segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Dexter New blood: Um final inesperado, desconfortável e coerente.

Obs.: Esse texto contém spoilers e é dedicado, principalmente, mas não somente, àqueles que já assistiram o final da nona temporada. 



Enquanto fãs, nós esperamos ansiosamente pelo tema animado e clássico da abertura de Dexter. Decepcionados, de início nos escapa o porquê da sua ausência. Com o tempo percebemos que essa temporada tem um timbre muito mais sombrio, incompatível com o cinismo alegre da abertura original...

 




Ao longo das oito temporadas anteriores, nós assistimos incansavelmente o serial killer Dexter Morgan se safando de seus crimes das formas mais inacreditáveis, e às custas de muitas vidas e de personagens chaves da trama do seriado. Lembremo-nos, pois, do trágico desfecho da oitava e última temporada, com a morte de sua irmã Debra Morgan. Uma personagem extremamente carismática e importante na vida de Dexter.

Com certeza, não é à toa que essa lembrança nos é provocada pela presença dela, já no início de Dexter New Blood. Porém, na nova trama ela assume o papel de contrapeso psicológico, que até então fora desempenhado pelo pai dos dois, Harry. Dessa feita, ela é quem está na mente de Dexter o tempo inteiro contra-argumentado os seus impulsos mais espontâneos de serial killer. A dinâmica entre Debra e Dexter pode ser entendida simbolicamente como o conflito permanente entre o sentimento de culpa e a autojustificativa do dark passenger, e isso é fundamental para entendermos o desfecho da nona temporada. Porque essa última temporada na verdade não é sobre o Dexter, e sim sobre o seu filho, Harrison.

Então, o que vemos é a triste jornada de um adolescente, que depois de sofrer uma situação dolorosa de abandonos sucessivos, voluntários ou involuntários, segue em busca de um pai que – ele descobriu - forjou a própria morte e o abandonou. Tudo se torna ainda mais doloroso se lembrarmos o amor que Dexter dedica ao Harrison até o final fatídico da temporada oito, quando ele é levado a forjar a própria morte e desaparecer, deixando Harrison com Hannah, que anos depois morre de câncer, deixando Harrison para o sistema de adoção, onde o menino vai sofrer novos traumas e abandonos. O abandono aqui é uma chave muito importante de leitura.

Harrison e Dexter compartilham um fato importante: ambos nasceram em sangue. Ambos presenciaram a morte violenta de suas mães. Rita, mãe de Harrison, sendo uma das mortes na conta de Dexter, como consequência de sua irresponsabilidade no trato com o serial killer Trinity. Logo, o trauma de Harrison também pode ser colocado na conta do nosso carismático serial killer. Portanto, Dexter tem dois fantasmas em relação ao filho: Seria possível ter passado seu dark passenger geneticamente para o filho? & Presenciar a morte de Rita, ainda que muito jovem, poderia ter feito nascer em Harrison um dark passenger, como ele acredita que tenha acontecido com ele próprio?

O que logo percebemos em Harrison é uma raiva mal controlada e mal direcionada. Um comportamento errático, agressivo e violento, fruto direto de uma incapacidade de se conectar com o seu pai que, a despeito de todo o esforço, mantém um abismo de segredos intransponível entre os dois. O adolescente busca de alguma forma uma justificativa plausível do abandono cruel que sofrera por parte do pai, ao mesmo tempo em que busca uma conexão de pai e filho.

Dexter – e nós também enquanto telespectadores – é levado a ler o comportamento de Harrison como a possível presença de um dark passenger. O dilema que ele vive então é o de se abrir ou não com o filho. Baseado, finalmente, na crença de que Harrison é como ele, e na reivindicação da responsabilidade em passar “o código” ao filho, Dexter resolve revelar a verdade irrestritamente ao jovem.

Nesse momento nós vemos uma virada tocante na dinâmica entre pai e filho. Quando o mistério do motivo do abandono é finalmente exposto e explicado, Harrison tem uma espécie de libertação da raiva. Isso fica muito claro nas cenas subsequentes à revelação de Dexter ao seu filho, principalmente, após o assassinato de Kurt, do qual o adolescente participa como expectador e ouvinte. Até esse momento ainda somos levados a pensar que Harrison pode ser um psicopata como o pai. Porém, logo somos instados a questionar essa ideia, pois o personagem dele muda de acordo com a evolução da dinâmica com seu pai.

A aceitação e o acolhimento, por parte de Harrison, da condição monstruosa de seu pai, residem muito mais na possibilidade de conexão do que na identificação com este. O caminho que ele encontra para chegar até o pai não é a partir de um dark passenger compartilhado, mas sim pelo pai real que ele finalmente vê revelado diante de si. Toda a raiva dá lugar a um menino carinhoso e atencioso. Portanto, a fonte da raiva de Harrison não era um suposto dark passenger, que ele teria herdado de Dexter, mas algo muito mais óbvio, o abandono incompreendido que sofrera pelo pai.

A frase final de Harrison para seu pai é por demais dolorosa, e traz à tona aquilo que penso ser a essência do New Blood, a expiação e a desconstrução de Dexter como um suposto anti-herói: 

- Eu não tenho raiva porque sou como você, eu tenho raiva por causa de você.

Um final bastante doloroso, e inesperado, pois talvez esperássemos que pai e filho, se reconectando e sendo iguais, matassem juntos e felizes para sempre, combatendo criminosos por meio do “código”, algo deveras cínico, e que nos leva para uma outra reflexão desconfortável que o seriado propõe, pois aponta de forma afiada o dedo para o telespectador questionando finalmente sua torcida irrefletida pelo mal. Buscamos argumentos, assim como Dexter luta e sofre por buscar durante as nove temporadas inteiras, de que o quê ele faz é certo e um bem para a sociedade. “Ele limpa o lixo e torna o mundo um lugar melhor”. Afinal, “Quantas vidas ele salvou tirando a vida das suas vítimas?”

                Mas, no fim de contas, o que o desfecho do seriado nos faz lembrar de forma pungente é que Dexter é um psicopata frio e perigoso, com apenas uma leve sombra de humanidade naquilo que se refere ao seu filho, a única forma de amor que reconhece ter sentido, como ele mesmo fala em suas últimas palavras. Em que pese essa sombra de amor ao filho, todas as suas escolhas levaram inexoravelmente ao sofrimento incalculável não só deste, como de todos em torno de Dexter, palavras do próprio filho nos momentos dramáticos finais.

                Harrison matar seu pai é simbólico em grande medida, mas também é um ato de misericórdia, e porque não dizer também de libertação, já que é exatamente esse o sentimento que a fantástica atuação final de Michael C. Hall nos inspira. Um sentimento de libertação final e de alívio.

                O jovem finalmente compreende a atitude do pai, e percebe que ele esteve certo em se afastar, em ter fingido a própria morte. Mas também compreende que ele próprio precisava dessa jornada para entender o porquê do abandono paterno e superar o sentimento de rejeição, que era a fonte de toda sua raiva. 

                A reflexão amarga que nos fica é: existe alguma justificativa plausível para o mal? O mal causado àquele que é mau é de alguma forma justificável? E a cadeia de acontecimentos que essa pretensa justiça engendra em si não pode causar ainda mais mal no mundo?

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A bíblia em Carl Sagan

“Sempre que lemos as histórias obscenas, as orgias voluptosas, as execuções cruéis e torturantes, o espírito inexorável de vingança que impregnam mais da metade da Bíblia, seria mais coerente dizer que ela é a palavra de um demônio do que a palavra de Deus. Ela [...] tem servido para corromper e brutalizar a humanidade”. [Thomas Paine]

[...] Que área do empreendimento humano não é moralmente ambígua? Até as instituições populares que pretendem nos dar conselhos sobre comportamento e ética parecem carregadas de contradições. Considerem-se os aforismos. A pressa é inimiga da perfeição; mas um passo dado a tempo vale por nove. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; mas quem não arrisca, não petisca. Onde há fumaça, há fogo; mas o hábito não faz o monge. Um centavo poupado é um centavo ganho; mas não se pode levá-lo para o túmulo. Quem hesita está perdido; mas os tolos entram correndo onde até os anjos têm medo de pisar. Duas cabeças pensam melhor do que uma; mas comida em que muitos mexem, se não sai crua ou queimada, sai insossa ou salgada. Houve época em que as pessoas planejavam ou justificavam suas ações baseando-se nesses lugares-comuns contraditórios. Qual é a responsabilidade moral do aforista? Ou do astrólogo solar, do leitor de tarô, do profeta dos tablóides?

[...] considerem-se as principais religiões oficiais. Em Miquéias, recebemos ordens de agir com justiça e amar a misericórdia; no Êxodo, somos proibidos de cometer homicídio; no Levítico, a ordem é amar o nosso próximo como a nós mesmos; e, nos Evangelhos, somos instados a amar os nossos inimigos; Entretanto, pensem nos rios de sangue derramado pelos seguidores ardorosos dos livros em que se encontram incrustadas essas exortações de boa intenção. Em José e na segunda metade de Números, celebra-se o assassinato em massa de homens, mulheres, crianças e animais domésticos em inúmeras cidades por toda a terra de Canaã. Jericó é arrasada num kherem, uma “guerra santa”. A única justificativa oferecida para essa matança é a afirmação dos homicidas de que, em troca da circuncisão de seus filhos e da adoção de um conjunto particular de rituais, os seus ancestrais teriam recebido há muito tempo a promessa de que a terra era sua. Não se consegue tirar da Sagrada Escritura nem um vestígio de sentimento de culpa, nem um resmungo de inquietação patriarcal ou divina com essas campanhas de extermínio. Em vez disso, José “destruiu tudo o que respirava, como o Senhor Deus de Israel havia ordenado” (José, 10:40). E esses acontecimentos não são incidentais, mas centrais para o principal moto narrativo do Velho Testamento. Histórias semelhantes de assassinatos em massa (e, no caso dos amalecitas, genocídio) podem ser encontrados nos livros de Saul, Ester, e em outros lugares da Bíblia, sem que apareça nenhuma angústia de dúvida moral. Tudo isso certamente perturbou os teólogos liberais de eras posteriores. [...] Diz-se adequadamente que o diabo pode “citar a Escritura para seus fins”. A Bíblia está cheia de tantas histórias de moral contraditória que toda geração encontra nela justificativa para quase todas as ações que propõe – de incesto, escravidão e homicídio em massa ao amor mais refinado, coragem e abnegação. E essa desordem moral de múltipla personalidade não se restringe ao judaísmo e ao cristianismo. Pode-se encontrá-la profundamente entranhada no Islã, na tradição hindu, de fato em quase todas as religiões do mundo. Talvez não sejam os cientistas, mas as pessoas que são moralmente ambíguas.


O mundo assombrado pelos demônios. Carl Sagan, 1996.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Antropologia I

...

Há em mim uma batalha permanente e oscilante entre um instinto de autopreservação e um impulso autodestrutivo.

A vida é autodestrutiva, porque da destruição vem a renovação da vida, e dessa renovação vem a eternidade da força da vida. A vida que transcende o indivíduo, o cosmos.

Me pergunto se o instinto e o impulso estão conectados de alguma forma com o mistério do cosmos. Ou serão frutos da dimensão do indivíduo em sociedade? Ou uma mistura híbrida dos dois? Afinal... a civilização também é filha do cosmos... 

O impulso autodestrutivo acelera o processo inevitável da destruição. Será um manifestação inconsciente de autopunição? Ainda que muitos atos autodestrutivos estejam a princípio na categoria de prazeres e deleites, como o consumo de álcool, cigarros e drogas, eles são, em última análise, atos autodestrutivos.

Será que é uma troca consciente? Estou destruindo um pouco de mim em troca de um prazer, e é isso, nada mais justo? Será simples assim? A vida me consome, por isso vou consumi-la também?

Seremos nós totalmente reduzíveis à antropologia?


...

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Narcisismo social

Às vezes - quase sempre nos últimos tempos deste país, e deste mundo - bate um desalento ao ver tanto ódio. Tantas neuroses mal resolvidas virando política de estado. A imensa deficiência na habilidade de interpretação de texto é exatamente proporcional ao ódio que se quer destilar, colocar para fora, no mundo. Quase num ímpeto inconsciente de vingança e rancor por uma frustração que não se quer assumir, e que serve de combustível para um sentimento de cólera errante, não identificado, camuflado como uma aberrante postura ideológica. 

Ou talvez o ódio cegue, como o clichê fala. Mais do que isso, talvez esse sentimento potente de raiva não apenas cegue, mas distorça, deforme, desfigure, sufoque o sentido real daquilo que o raivoso quer atacar. A distorção alimenta o ciclo de raiva e ressentimento. 

O ressentido vê tudo através de um filtro rancoroso. Rancor que nasce da inabilidade de olhar para si mesmo e de refletir sobre si mesmo, e que projeta no mundo a sua incapacidade de lidar com o abismo dentro de si, com as contradições humanas, com os infinitos graus de cinza da realidade. Pretende uma visão reducionista da vida, negando a sua complexidade. Arrogantemente, acredita que a sua perspectiva limitada é a única chave de leitura possível do mundo. Aplica seus padrões viciados e limitados para julgar o intrincado e indissolúvel tecido da vida. 

O analfabetismo emocional talvez seja o pior dos nossos males. Contamina tudo, deturpa, corrompe. Atribui as cores que eu quero à tudo que me cerca. Mas isso por si mesmo é natural. Vermos o mundo através dos nossos filtros. O analfabetismo mesmo, começa quando brigo e imponho que o meu filtro é o único filtro, menosprezando e desconsiderando cinicamente a pluralidade de perspectivas, negando a riqueza da vida.

O analfabetismo começa quando me fecho no meu mundo de interesse individual e não vejo os outros. Quando o bem comum se transmuta no meu bem pessoal apenas. Quando não pratico a empatia. Quando eu não consigo entender que o mundo é mais do que posso ver. 

"O mundo é mais do que conhecemos..."


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

. terror .

 

Não há prazer como o terror. Se fosse possível sentar-se sem ser visto entre duas pessoas em qualquer trem, sala de espera ou escritório, a conversa ouvida rondaria uma e outra vez sobre este tema. Poderia parecer que se tratava de um assunto completamente distinto: a situação do país, um bate-papo despreocupado sobre as mortes na estrada, o aumento dos preços dos dentistas, mas pondo a nu a metáfora, a insinuação, ali, encerrada no coração do discurso, encontra-se o terror. Enquanto aceitamos sem discussão a natureza de Deus e a possibilidade de vida eterna, ruminamos alegremente as minúcias da miséria. A síndrome não tem limite, tanto nos banheiros como nas salas de aula, se repete o mesmo ritual. Com a inexorabilidade de uma língua que se retorce para explorar um dente dolorido, voltamos uma, duas ou mil vezes a nossos medos, nos sentando para discutir sobre eles com a impaciência de um homem faminto ante um prato cheio e fumegante.

Não há prazer como o terror. Enquanto ele for de outros.


Clive Barker, Livros de Sangue 1, 1984.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

O Irlandês (2019)


Desculpem-me, mas já adianto que esse texto não vai lamber as bolas do Scorsese. Ouvi tanto sobre esse filme, todos passando pano, que já estava me sentindo culpada por não ter assistido. Até que enfim resolvi começar a empreitada de 3 horas e 29 minutos. Não consegui ver tudo num talagaço só, demorei três dias pra concluir essa dose cavalar de testosterona na veia. 


Houve uma época em que eu gostava desse tipo de filme. Vi muitos deles, que praticamente não diferem em nada entre si - inclusive nem os atores! - Era uma vez na América (1984), Cassino (1995), Scarface (1983), Fogo Contra Fogo (1995), Os Bons Companheiros (1990), Os Infiltrados (2006), Desafio no Bronx (1993), a trilogia de O Poderoso Chefão (72,74 e 90), com certeza muitos mais que não me recordo agora, e muitos mais que não cheguei a ver. Alguns biográficos, outros baseados em fatos reais. 

Como eu disse, houve um tempo em que olhei muito e gostava desses filmes. Continuo reconhecendo suas qualidades de roteiro, atuações impecáveis, fotografia, reconstituição histórica, etc. São bons filmes. Inclusive O irlandês. As atuações do Pacino, do De Niro e do Pesci estão demais, mesmo com o auxílio de toda a maquiagem para as transições de idade. 
Contudo, alguma coisa dentro de mim já não tem mais paciência, e acha incrivelmente previsível essas tramas: Crime organizado, corrupção política, traições, grandes esquemas de lavagem de dinheiro e, claro, muita violência. Eu sei que em grande medida eles refletem aspectos da realidade, e isso é o que mais me incomoda: grande parte dos problemas do mundo está intimamente ligado à essa lógica masculina de comportamento. No fim, tudo se resume a conflitos criminosos e extremamente narcisistas.

Hoje em dia tenho uma sensibilidade muito diferente para filmes, e acho esses filmes carregados de testosterona desconfortáveis, rasos e maçantes. Por mais que ao final a moral seja sempre "o crime não compensa", há algo extremamente apelativo na forma como a violência é mostrada, as armas, os tiros, os assassinatos e o poder que deles emana. Não venham me dizer que no final não ficaram com pena do Frank. Não venham me dizer que não romantizaram a figura de um assassino frio, como sendo um cara fodão. A estética do crime e da violência tem um apelo muito forte dentro de nós. Na maior parte do tempo a história nos inspira simpatia pelo Frank, glamouriza o universo do crime, e é isso que me causa extremo desconforto e reflexão. 

Nunca os atributos "filme masculino" ou "filme carregado de testosterona" fez tanto sentido, afinal, notaram que praticamente não há falas das personagens femininas? Mesmo a personagem da Anna Paquin, que é quem traz o elemento de crítica do filme, praticamente não abre a boca. E o que quero dizer com isso não é que o filme deveria ou não ter mais voz feminina, mas justamente fazer perceber o quão masculino é esse universo.

Esse tipo de filme não é mérito do Scorsese. Ele fez muitos filmes bons que fogem dessa trama. 

Se você queria assistir O Irlandês, assista, é um bom filme. Mas quiçá meu texto faça com que você perceba essas nuances e reflita sobre a perspectiva que expus aqui. Se isso acontecer já me dou por satisfeita.



domingo, 26 de maio de 2019

Notas sobre o casamento, ou sobre o fim de um.


   



     Depois de quase 9 anos num relacionamento, recentemente passei - ainda estou passando? - pelo processo dolorido de uma separação. Ainda mais porque com um filho de 5 anos envolvido. Não vou mentir dizendo que foi, ou que está sendo, fácil, mas aos poucos as coisas vão se ajeitando e vamos nos adaptando à uma nova circunstância. 
    Para o bem e para o mal, uma separação, depois de um relacionamento de tantos anos, nos arranca daquela poltroninha quentinha e aconchegante da famosa zona de conforto e nos posiciona milimetricamente em frente a um espelho existencial. Cara a cara consigo mesma, muitas vezes o abismo que surge parece quase intransponível. Você está tão acostumada a se ver dentro daquela composição, daquele todo, que quando de repente se vê fora se sente um pouco perdida. Todas as supostas verdades foram sendo desmembradas, não resistiram ao escrutínio da realidade dos anos. Você atravessou o túnel do casamento e saiu do outro lado. A perspectiva agora é totalmente diferente, seja no tocante à relacionamentos amorosos, ou sobre o próprio casamento. As belas ilusões se desvaneceram, e eu não quero que isso soe melodramático, mas é mais ou menos por aí. 
     Combinação de alívio e angústia, uma separação é, sobretudo, um momento de autorreflexão e uma nova jornada de autoconhecimento. E, além de lidar com esse diálogo interno constante, cheio de medos e inseguranças, você ainda tem que lidar com o diálogo com o mundo externo, a sociedade, os parentes, os amigos, que sempre querem o seu melhor, claro, mas que de vez em quando conseguem colocar aquela pulguinha atrás da sua orelha que traz tantas e tantas dúvidas que você já julgava sanadas e resolvidas. Volte duas casas e reflita mais um pouco. 
     E, como numa montanha russa, você vai oscilar entre momentos de absoluto bem estar e de desânimo profundo. Entre momentos de esperança e momentos de ceticismo. Entre momentos de certezas e momentos de dúvidas. Você vai olhar para o seu filho e vai chorar se perguntado se está fazendo as coisas da melhor forma. Você vai se sentir sozinha naquele domingo a noite e vai se sentir carente. Vai fazer coisas estúpidas e que não correspondem a quem você é e ao que acredita. Mas, você também já não está tão certa sobre quem é e sobre o que acredita. Terão dias em que você vai deitar a cabeça no travesseiro e vai dormir instantânea e profundamente, e também haverão dias em que você vai rolar na cama por horas a fio em ansiedade. Vai olhar para o chão do banheiro de forma catatônica pensando em coisas que foram, que poderiam ser e que não serão.  
      Mas você também vai receber amigos e vai rir muito, se divertir muito. Vai sair e conhecer pessoas novas. Quem sabe sentir aquelas borboletas no estômago novamente e que você achava que nunca mais fosse sentir. Vai ter novas expectativas pro futuro e para os finais de semana. Vai descobrir novos sorrisos seus, novas vontades, vai se permitir e redescobrir as formas do sentir. Vai olhar o mundo com o filtro da maturidade que, se não é um filtro assim tão cor de rosa, tem a vantagem de ser mais honesto e menos ilusório. 
     E afinal de contas, não é exatamente sobre isso que trata-se a vida, de enfrentar a passagem do tempo de frente, com coragem e também com medo? Com sorrisos e também com lágrimas? A vida é sobre ciclos, sobre aprender e, principalmente, sobre sofrer, que é de onde tiramos nossas melhores lições. Todo significado da vida é extraído da dinâmica entre sofrer e ser feliz, entre fazer sofrer e fazer feliz. Todo o resto não passa de presunções não confirmadas...

Enfim, eu acredito muito na sincronicidade da vida. Logo que me separei, me caiu nas mãos, totalmente por acaso, o livro Coisas da Vida, da escritora gaúcha Martha Medeiros.  Que grata surpresa essa leitura me foi. Aquietou muitas ansiedades minhas e deu pílulas de nanicolina para muitos monstros que me assombravam. Como ela mesma disse em uma de suas crônicas "O tempo  ajustou  minhas  retinas e deu proporção às minhas ilusões. O  tempo  altera  o  tamanho  das  coisas."
     Esse texto nasceu sobretudo da reflexão sobre muitas das passagens desta obra, principalmente sobre aquelas que tratavam de forma leve e descontraída de questões densas e profundas sobre o casamento e relacionamentos, sobre maternidade e feminilidade. Selecionei alguns trechos que vem ao encontro da minha reflexão e que me marcaram para compartilhar, seguem:


"Não há nada de errado em curtir a mansidão de um relacionamento  que  já  não  é  apaixonante,  mas  que  oferece  em  troca  a  benção  da  intimidade e do silêncio compartilhado, sem ninguém mais precisar  se  preocupar  em  mentir  ou  dizer  a  verdade.  Quando  se  está  há  muitos anos com a mesma pessoa, há grande chance de ela conhecer  bem  você,  já  não  é  preciso  ficar  explicando  a  todo  instante  suas  contradições, motivos, desejos. Economiza-se muito em palavras, os  gestos falam por si. Quer coisa melhor do que poder ficar quieto ao  lado de alguém, sem que nenhum dos dois se atrapalhe com isso?  Longas  relações  conseguem  atravessar  a  fronteira  do  estranhamento,  um  vira  pátria  do  outro.  Amizade  com  sexo  também é um jeito legítimo de se relacionar, mesmo não sendo bem  encarado pelos caçadores de emoções. Não é pela ansiedade que se  mede  a  grandeza  de  um  sentimento.  Sentar,  ambos,  de  frente  pra  lua,  havendo  lua, ou  de frente pra chuva,  havendo chuva, e juntos  fazerem  um  brinde  com  as  taças,  contenham  elas  vinho  ou  café,  a  isso  se  chama  trégua."


"Quantas  vezes  fazemos  exatamente  isso:  em  vez  de  assumir  que  estamos  cansados,  frustrados,  derrubados  por  uma  desilusão,  optamos por fingir que está tudo na mais perfeita ordem e, para não  passar  pelo  estresse  de  romper  um  casamento/pedir  demissão/trocar  de  cidade/ou  o  que  for,  a  gente  simplifica:  se  divorcia do que está sentindo - ou seja, de nós mesmos. E botamos  um farsante pra existir no nosso lugar.  Romper  -  o  que  quer  que  seja  -  não  é  fácil.  E  tampouco  é  um  ato  solitário.  Ao  se  divorciar  de  sua  mulher  ou  marido,  você  inevitavelmente envolverá os sentimentos dos seus filhos e de seus  familiares, pra citar apenas os mais chegados.  Sua  decisão  vai  interferir  na  rotina  dos  outros.  Fará  com  que  eles  sofram  junto  com  você. Assim é: todos os  laços que  desejamos cortar repercutem  nas pessoas que amamos, o  que  torna  tudo  mais  difícil."

"No livro  Monogamia,  do psicanalista Adam Philips, há um trecho em  que  ele  diz  que  o  esconderijo  mais  aconchegante  é  aquele  em  que  conseguimos  esquecer  do  que  estamos  nos  escondendo.  Mais:  é  aquele  em  que  até  esquecemos  que  estamos  escondidos.  E  conclui:  "Formamos casais porque é impossível se esconder sozinho".  O casamento como esconderijo. Eu nunca havia pensado nisso.  Uma  pessoa  avulsa  é  uma  pessoa  com  sua  solidão  escancarada,  é  uma  pessoa  que  necessita  fazer  contatos  e  explicar  quem  é,  o  que  faz,  do  que  gosta.  Uma  pessoa  sozinha  é  visada,  está  exposta,  julgam  que  ela  tem  mais  tempo,  está  mais  disponível,  uma  pessoa  sozinha  não  tem  onde  se  esconder.  Já  duas  pessoas  juntas  escondem-se  das fantasias e  do julgamento alheio, se escondem  de  sua  própria  vulnerabilidade  e  dos  seus  próprios  segredos,  duas  pessoas  juntas  protegem-se  oficialmente,  mesmo  sem  ter  a  consciência de que sua união também é isso, um esconderijo."

"A  sociedade  costuma  cobrar  relações  amorosas  daqueles  que  escolheram  viver sozinhos, ou que estão sozinhos por contingência  do destino. Os solitários, os ermitãos, os donos da própria vida são  tratados  como  se  estivessem  à  margem,  mas  são  os  casados  os  verdadeiros  excluídos,  porque  uma  vez  cumpridores  de  uma  expectativa  social,  perdem  seu  potencial  para  surpreender,  não  chamam mais a atenção, passam a ser apenas fazedores de  filhos e  de  dívidas,  consumidores  de  imóveis  de  três  dormitórios  e  carros  utilitários, viram alvo apenas das corretoras de seguro e dos agentes  de viagem. Dentro de  um casamento, julga-se que há  duas pessoas  realizadas,  completamente  a  salvo  da  angústia  existencial,  da  carência afetiva, dos traumas de infância, da insanidade, do vício e  dos  ímpetos  -  imagine,  ímpetos:  casais  jamais  ousariam  fazer  algo  sem pensar, sem conversar muitas vezes antes, durante e depois do  jantar.  A solidão, que sempre pareceu nos proteger, na verdade nos coloca  no  centro  das  atenções,  permite  que  coloquem  o  dedo  nas  nossas  feridas.  Já  o  casamento  nos  tira  da  prateleira,  nos  resguarda,  nos  esconde tão bem e tão sem alarde que a gente nem percebe que está  escondido. Que ironia: o casamento é que é underground." 


"...o que o terceiro milênio tem a nos oferecer: um  amplo  leque  de  opções  sexuais  e  descompromisso  total  com  a  eternidade  -  nada  foi  feito  pra  durar."




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