Li esse livro como bibliografia básica do meu TCC (inacabado, e sem previsão). Um compêndio de excelente qualidade, composto de artigos de vários profissionais da área. Se propõe a contar as diversas histórias da mulher no Brasil. O livro começa a viagem desde os tempos colonias, através de análises interessantíssimas dos relatos dos primeiros viajantes, assim como das ilustrações dessas obras que transmitiam as primeiras impressões sobre o povo nativo das terras brasileiras. Sempre com foco no elemento feminino.
Passa pelos reflexos culturais ainda fortemente ligados à mentalidade medieval, seguindo de forma muito fluída até a contemporaneidade.
O livro é um verdadeiro calhamaço, me assustou logo de cara. Tanto que já tinha decidido de antemão ler apenas os capítulos do período que dissesse respeito ao meu trabalho. Por acaso comecei a ler o primeiro artigo, e daí foi só amor. Realmente muito gostoso de ler. Seu formato, dividido em artigos, de diferentes autores, com linguagem super acessível, torna a leitura um verdadeiro prazer. Também acaba sendo muito interessante e diferente, por trazer uma abordagem mais cultural da história da mulher, apresentando fontes históricas alternativas, como, por exemplo, a história oral, a cultura popular, etc.
Seguem alguns trechos:
A história das mulheres não é só delas, é também aquela da
família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu
corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua
loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos. p. 7 (Mary Del
Priore)
Além de estudar o cotidiano das mulheres, e as práticas
femininas nele envolvidas, os documentos nos permitem aceder às representações
que se fizeram, noutros tempos, sobre as mulheres. Quais seriam aquelas a
inspirar ideais e sonhos? As castas, as fiéis, as obedientes, as boas esposas e
mães. Mas quem foram aquelas odiadas e perseguidas? As feiticeiras, as
lésbicas, as rebeldes, as anarquistas, as prostitutas, as loucas. p. 8
(Mary Del Priore)
As histórias aqui contadas refletem as mais variadas
realidades: o campo e a cidade, o norte, o sudeste e o sul. Os mais diferentes
espaços: a casa e a rua, a fábrica e o sindicato, o campo e a escola, a
literatura e as páginas de revista. E, finalmente, os múltiplos extratos
sociais: escravas, operárias, sinhazinhas, burguesas, heroínas românticas,
donas de casa, professoras, bóias-frias. p. 8 (Mary Del Priore)
Teria então chegado o tempo de falarmos, sem preconceitos,
sobre as mulheres? Teria chegado o tempo de lermos, sobre elas, sem tantos a
priori ? Muito se escreveu sobre a dificuldade de se construir a
história das mulheres, mascaradas que eram pela fala dos homens e ausentes que
estavam do cenário histórico. Esta discussão está superada. As páginas a seguir
oferecem o frescor de uma estrutura na qual se desvenda o cruzamento das
trajetórias femininas nas representações, no sonho, na história política e na
vida social. p. 8-9 (Mary Del Priore)
Não nos interessa, aqui, fazer uma história que apenas conte
a saga de heroínas ou de mártires: isto seria de um terrível anacronismo.
Trata-se, sim, de enfocar as mulheres através das tensões e das contradições
que se estabeleceram em diferentes épocas, entre elas e seu tempo, entre elas e
as sociedades nas quais estavam inseridas. Trata-se de desvendar as intricadas
relações entre a mulher, o grupo e o fato, mostrando como o ser social, que ela
é, articula-se com o fato social que ela também fabrica e do qual faz parte
integrante. As transformações da cultura e as mudanças de idéias nascem das
dificuldades que são simultaneamente aquelas de uma época e as de cada
indivíduo histórico, homem ou mulher. p. 9 (Mary Del Priore)
Colônia:
Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante
duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção
informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo
objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o
equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições
eclesiásticas. (Emanuel Araújo, p. 45)
Nunca se perdia a oportunidade de lembrar às mulheres o
terrível mito do Éden, reafirmado e sempre presente na história humana. Não era
de admirar, por exemplo, que o primeiro contato de Eva com as forças do mal,
personificadas na serpente, inoculasse na própria natureza do feminino algo
como um estigma atávico que predispunha fatalmente à transgressão, e esta, em
sua medida extrema, revelava-se na prática das feiticeiras, detentoras de
saberes e poderes ensinados e conferidos por Satanás. (Emanuel Araújo, p. 46)
O ideal do adestramento completo, definitivo, perfeito,
jamais foi alcançado por inteiro. A Igreja bem que tentava domar os pensamentos
e os sentimentos, muitas vezes até com algum, sucesso, mas nem todo mundo
aceitava passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo
corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em determinadas
circunstâncias. Contudo, parece que o normal era a introjeção, por parte das
próprias mulheres, dos valores misóginos predominantes no meio social;
introjeção imposta não só pela Igreja e pelo ambiente doméstico, mas também por
diversos mecanismos informais de coerção, a exemplo da tagarelice de vizinhos,
da aceitação em certos círculos, da imagem a ser mantida neste ou naquele
ambiente etc. Os desvios da norma, porém, não eram tão incomuns numa sociedade
colonial que se formava e muitas vezes improvisava seus próprios caminhos muito
longe do rei. (Emanuel Araújo, p. 53)
Na época colonial a mulher arriscava-se muito ao cometer
adultério. Arriscava, aliás, a vida, porque a própria lei permitia que “achando
o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela
como o adúltero.” (Emanuel Araújo, p. 59)
Num cenário em que doença e culpa se misturavam, mostra como
o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja Católica quanto por
médicos: um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam.
Qualquer doença, qualquer mazela que atacasse uma mulher, era interpretada como
um indício da ira celestial contra pecados cometidos, ou então era
diagnosticada como sinal demoníaco ou feitiço diabólico. Esse imaginário, que
tornava o corpo um extrato do céu ou do inferno, constituía um saber que
orientava a medicina e supria provisoriamente as lacunas de seus conhecimentos.
p. 78 (Mary del Priore)
Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava
do homem apenas pelo conjunto de órgãos específicos, mas também por sua
natureza e por suas características morais. p. 79 (Mary del Priore)
É importante lembrar que, à época, a ciência médica começava
a adquirir a imagem de um saber devotado e infalível, que impunha
progressivamente as normas da vida saudável, assumindo, por fim, uma função de
vigilância social e moral. Contra esse pano de fundo, uma espécie de ternura
patética tomou conta da pluma dos médicos, que procuraram descrever a mulher
como um ser frágil, carente de vontade, amolengada por suas qualidades naturais que seriam a fraqueza, a
minoridade intelectual, a falta de musculatura, a presença da menstruação.
Melhor submeter-se docilmente à
servidão que a natureza impunha ao gênero feminino. p. 105 (Mary del Priore)
Século XIX:
Mulher e família burguesa. Maria Ângela D’Incao.
Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma
série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma
vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão
da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade -
burguesa - reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do
tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de
pensar o amor. p. 223
Presenciamos ainda nesse período o nascimento de uma nova
mulher nas relações da chamada família burguesa, agora marcada pela valorização
da intimidade e da maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor,
filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de
qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um
tesouro social imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente
fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela como forma
de proteção ao mundo externo também marcaram o processo de urbanização do país.
p. 223
Nas casas, domínios privados e públicos estavam presentes.
Nos públicos, como as salas de jantar e os salões, lugar de máscaras sociais, impunham-se regras para bem-receber e bem-representar diante das visitas. As
salas abriam-se freqüentemente para reuniões mais fechadas ou saraus, em que se
liam trechos de poesias e romances em voz alta, ou uma voz acompanhava os sons
do piano ou harpa.
As leituras animadas pelos encontros sociais, ou feitas à
sombra das árvores ou na mornidão das alcovas, geraram um público leitor
eminentemente feminino. A possibilidade de ócio entre as mulheres de elite
incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais consumidas entre um
bordado e outro, receitas de doces e confidências entre amigas. As histórias de
heroínas românticas, langorosas e sofredoras acabaram por incentivar a
idealização das relações amorosas e das perspectivas de casamento. p. 228-9
As alcovas, espaço do segredo e da individualidade,
forneciam toda a privacidade necessária para a explosão dos sentimentos:
lágrimas de dor ou ciúmes, saudades, declarações amorosas, cartinhas afetuosas
e leitura de romances pouco recomendáveis. “A máscara social será um índice das
contradições profundas da sociedade burguesa e capitalista [...] em função da
repressão dos sentimentos, o amor vai restringir-se à idealização da alma e à
supressão do corpo”. p. 229
Num certo sentido os homens eram bastante dependentes da
imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu
grupo de convívio. Em outras palavras significavam um capital simbólico
importante, embora a autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas, do
pai ou do marido. Esposas, tias, filhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais)
cuidavam da imagem do homem público; esse homem aparentemente autônomo,
envolto em questões de política e economia, estava na verdade rodeado por um
conjunto de mulheres das quais esperava que o ajudassem a manter sua posição
social. p. 229-30
O que a literatura do período informa é que a mulher das
classes baixas, ou sem tantos recursos, teve maiores possibilidades de poder
amar pessoas de sua condição social, uma vez que o amor, ou expressão da
sexualidade, caso levasse a uma união, não comprometeria as pressões de
interesses políticos e econômicos. As mulheres de mais posses sofreram com a
vigilância e passaram por constrangimentos em suas uniões, de forma autoritária
ou adoçada, na sua vida pessoal. Para elas o amor talvez tenha sido um alimento
do espírito e muito menos uma prática existencial. p. 234
É certo que os relatos dos cronistas, viajantes e
historiadores do período nos exibem um quadro em que a menina ou a mulher
candidata ao casamento é extremamente bem cuidada, é trancafiada nas casas etc.
Não há como negar ou interpretar de outra maneira fatos tão conhecidos.
Todavia, essa rigidez pode ser vista como único mecanismo existente de
manutenção do sistema de casamento, que envolvia a um só tempo aliança política
e econômica. Em outras palavras, nos casamentos das classes altas, a respeito
dos quais temos documentos e informações, a virgindade feminina era um requisito
fundamental. Independentemente de ter sido ou não praticada como um valor ético
propriamente dito, a virgindade funcionava como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor
econômico e político, sobre o qual se assentaria o sistema de herança de
propriedade que garantia linhagem da parentela. p. 235
Mulheres no sul. Joana Maria Pedro.
O isolamento feminino nas atividades de esposa, mãe e dona
de casa tornou-se forma de distinção para uma classe urbana abastada [...]. p.
285
A nova família “civilizada” que se pretendia compor deveria
ser diferente daquela do restante da população: qualquer parente, além de
pai-mãe-filhos, atrapalharia. Assim, a imagem da sogra passou a vir associada a
características negativas na década de 80 do século XIX. p. 286
As mães, homenageadas como as responsáveis pela civilização,
pelo heroísmo, pela piedade cristã dos homens, eram percebidas como estorvo ao
se tornarem sogras. Além disso, não se tratava de qualquer sogra, mas a do
homem, o mesmo que escrevia nos jornais. p. 287
A proclamação da República pode ser vista como o momento a
partir do qual os novos modelos femininos passaram a ser mais reforçados. Esse
período promoveu intensas transformações e remanejamentos nas elites que vinham
se configurando no decorrer do século XIX. Muitas da imagens idealizadas das
mulheres sofreram mudanças e intensificações por conta das transformações que
se operaram com a Proclamação da República. p. 291
Na virada do século, as imagens das prostitutas tornaram-se
as referências de como as mulheres não deveriam ser. Seus comportamentos, seu
modo de falar, de vestir, de perfumar-se, eram aqueles que deveriam ser
evitados pelas mulheres que quisessem ser consideradas distintas. p. 305
Psiquiatria e feminilidade. Magali Engel.
Uma das imagens mais fortemente apropriadas, redefinidas e
disseminadas pelo século XIX ocidental é aquela que estabelece uma associação
profundamente íntima entre a mulher e a natureza, opondo-a ao homem
identificado à cultura. Retomada por um “velho discurso” que tentava justificar
as teorias e práticas liberais - que, embora comprometidas com o princípio da
igualdade, negavam às mulheres o acesso à cidadania, através da ênfase na
diferença entre os sexos -, tal imagem seria revigorada a partir das
“descobertas da medicina e da biologia, que ratificavam cientificamente a
dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão lúcida, capacidade de decisão versus mulheres, coração, sensibilidade,
sentimentos”. Essas considerações remetem a duas questões importantes.
A construção da imagem feminina a partir da natureza e das
suas leis implicaria em qualificar a mulher como naturalmente frágil, bonita,
sedutora, submissa, doce etc. Aquelas que revelassem atributos opostos seriam
consideradas seres antinaturais. Entretanto, muitas qualidades negativas - como
a perfídia e a amoralidade - eram também entendidas como atributos naturais da
mulher, o que conduzia a uma visão profundamente ambígua do ser feminino.
No século XIX ocidental, a velha crença de que a mulher era
um ser ambíguo e contraditório, misterioso e imprevisível, sintetizando por
natureza o bem e o mal, a virtude e a degradação, o princípio e o fim, ganharia
uma nova dimensão, um sentido renovado e, portanto, específico. Amplamente
disseminada, a imagem da mulher como ser naturalmente ambíguo adquiria, através
dos pincéis manuseados por poetas, romancistas, médicos, higienistas,
psiquiatras e, mais tarde, psicanalistas, os contornos de verdade
cientificamente comprovada a partir dos avanços da medicina e dos saberes
afins. p. 332
[...] a mulher transformava-se num ser moral e socialmente
perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras
extremamente rígidas que assegurassem o cumprimento do seu papel social de
esposa e mãe; o que garantiria a vitória do bem sobre o mal, de Maria sobre
Eva. Se a mulher estava naturalmente predestinada ao exercício desses papéis, a
sua incapacidade e/ou recusa em cumpri-los eram vistas como resultantes da
especificidade da sua natureza e, concomitantemente, qualificadas como antinaturais.
Sob a égide das incoerências do instinto,
os comportamentos femininos considerados desviantes - principalmente aqueles
inscritos na esfera da sexualidade e da afetividade - eram vistos ao mesmo
tempo e contraditoriamente como pertinentes e estranhos à sua própria natureza.
Nesse sentido, a mulher era concebida como um ser cuja natureza específica
avizinhava-se do antinatural. p. 332-3
Assim, no organismo da mulher, na sua fisiologia específica
estariam inscritas as predisposições à doença mental. A menstruação, a gravidez
e o parto seriam, portanto, os aspectos essencialmente priorizados na definição
e no diagnóstico das moléstias mentais que afetavam mais freqüentemente ou de
modo específico as mulheres. p. 333
Mas se queremos mesmo dar uma guinada na história das
mulheres, deslocando-a para um campo bem mais fértil e instigante da história
dos gêneros, é preciso que, entre outras coisas, abandonemos definitivamente
essa obsessão em buscar comprovar que a mulher é mais discriminada, é mais
explorada, é mais sofredora, é mais revoltada etc., etc. Nem mais, nem menos,
mas sim diferentemente. Diferenças cujos significados não se esgotam nas
distinções sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado múltiplo,
complexo, e muitas vezes, contraditório, das diversidades sociais, étnicas,
religiosas, regionais, enfim, culturais. p. 334
Como estabelecer as fronteiras entre o normal e o patológico no
mundo da sexualidade feminina que, definido nesses termos, revelava-se tão
profundamente incerto? Os médicos do século XIX tomariam para si essa tarefa
baseando-se em dois pressupostos: a normalidade
ocuparia o espaço de uma pequena ilha cercada pela imensidão oceânica da
doença; entre a água e a terra os limites seriam tão vagos e móveis quanto os
definidos pelas próprias ondas. p. 340
Embora a idéia de que a mulher seria um ser assexuado ou
frígido tenha sido bastante difundida entre os médicos brasileiros do século
XIX, alguns deles reconheciam, explicitamente, a existência do desejo e do
prazer sexual na mulher. Entre os muitos desdobramentos decorrentes da
transformação do casamento em uma instituição
higiênica, temos não apenas o reconhecimento, mas até mesmo o estímulo à
sexualidade feminina. 33 para os médicos, a ausência ou a precariedade da vida
sexual poderiam resultar em conseqüências funestas para as mulheres: como o
hábito da masturbação - causador de esterilidade, aborto - ou o adultério. p.
342
Assim, a sexualidade só não ameaçaria a integridade física,
mental e moral da mulher, caso se mantivesse aprisionada nos estreitos limites
entre o excesso e a falta e circunscrita ao leito conjugal.
Ademais, ao priorizarem o cumprimento dos deveres da maternidade (gestação.
amamentação etc.) como característica indispensável da mulher saudável e
incompatíveis com o pleno exercício da sexualidade, os médicos restringiriam a
disponibilidade feminina para as práticas e prazeres sexuais, criando um
impasse que acreditavam resolver afirmando a existência do gozo sexual através
da amamentação. p. 342
Reconhecendo ou negando a existência do desejo e do prazer
na mulher, os alienistas estabeleciam uma íntima associação entre as
perturbações psíquicas e os distúrbios da sexualidade em quase todos os tipos
de doença mental. p. 342
Cabe lembrar que entre as estratégias que fundamentariam a
construção de uma ciência sexual ao
longo do século XIX figurava a histerização
do corpo da mulher, desqualificando-o como corpo excessivamente impregnado
de sexualidade. 38
Entre os alienistas brasileiros, o caminhos percorridos pelo
tema da histeria seguiram bem de perto a mesma trajetória, circunscrevendo-se
em torno de duas questões-chave: a associação entre a histeria e o ser
feminino; e a relação entre histeria e sexualidade e/ou afetividade. p. 343
As conquistas e sofisticações da psiquiatria na passagem do
século XIX para o século XX, longe de questionarem a associação entre mulher e
histeria, aprofundaram-na, conferindo-lhe status
de verdade científica. Ainda por muito tempo, as palavras impetuosas do psiquiatra
francês Ulysse Trélat, discípulo de Esquitol, continuariam a ecoar dentro e
fora do mundo acadêmico e científico: “Toda mulher é feita para sentir, e
sentir é quase histeria”. 79
Mulheres pobres e violência no brasil urbano. Rachel Soihet
Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de
classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam
características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições
concretas de existência. Como era grande sua participação no “mundo do
trabalho”, embora mantidas numa posição subalterna, as mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às
características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato,
delicadeza, fragilidade. Eram mulheres que trabalhavam e muito, em sua maioria
não eram formalmente casadas, brigavam na rua, pronunciavam palavrões, fugindo,
em grande escala, aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil. p. 367
Essas dificuldades se agravavam, pois muitas das idéias das
mulheres dos segmentos dominantes se apresentavam fortemente às mulheres populares. Mantinham, por
exemplo, a aspiração ao casamento formal, sentindo-se inferiorizadas quando não
casavam; embora muitas vezes reagissem, aceitavam o predomínio masculino;
acreditavam ser de sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que
tivessem que dividir com o homem o ganho cotidiano. p. 367
A liberdade sexual das mulheres
populares parece confirmar a idéia de que o controle intenso da sexualidade
feminina estava vinculado ao regime de propriedade privada. A preocupação com o
casamento crescia na proporção dos interesses patrimoniais a zelar. No Brasil
do século XIX, o casamento era boa opção para uma parcela ínfima da população
que procurava unir os interesses da elite branca. p. 368
A violência (masculina) surgia, assim, de sua incapacidade
de exercer o poder irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de
fraqueza e impotência do que de força e poder. p. 370
As condições concretas de existência dessas mulheres
(populares), com base no exercício do trabalho e partilhando com seus
companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíram para o desenvolvimento de
um forte sentimento de auto-respeito. Isso lhes possibilitou reivindicar uma
relação mais simétrica, ao contrário dos estereótipos vigentes acerca da
relação homem/mulher que previam a subordinação feminina e a aceitação passiva
dos percalços provenientes da vida em comum. p. 377
A autonomia das mulheres pobres no Brasil da virada do
século é um dado indiscutível. Vivendo precariamente, mais como autônomas do
que como assalariadas, improvisavam continuamente suas fontes de subsistência.
Tinham, porém, naquele momento, maior possibilidade que os homens de venderem
seus serviços: lavando ou engomando roupas, cozinhando, fazendo e vendendo
doces e salgados, bordando, prostituindo-se, empregando-se como domésticas,
sempre davam um jeito de obter alguns trocados. p. 379
Na virada do século, o crime passional assumiu grandes
proporções. p. 380
Os crimes beneficiavam-se da onda de romantismo no âmbito da
literatura e da arte enfatizando o amor e a paixão. Situações desse teor eram
retratadas por Tolstoi, Dostoievski, Daudet, Maupassant e D’Annunzio, cujas
obras estão repletas de situações em que o amor e o ciúme aparecem como
determinantes dos atos mais impulsivos. p. 381
Alguns países chegavam a adotar a norma de impunidade total
em favor do marido que “vingasse a honra” ao surpreender sua mulher em
adultério. No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1890, só a mulher era
penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de um a três anos. O
homem só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e
manteúda. p. 381
Os motivos da punição são óbvios, já que o adultério
representava os riscos da participação de um bastardo na partilha dos bens e na
gestão dos capitais. O homem, em verdade, tinha plena liberdade de exercer sua
sexualidade desde que não ameaçasse o patrimônio familiar. Já a infidelidade
feminina era, em geral, punida com a morte, sendo o assassino beneficiado com o
argumento de que se achava “em estado de completa privação de sentidos e
inteligência” no ato de cometer o crime, ou seja, acometido de loucura ou
desvario momentâneo. p. 381-82
Na prática, reconhecia-se ao homem o direito de dispor da
vida da mulher. p. 382
A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente
localizado do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída
pela ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no
casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento do próprio
corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. Decorre daí o fato
de as mulheres manterem com seu corpo uma relação matizada por sentimentos de
culpa, de impureza, de diminuição, de vergonha de não ser mais virgem, de
vergonha de estar menstruada etc. p. 389
Afinal, “pureza” era fundamental para a mulher, num contexto
em que a imagem da Virgem Maria era o exemplo a seguir. “Ser virgem e ser mãe”
constituía-se no supremo ideal dessa cultural, em contraposição à “mãe puta”, a
maior degradação e ofensa possível da qual todas desejavam escapar. p. 390
Os crimes cometidos em nome da defesa da honra feminina
equivaliam àqueles cometidos pelos homens, no caso da infidelidade da mulher.
Percebe-se, portanto, por parte dos agentes jurídicos, uma tendência a
considerar as mulheres que defendessem sua honra como merecedoras de
tolerância, aceitando-se para o seu ato a justificativa do “estado de
irresponsabilidade penal por privação de sentidos e inteligência”. p. 394
As defesas nos processos da mesma natureza não se pautam em
aspectos essenciais: o significado da violência contra a mulher, o desrespeito
à pessoa humana, à integridade individual da mulher, ao direito desta dispor de
seu corpo. A defesa acentuava tão-somente a questão da honra feminina, cujo
significado para a sociedade era o único relevante, um verdadeiro atentado à
propriedade do marido ou do pai. p. 394-5
Além da violência física, sobre elas (mulheres populares)
fez-se sentir, igualmente, a violência simbólica dando lugar à incorporação de
inúmeros estereótipos. Em boa parte das situações essas mulheres desenvolveram
táticas com vistas a mobilizar para seus próprios fins representações que lhes
eram impostas, buscando desviá-las contra a ordem que as produziu; ou seja,
definiram muitos de seus poderes por meio de um movimento de reapropriação e
desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina contra o
seu próprio dominador. Isso se evidencia nos casos de crimes contra a honra. p.
398
Escritoras, escritas, escrituras. Norma Telles
É preciso ressaltar o
papel fundamental desempenhado pelos produtos culturais, em particular o
romance, na cristalização da sociedade moderna. Escrita e saber estiveram, em
geral, ligados ao poder e funcionaram como forma de dominação ao descreverem
modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos esperados em
determinadas situações. p. 401-2
O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a
partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a
mulher, quando maternal e delicada, como força
do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram
culturalmente atribuídas, como potência
do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém
da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa
dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição.
p. 403
A situação de ignorância em que se pretende manter a mulher
é responsável pelas dificuldades que encontra na vida e cria um círculo
vicioso: como não tem instrução, não está apta a participar da vida pública, e
não recebe instrução porque não participa dela. p. 406
O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em
ações políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações das
mulheres armadas, em geral, denunciam a incapacidade feminina para a luta,
física ou mental, donde concluem que as mulheres são incapazes para a política,
ou que esse tipo de idéia é apenas diversão passageira de meninas teimosas que
querem sobressair. p. 407
Ao mesmo tempo que se pregavam valores burgueses, eram reforçados
preconceitos de classe e raça. p. 429
Os higienistas empenharam-se com afinco na tarefa de formar
a “mãe burguesa”. Empreenderam campanhas para convencer as mulheres a
amamentar. Visavam também à “mãe educadora” sob vigilância do médico de
família. Definiam a mulher como ser afetivo e frágil. Doçura e indulgência eram
atributos que se somavam aos anteriores para demonstrar a inferioridade da mulher,
cujo cérebro, acreditavam, era dominado pelo capricho ou instinto de
coqueteria. Para que não adoecesse, era preciso que aceitasse o comando do
homem e se dedicasse inteiramente à maternidade e à família. As mulheres
pobres, as vendedoras de rua, as lavadeiras vão sendo expulsas do centro, que
se afrancesa, e de seus ofícios de sobrevivência. p. 429
Em nome do perigo venéreo, domesticam (os médicos) a
sexualidade feminina. p. 429
Durante o Império, e mais ainda no início do período
republicano, a medicina higiênica tem um caráter de polícia médica. É dessa
medicina que surgirá, entre nós, a psiquiatria. Desde o início a medicina
institucional, em suas várias formas, pretendia interferir no “organismo social”, cuidar da saúde da
cidade e dos indivíduos. A versão psiquiátrica nacional era nitidamente
autoritária, permeada pela noção de progresso dos positivistas. Assim, irá
perseguir aqueles que resistem às disciplinas para a normalização. Artistas e
intelectuais, em especial, serão objeto de desconfiança e considerados
problemas potenciais pelos alienistas. p. 430
Nas últimas décadas do século XIX, surge um novo tipo de
personagem, a histérica. Os romances fazem estudos de temperamento que mais
parecem relatos de enfermidades ou diagnósticos. Descrevem ‘casos de alcova’,
temperamentos patológicos. O médico aparece com a palavra na literatura; as
personagens passam a evidenciar uma obsessiva medicalização da linguagem.
Quanto mais a personagem do médico discursa, dá aulas, mais aumenta sua
credibilidade e sedução. Em geral, as personagens histéricas são enfermas,
órfãs de mãe, e é sugerido que a causa da enfermidade é a quebra do quadro
familiar. A cura está no casamento, na procriação, na aceitação das normas
institucionalizadas. Os traços que estigmatizam a histérica na sociedade da
família, do casamento e da maternidade higienizada são sua orfandade, isto é, a
falta de um modelo feminino e o fato de serem solteiras e fogosas.
O médico, através de suas citações científicas, é que
descobre o “temperamento doentio”, duplamente faltoso, um espaço a ser
preenchido por seus discursos infindáveis. As histéricas quase não falam, os
médicos falam por elas e só lhes resta reproduzirem os sintomas. Resultado:
desmaios, enxaquecas e gritos. A mulher letárgica é socorrida pelo médico, e,
mesmo que ela morra, o doutor permanece cercado de uma aura de sabedoria.
A despeito de muitas vozes contrárias, o mito da fragilidade
feminina, da incapacidade física ou mental da mulher, floresceu ainda neste
final de século. p. 430-1