Sempre fui uma fã inveterada do gênero "Terror/Horror/Thriller", tanto no cinema quanto na literatura. Meu interesse esteve sempre ligado às tramas psicológicas ou fantásticas, à exposição e autópsia dos terrores e possibilidades do subconsciente humano. Nunca gostei de violência gratuita e de festivais sanguinolentos, com toda sinceridade, me sinto entediada com esse tipo de terror. O conteúdo dramático do mundo da fantasia e do terror sempre me fascinou muito mais do que a estética da violência em si. Evidente que também me sinto atraída por alguns elementos estéticos do universo do terror, mas, via de regra, é pelos elementos menos óbvios e mais alegóricos e simbólicos.
Em alguns momentos dos últimos anos, e falo aqui do mainstream, vimos uma escalada nervosa do gênero
no sentido de intensificar e, consequentemente, banalizar a violência. Cenas ou
tramas que chocavam há 30 anos atrás, hoje já não chocam tanto. Os padrões da
arte cinematográfica, e mesmo literária, sempre refletem em boa medida o
contexto sociocultural em que são produzidos. Por isso, é indiscutível que
essa escalada se relaciona com o aumento de nossa tolerância para com a
violência, principalmente devido à exposição constante a ela. O avanço nos
recursos tecnológicos também favoreceu muito a exploração da estética da
violência em prejuízo do conteúdo dramático. Temos uma quantidade absurda de
filmes que são, em última análise, um pretexto para um amontoado de cenas
grotescas de violência com sinopses que não encheriam duas linhas. Isso
acontece também nos filmes de ação.
Contudo, também vemos um movimento do gênero em retorno a um
terror psicológico. Exemplos disso são os recentes Quiet Place (2018) e o controverso Bird Box (2018), onde o terror exige um pouco mais da nossa
imaginação. A tensão psicológica é a tônica constante nos dois casos, e uma das
principais críticas, principalmente à Bird Box, é a de não trazer a explicação
sobre as criaturas, nem mostrá-las. Porventura, as pessoas fiquem realmente
apavoradas quando confrontadas com sua falta de imaginação. Precisam de tudo
explicadinho, nos mínimos detalhes. Quando, onde e porquê.
Nessa semana assisti à dois filmes que, de certa forma, se
conectaram na minha cabeça. O sinistro "The
House That Jack Built (2018), escrito e dirigido pelo sempre intenso Lars
von Trier, e o, quiçá último, Halloween
(2018).
O
Lars von Trier, como de costume, consegue entrelaçar - por meio de uma dinâmica
que resulta numa desconcertante morbidez -, o caráter estético da violência com
uma profundidade existencial crua e perturbadora.
O
Halloween, sinceramente, não achei de
todo ruim, talvez pouco explorado. Problematizou o trauma da
heroína Laurie Strode de uma maneira sincera, mas um pouco superficial.
Falou, uma vez mais, do impasse psiquiátrico que a figura de Michael Myers
encarna, mas chegou no mesmo denominador comum de sempre, ou seja, nosso
psicopata é pure evil (o mal puro), nada mais, sem escrúpulos
ou padrões, com aquela pitada de obsessão e ideia fixa pela Laurie. Foi uma
espécie de "confronto final". A trama come por várias beiradas, mas
não se aprofunda realmente em nada. Perseguição, carnificina, violência
gratuita, fim. Olhei mais em consideração à histórica franquia e à Jamie
Lee Curtis, mas, convenhamos, não tenho
mais muita paciência nem tempo pra perder com esse tipo de filme que não
acrescenta nada à nossa existência.
Minha conexão pessoal entre esses dois filmes, apesar de tão
diferentes, foi a violência explícita à criança. Em Halloween, há
uma cena bastante desnecessária em que Myers esgana um menino
de aproximadamente 10-12 anos. Um pouco mais tarde, quando ele está vagando
pela vizinhança e matando despropositadamente, há uma cena muito tensa em que
ele passa por um berço no qual um bebê chora. Tive a nítida impressão de que ele
iria simplesmente estocar a faca naquele berço, e acho que a intenção da
direção foi exatamente essa. Lembro que eu pensei "será que eles
vão cruzar essa linha?" E acho também que o assassinato anterior,
daquele menino, teve justamente esse propósito de efeito no espectador.
Em The House That Jack Built, foram cruzadas todas as
linhas e a coisa foi bem mais bizarra, apesar de inserida num contexto
dramático melhor construído. O serial killer Jack leva
uma mãe e seus dois filhos (8 e 10 anos, talvez) para um piquenique numa região
de caça. Em fim de contas eles é que se tornam a caça do megalomaníaco que
chama o evento de sua "obra-prima". Não apenas mata os dois meninos,
do alto da sua torre de tiro, como os mata, um de cada vez, na frente da mãe
desesperada. Depois, na sequência desses eventos com um nível de crueldade
poucas vezes atingido no cinema, Jack faz a mãe simular que os filhos estão
vivos, encenando um piquenique grotesco em que ela é obrigada a dar de comer
para o cadáver de um deles. O estômago revira sim. É horrível. Mas piora,
depois Jack ainda vai mutilar o cadáver de um dos meninos para deixá-lo
com um aspecto sorridente. Mas a filmagem do Lars colocou uma luz um pouco
diferente sobre o serial killer, essa
figura, tantas e tantas vezes endeusada e romantizada pelo cinema. Lars
realmente consegue despertar nosso desprezo e nosso ódio por esse cara. Ele não
é um cara fodão, inteligente e sofisticado. Sarcasticamente, o personagem de
Lars se autoproclama Mr. Sophistication, mas não passa de um lunático que
pretende atribuir um significado transcendental ao que não passa de uma perversidade
doentia, e que nasce, sobretudo, de sua profunda incompetência social.
Crianças são sempre um assunto sensível, porque toca num lugar
muito delicado da psique humana. Um lugar compassivo e frágil, de amor
incondicional e de autopreservação. Existem exemplos no cinema no sentido
de crianças perversas, o que por si, já é agressivo e desagradável aos nossos
pensamentos. Alguns exemplos disso são o The
Boy (2015) e o macabro Ich seh ich seh (2014). Podemos citar até mesmo Pet Sematary (1989) ou o Exorcista (1973), pois, por mais que existam elementos
sobrenaturais, também lidam com figuras infantis que despertam em nós um nível
diferente de terror.
Contudo, creio que a violência contra a criança
está no topo das coisas mais horríveis e inconcebíveis, dentro e fora do
cinema. É uma das coisas mais assustadoras que existem. E é um dos tabus no
cinema, uma linha que poucos cruzam, e não à toa. Suscita dentro de nós um
horror impactante, paralisante, uma repulsa e uma revolta. É uma espécie de
último recurso que funciona como algo do tipo "olha, esse é o nível
de maldade desse assassino".
Na obra de Lars funcionou bastante bem, a despeito do choque que provoca,
também provoca uma percepção mais crua e menos romantizada da figura do
psicopata.
Mas talvez à violência contra uma criança no mundo do cinema não
seja o que realmente nos cause choque. Talvez o que realmente mexe com as
nossas entranhas seja a relação entre a arte e a realidade. A arte imita a
vida, reflete ela e sobre ela. Tudo aquilo que está na arte, de alguma forma,
encontra correspondência na realidade e, nesse caso em particular, isso é mais
perturbador do que qualquer outra coisa.
Stephen King fala que o terror é sobre os medos. Sobre um medo,
acima de todos, o medo da morte. As histórias de terror são ensaios de nossas
próprias mortes. Porém, trazem uma enorme vantagem. Se por um lado, nos lembram
ostensivamente de que somos mortais e de que vamos morrer um dia, por outro, também nos lembram de que estamos vivos e isso nos causa um enorme alívio. E é esse
alívio a substância viciante do terror.
"Isso não aconteceu porque os roteiristas e produtores e
diretores desses filmes queriam que acontecesse; aconteceu porque as histórias
de terror ficam mais à vontade naquele ponto de conexão entre o consciente e o
subconsciente, o lugar onde tanto a imagem como a alegoria ocorrem mais
naturalmente e com efeito mais devastador. " (Stephen
King, 1977)