura popular”. P. 230/231

“E junto a esse temor ao diabo, que rege a mente inquisitorial, temos uma prática que mal deixa saída a quem nela é apanhado: os interrogatórios, como os que Menocchio sofre. Como escapar deles? Como um “simples” (é verdade que ele é um tanto mais culto) poderá discutir se Cristo é ou não da mesma natureza que Deus Pai? Nessa questão se fundamenta boa parte da teologia e do poder cristão, mas dela o que entende a esmagadora maioria dos fiéis? O interrogatório é a pior das armadilhas. Tanto que a Inquisição deve o nome, justamente, ao seu procedimento de inquirição”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 239/240

“Nem toda confissão é uma vitória da tortura; porque às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 241