quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Coleção O guia do mochileiro das galáxias - Douglas Adams

A saga macrocósmica futurista do inglês Douglas Adams, é sem dúvida um dos humores mais inteligentes e sarcásticos que já li. Dotado de um senso crítica afiado, e de uma perspectiva ampla sobre a humanidade, o autor transmite na sua obra uma reflexão vertiginosa sobre a vida, o universo e tudo mais. Utiliza o humor como método suave de pautar questões filosóficas e paradoxos existenciais. Traz em primeiro plano alegorias como a dos "Vogons" pra fazer uma alusão clara ao nosso próprio sistema burocrático, que já chega às raias da loucura. Assim, como também trata de forma crítica o nosso modelo econômico e social de vida. São cinco livros muito breves que realmente vão mudar seu horizonte de análise. Adorei! Seguem alguns trechos.

O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior ainda. p. 25

Como é sabido, a vida apresenta uma série de problemas, dos quais os mais importantes são, entre outros, Por que as pessoas nascem? Por que elas morrem? Por que elas passam uma parte tão grande do tempo entre o nascimento e a morte usando relógios digitais?. p. 122

[O guia do Mochileiro das Galáxias, 1979.]

Há muitos anos este era um planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria. Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés, amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz. p. 55

O problema com a maioria das formas de transporte é que basicamente não valiam a pena. Na Terra – quando havia uma Terra, antes de ela ter sido demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial - o problema eram os carros. As desvantagens envolvidas em arrancar toneladas de gosma preta e viscosa do subsolo, onde a tal gosma tinha ficado escondida em segurança e longe de todo o mal, transformá-la em piche para cobrir o chão, fumaça para infestar o ar e espalhar o resto pelo mar, tudo isso parecia anular as aparentes vantagens de se poder viajar mais rápido de um lugar para o outro. Especialmente quando o lugar a que se chegava tinha ficado, por conta dessa coisa toda, muito parecido com o lugar de que se tinha saído, ou seja, coberto de piche, cheio de fumaça e com poucos peixes. p. 118

- O Jardim do Éden. A árvore. A maçã. Essa parte, lembra? O tal de Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz “vocês dois podem fazer o que vocês quiserem aqui, mas não comam essa maça”. Obviamente eles comem a maçã, então Deus pula de trás de uma moita gritando: “Peguei vocês, peguei vocês!” Não faria a menor diferença se eles não tivessem comido a maçã.
- Por que não?
- Olha, quando você está lidando com alguém que tem esse tipo de mentalidade – mais ou menos a mesma das pessoas que deixam um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem -, pode ter certeza de que ele não vai desistir. Ela vai acabar te pegando.
p. 150-1


[O restaurante no fim do Universo, 1980.]


O campo de Problema de Outra Pessoa e muito mais simples e mais eficaz. Melhor ainda, pode funcionar durante mais de 100 anos usando uma unica bateria de lanterna. Isso porque ele conta com a tendência natural das pessoas de não verem nada que não querem, que não estão esperando ou que não podem explicar.  

[A vida, o universo e tudo mais, 1982.]


Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido.
Girando em torno deste sol, a uma distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há um planetinha verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes de primatas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que relógios digitais são uma grande idéia.
Este planeta tem – ou melhor, tinha – o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes.
E assim o problema continuava sem solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as que tinham relógios digitais.
Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.

Um dos maiores benfeitores de todas as formas de vida foi um homem que não conseguia se concentrar em qualquer trabalho que estivesse fazendo.
Foi brilhante?
Certamente.
Foi um dos maiores engenheiros genéticos de sua geração ou de qualquer outra, inclusive várias que ele mesmo projetou?
Sem dúvida.
Então, quando o seu mundo se viu ameaçado por invasores terríveis de uma estrela distante, que ainda estavam muito longe, mas viajavam bem rápido, foi conduzido a um lugar onde pudesse ficar completamente isolado, protegido pelos mestres de sua raça, com instruções para criar uma linhagem de superguerreiros fanáticos, prontos para resistir e para derrotar os temidos invasores. Ele tinha que criá-los o mais rápido possível e disseram-lhe: "Concentre-se!"
Então ele se sentou próximo a uma janela e contemplou um jardim em pleno verão e projetou, projetou e projetou, mas, inevitavelmente, distraiu-se um pouco com outras coisas e, quando os invasores já estavam praticamente em órbita em torno deles, inventou uma nova raça de supermoscas que podiam descobrir, por conta própria, como voar pela metade aberta de uma janela entreaberta e também um interruptor para desligar crianças. As comemorações dessas incríveis descobertas pareciam fadadas a durar muito pouco, porque o desastre era iminente — as naves espaciais já estavam pousando. Mas, para a surpresa de todos, os temíveis invasores, que, como a maioria das raças beligerantes, só estavam comprando briga com os outros porque não sabiam lidar com seus problemas domésticos, ficaram tão impressionados com as invenções extraordinárias que decidiram participar das comemorações e foram imediatamente persuadidos a assinarem uma série de acordos comerciais abrangentes e a instituírem um programa de intercâmbio cultural. E, em uma surpreendente inversão da prática tradicional na conduta desses assuntos, todos os envolvidos viveram felizes para sempre.

[Até mais, e obrigado pelos peixes, 1984]