sexta-feira, 12 de abril de 2019

"Envergonhado, o Diabo parou e sentiu que a bondade era terrível..."



Sempre fui uma fã inveterada do gênero "Terror/Horror/Thriller", tanto no cinema quanto na literatura. Meu interesse esteve sempre ligado às tramas psicológicas ou fantásticas, à exposição e autópsia dos terrores e possibilidades do subconsciente humano. Nunca gostei de violência gratuita e de festivais sanguinolentos, com toda sinceridade, me sinto entediada com esse tipo de terror. O conteúdo dramático do mundo da fantasia e do terror sempre me fascinou muito mais do que a estética da violência em si. Evidente que também me sinto atraída por alguns elementos estéticos do universo do terror, mas, via de regra, é pelos elementos menos óbvios e mais alegóricos e simbólicos. 
Em alguns momentos dos últimos anos, e falo aqui do mainstreamvimos uma escalada nervosa do gênero no sentido de intensificar e, consequentemente, banalizar a violência. Cenas ou tramas que chocavam há 30 anos atrás, hoje já não chocam tanto. Os padrões da arte cinematográfica, e mesmo literária, sempre refletem em boa medida o contexto sociocultural em que são produzidos. Por isso, é indiscutível que essa escalada se relaciona com o aumento de nossa tolerância para com a violência, principalmente devido à exposição constante a ela. O avanço nos recursos tecnológicos também favoreceu muito a exploração da estética da violência em prejuízo do conteúdo dramático. Temos uma quantidade absurda de filmes que são, em última análise, um pretexto para um amontoado de cenas grotescas de violência com sinopses que não encheriam duas linhas. Isso acontece também nos filmes de ação. 
Contudo, também vemos um movimento do gênero em retorno a um terror psicológico. Exemplos disso são os recentes Quiet Place (2018)  e o controverso Bird Box (2018), onde o terror exige um pouco mais da nossa imaginação. A tensão psicológica é a tônica constante nos dois casos, e uma das principais críticas, principalmente à Bird Box, é a de não trazer a explicação sobre as criaturas, nem mostrá-las. Porventura, as pessoas fiquem realmente apavoradas quando confrontadas com sua falta de imaginação. Precisam de tudo explicadinho, nos mínimos detalhes. Quando, onde e porquê. 






Nessa semana assisti à dois filmes que, de certa forma, se conectaram na minha cabeça. O sinistro "The House That Jack Built (2018), escrito e dirigido pelo sempre intenso Lars von Trier, e o, quiçá último, Halloween (2018)
     O Lars von Trier, como de costume, consegue entrelaçar - por meio de uma dinâmica que resulta numa desconcertante morbidez -, o caráter estético da violência com uma profundidade existencial crua e perturbadora. 
      O Halloween, sinceramente, não achei de todo ruim, talvez pouco explorado. Problematizou o trauma da heroína Laurie Strode de uma maneira sincera, mas um pouco superficial. Falou, uma vez mais, do impasse psiquiátrico que a figura de Michael Myers encarna, mas chegou no mesmo denominador comum de sempre, ou seja, nosso psicopata é pure evil (o mal puro), nada mais, sem escrúpulos ou padrões, com aquela pitada de obsessão e ideia fixa pela Laurie. Foi uma espécie de "confronto final". A trama come por várias beiradas, mas não se aprofunda realmente em nada. Perseguição, carnificina, violência gratuita, fim. Olhei mais em consideração à histórica franquia e à Jamie Lee Curtis,  mas, convenhamos, não tenho mais muita paciência nem tempo pra perder com esse tipo de filme que não acrescenta nada à nossa existência.   


Minha conexão pessoal entre esses dois filmes, apesar de tão diferentes, foi a violência explícita à criança. Em Halloween, há uma cena bastante desnecessária em que Myers esgana um menino de aproximadamente 10-12 anos. Um pouco mais tarde, quando ele está vagando pela vizinhança e matando despropositadamente, há uma cena muito tensa em que ele passa por um berço no qual um bebê chora. Tive a nítida impressão de que ele iria simplesmente estocar a faca naquele berço, e acho que a intenção da direção foi exatamente essa. Lembro que eu pensei "será que eles vão cruzar essa linha?" E acho também que o assassinato anterior, daquele menino, teve justamente esse propósito de efeito no espectador. 
Em The House That Jack Built, foram cruzadas todas as linhas e a coisa foi bem mais bizarra, apesar de inserida num contexto dramático melhor construído. O serial killer Jack leva uma mãe e seus dois filhos (8 e 10 anos, talvez) para um piquenique numa região de caça. Em fim de contas eles é que se tornam a caça do megalomaníaco que chama o evento de sua "obra-prima". Não apenas mata os dois meninos, do alto da sua torre de tiro, como os mata, um de cada vez, na frente da mãe desesperada. Depois, na sequência desses eventos com um nível de crueldade poucas vezes atingido no cinema, Jack faz a mãe simular que os filhos estão vivos, encenando um piquenique grotesco em que ela é obrigada a dar de comer para o cadáver de um deles. O estômago revira sim. É horrível. Mas piora, depois Jack ainda vai mutilar o cadáver de um dos meninos para deixá-lo com um aspecto sorridente. Mas a filmagem do Lars colocou uma luz um pouco diferente sobre o serial killer, essa figura, tantas e tantas vezes endeusada e romantizada pelo cinema. Lars realmente consegue despertar nosso desprezo e nosso ódio por esse cara. Ele não é um cara fodão, inteligente e sofisticado. Sarcasticamente, o personagem de Lars se autoproclama Mr. Sophistication, mas não passa de um lunático que pretende atribuir um significado transcendental ao que não passa de uma perversidade doentia, e que nasce, sobretudo, de sua profunda incompetência social.


Crianças são sempre um assunto sensível, porque toca num lugar muito delicado da psique humana. Um lugar compassivo e frágil, de amor incondicional e de autopreservação. Existem exemplos no cinema no sentido de crianças perversas, o que por si, já é agressivo e desagradável aos nossos pensamentos. Alguns exemplos disso são o The Boy (2015) e o macabro Ich seh ich seh (2014). Podemos citar até mesmo Pet Sematary (1989) ou o Exorcista (1973), pois, por mais que existam elementos sobrenaturais, também lidam com figuras infantis que despertam em nós um nível diferente de terror.  
Contudo, creio que a violência contra a criança está no topo das coisas mais horríveis e inconcebíveis, dentro e fora do cinema. É uma das coisas mais assustadoras que existem. E é um dos tabus no cinema, uma linha que poucos cruzam, e não à toa. Suscita dentro de nós um horror impactante, paralisante, uma repulsa e uma revolta. É uma espécie de último recurso que funciona como algo do tipo "olha, esse é o nível de maldade desse assassino". Na obra de Lars funcionou bastante bem, a despeito do choque que provoca, também provoca uma percepção mais crua e menos romantizada da figura do psicopata.  


Mas talvez à violência contra uma criança no mundo do cinema não seja o que realmente nos cause choque. Talvez o que realmente mexe com as nossas entranhas seja a relação entre a arte e a realidade. A arte imita a vida, reflete ela e sobre ela. Tudo aquilo que está na arte, de alguma forma, encontra correspondência na realidade e, nesse caso em particular, isso é mais perturbador do que qualquer outra coisa.
Stephen King fala que o terror é sobre os medos. Sobre um medo, acima de todos, o medo da morte. As histórias de terror são ensaios de nossas próprias mortes. Porém, trazem uma enorme vantagem. Se por um lado, nos lembram ostensivamente de que somos mortais e de que vamos morrer um dia, por outro, também nos lembram de que estamos vivos e isso nos causa um enorme alívio. E é esse alívio a substância viciante do terror. 



"Isso não aconteceu porque os roteiristas e produtores e diretores desses filmes queriam que acontecesse; aconteceu porque as histórias de terror ficam mais à vontade naquele ponto de conexão entre o consciente e o subconsciente, o lugar onde tanto a imagem como a alegoria ocorrem mais naturalmente e com efeito mais devastador. " (Stephen King, 1977)