sábado, 26 de abril de 2025

(nem tão) Grande inventário de sensações

 

Que calor...
Saí do banho e fiquei de toalha, deitada na cama, pensando em nada... Experimentando essa quase nudez, a liberdade, a pele, minha materialidade física. A refrescância. A não urgência de nada. 
A simples urgência da vida que pulsa neste corpo mortal. 

Sentei, assim simplesmente, só para ouvir as músicas que tocam o meu coração tomando uma cerveja gelada. Sentindo a brisa do final da tarde. Observando a dança e o farfalhar das folhas das árvores.

Dancei aquela canção, de pés descalços no piso da sala. Senti meu corpo se movendo ao som de uma música que me toca inteira. Senti a vida fluindo em mim.
Transitei pela casa toda sentindo o chão sob os meus pés. 

Senti o cheiro de chuva, a gota da chuva na pele. 

Me senti apaixonada, beijei apaixonadamente. Me flagrei num sorriso bobo.

Estive com os meus, rindo muito, rindo alto.

E que tantas outras boas sensações eu sinto e sentirei, Incontáveis. 
E que tantas outras angústias também sentirei.
Mas o que vale de viver não é mesmo o sentir que se vive?





...

domingo, 9 de março de 2025

TESÃO

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O tesão que eu sinto não está nas formas geométricas do corpo

A matemática é objetiva 

O tesão que sinto vem de dentro

Do núcleo que arde da falta

O tesão que sinto é subjetivo 

Ele está na dança cotidiana do afeto e da atenção

Ele vem das curvas secretas das palavras

Dos movimentos dos olhos 

Ele vem do som da voz

Do hálito quente perto, muito perto 

Ele vem do encontro de átomos amigos 

Ele vem da quentura do coração

Da pulsação 

Da respiração 

Da saliva 

Do cheiro

Ele vem do aconchego

Ele vem da beleza que extravasa as linhas do mundo físico 

Ele vem de dentro de mim, ele vem de dentro de ti. 

...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Dexter New blood: Um final inesperado, desconfortável e coerente.

Obs.: Esse texto contém spoilers e é dedicado, principalmente, mas não somente, àqueles que já assistiram o final da nona temporada. 



Enquanto fãs, nós esperamos ansiosamente pelo tema animado e clássico da abertura de Dexter. Decepcionados, de início nos escapa o porquê da sua ausência. Com o tempo percebemos que essa temporada tem um timbre muito mais sombrio, incompatível com o cinismo alegre da abertura original...

 




Ao longo das oito temporadas anteriores, nós assistimos incansavelmente o serial killer Dexter Morgan se safando de seus crimes das formas mais inacreditáveis, e às custas de muitas vidas e de personagens chaves da trama do seriado. Lembremo-nos, pois, do trágico desfecho da oitava e última temporada, com a morte de sua irmã Debra Morgan. Uma personagem extremamente carismática e importante na vida de Dexter.

Com certeza, não é à toa que essa lembrança nos é provocada pela presença dela, já no início de Dexter New Blood. Porém, na nova trama ela assume o papel de contrapeso psicológico, que até então fora desempenhado pelo pai dos dois, Harry. Dessa feita, ela é quem está na mente de Dexter o tempo inteiro contra-argumentado os seus impulsos mais espontâneos de serial killer. A dinâmica entre Debra e Dexter pode ser entendida simbolicamente como o conflito permanente entre o sentimento de culpa e a autojustificativa do dark passenger, e isso é fundamental para entendermos o desfecho da nona temporada. Porque essa última temporada na verdade não é sobre o Dexter, e sim sobre o seu filho, Harrison.

Então, o que vemos é a triste jornada de um adolescente, que depois de sofrer uma situação dolorosa de abandonos sucessivos, voluntários ou involuntários, segue em busca de um pai que – ele descobriu - forjou a própria morte e o abandonou. Tudo se torna ainda mais doloroso se lembrarmos o amor que Dexter dedica ao Harrison até o final fatídico da temporada oito, quando ele é levado a forjar a própria morte e desaparecer, deixando Harrison com Hannah, que anos depois morre de câncer, deixando Harrison para o sistema de adoção, onde o menino vai sofrer novos traumas e abandonos. O abandono aqui é uma chave muito importante de leitura.

Harrison e Dexter compartilham um fato importante: ambos nasceram em sangue. Ambos presenciaram a morte violenta de suas mães. Rita, mãe de Harrison, sendo uma das mortes na conta de Dexter, como consequência de sua irresponsabilidade no trato com o serial killer Trinity. Logo, o trauma de Harrison também pode ser colocado na conta do nosso carismático serial killer. Portanto, Dexter tem dois fantasmas em relação ao filho: Seria possível ter passado seu dark passenger geneticamente para o filho? & Presenciar a morte de Rita, ainda que muito jovem, poderia ter feito nascer em Harrison um dark passenger, como ele acredita que tenha acontecido com ele próprio?

O que logo percebemos em Harrison é uma raiva mal controlada e mal direcionada. Um comportamento errático, agressivo e violento, fruto direto de uma incapacidade de se conectar com o seu pai que, a despeito de todo o esforço, mantém um abismo de segredos intransponível entre os dois. O adolescente busca de alguma forma uma justificativa plausível do abandono cruel que sofrera por parte do pai, ao mesmo tempo em que busca uma conexão de pai e filho.

Dexter – e nós também enquanto telespectadores – é levado a ler o comportamento de Harrison como a possível presença de um dark passenger. O dilema que ele vive então é o de se abrir ou não com o filho. Baseado, finalmente, na crença de que Harrison é como ele, e na reivindicação da responsabilidade em passar “o código” ao filho, Dexter resolve revelar a verdade irrestritamente ao jovem.

Nesse momento nós vemos uma virada tocante na dinâmica entre pai e filho. Quando o mistério do motivo do abandono é finalmente exposto e explicado, Harrison tem uma espécie de libertação da raiva. Isso fica muito claro nas cenas subsequentes à revelação de Dexter ao seu filho, principalmente, após o assassinato de Kurt, do qual o adolescente participa como expectador e ouvinte. Até esse momento ainda somos levados a pensar que Harrison pode ser um psicopata como o pai. Porém, logo somos instados a questionar essa ideia, pois o personagem dele muda de acordo com a evolução da dinâmica com seu pai.

A aceitação e o acolhimento, por parte de Harrison, da condição monstruosa de seu pai, residem muito mais na possibilidade de conexão do que na identificação com este. O caminho que ele encontra para chegar até o pai não é a partir de um dark passenger compartilhado, mas sim pelo pai real que ele finalmente vê revelado diante de si. Toda a raiva dá lugar a um menino carinhoso e atencioso. Portanto, a fonte da raiva de Harrison não era um suposto dark passenger, que ele teria herdado de Dexter, mas algo muito mais óbvio, o abandono incompreendido que sofrera pelo pai.

A frase final de Harrison para seu pai é por demais dolorosa, e traz à tona aquilo que penso ser a essência do New Blood, a expiação e a desconstrução de Dexter como um suposto anti-herói: 

- Eu não tenho raiva porque sou como você, eu tenho raiva por causa de você.

Um final bastante doloroso, e inesperado, pois talvez esperássemos que pai e filho, se reconectando e sendo iguais, matassem juntos e felizes para sempre, combatendo criminosos por meio do “código”, algo deveras cínico, e que nos leva para uma outra reflexão desconfortável que o seriado propõe, pois aponta de forma afiada o dedo para o telespectador questionando finalmente sua torcida irrefletida pelo mal. Buscamos argumentos, assim como Dexter luta e sofre por buscar durante as nove temporadas inteiras, de que o quê ele faz é certo e um bem para a sociedade. “Ele limpa o lixo e torna o mundo um lugar melhor”. Afinal, “Quantas vidas ele salvou tirando a vida das suas vítimas?”

                Mas, no fim de contas, o que o desfecho do seriado nos faz lembrar de forma pungente é que Dexter é um psicopata frio e perigoso, com apenas uma leve sombra de humanidade naquilo que se refere ao seu filho, a única forma de amor que reconhece ter sentido, como ele mesmo fala em suas últimas palavras. Em que pese essa sombra de amor ao filho, todas as suas escolhas levaram inexoravelmente ao sofrimento incalculável não só deste, como de todos em torno de Dexter, palavras do próprio filho nos momentos dramáticos finais.

                Harrison matar seu pai é simbólico em grande medida, mas também é um ato de misericórdia, e porque não dizer também de libertação, já que é exatamente esse o sentimento que a fantástica atuação final de Michael C. Hall nos inspira. Um sentimento de libertação final e de alívio.

                O jovem finalmente compreende a atitude do pai, e percebe que ele esteve certo em se afastar, em ter fingido a própria morte. Mas também compreende que ele próprio precisava dessa jornada para entender o porquê do abandono paterno e superar o sentimento de rejeição, que era a fonte de toda sua raiva. 

                A reflexão amarga que nos fica é: existe alguma justificativa plausível para o mal? O mal causado àquele que é mau é de alguma forma justificável? E a cadeia de acontecimentos que essa pretensa justiça engendra em si não pode causar ainda mais mal no mundo?

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A bíblia em Carl Sagan

“Sempre que lemos as histórias obscenas, as orgias voluptosas, as execuções cruéis e torturantes, o espírito inexorável de vingança que impregnam mais da metade da Bíblia, seria mais coerente dizer que ela é a palavra de um demônio do que a palavra de Deus. Ela [...] tem servido para corromper e brutalizar a humanidade”. [Thomas Paine]

[...] Que área do empreendimento humano não é moralmente ambígua? Até as instituições populares que pretendem nos dar conselhos sobre comportamento e ética parecem carregadas de contradições. Considerem-se os aforismos. A pressa é inimiga da perfeição; mas um passo dado a tempo vale por nove. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; mas quem não arrisca, não petisca. Onde há fumaça, há fogo; mas o hábito não faz o monge. Um centavo poupado é um centavo ganho; mas não se pode levá-lo para o túmulo. Quem hesita está perdido; mas os tolos entram correndo onde até os anjos têm medo de pisar. Duas cabeças pensam melhor do que uma; mas comida em que muitos mexem, se não sai crua ou queimada, sai insossa ou salgada. Houve época em que as pessoas planejavam ou justificavam suas ações baseando-se nesses lugares-comuns contraditórios. Qual é a responsabilidade moral do aforista? Ou do astrólogo solar, do leitor de tarô, do profeta dos tablóides?

[...] considerem-se as principais religiões oficiais. Em Miquéias, recebemos ordens de agir com justiça e amar a misericórdia; no Êxodo, somos proibidos de cometer homicídio; no Levítico, a ordem é amar o nosso próximo como a nós mesmos; e, nos Evangelhos, somos instados a amar os nossos inimigos; Entretanto, pensem nos rios de sangue derramado pelos seguidores ardorosos dos livros em que se encontram incrustadas essas exortações de boa intenção. Em José e na segunda metade de Números, celebra-se o assassinato em massa de homens, mulheres, crianças e animais domésticos em inúmeras cidades por toda a terra de Canaã. Jericó é arrasada num kherem, uma “guerra santa”. A única justificativa oferecida para essa matança é a afirmação dos homicidas de que, em troca da circuncisão de seus filhos e da adoção de um conjunto particular de rituais, os seus ancestrais teriam recebido há muito tempo a promessa de que a terra era sua. Não se consegue tirar da Sagrada Escritura nem um vestígio de sentimento de culpa, nem um resmungo de inquietação patriarcal ou divina com essas campanhas de extermínio. Em vez disso, José “destruiu tudo o que respirava, como o Senhor Deus de Israel havia ordenado” (José, 10:40). E esses acontecimentos não são incidentais, mas centrais para o principal moto narrativo do Velho Testamento. Histórias semelhantes de assassinatos em massa (e, no caso dos amalecitas, genocídio) podem ser encontrados nos livros de Saul, Ester, e em outros lugares da Bíblia, sem que apareça nenhuma angústia de dúvida moral. Tudo isso certamente perturbou os teólogos liberais de eras posteriores. [...] Diz-se adequadamente que o diabo pode “citar a Escritura para seus fins”. A Bíblia está cheia de tantas histórias de moral contraditória que toda geração encontra nela justificativa para quase todas as ações que propõe – de incesto, escravidão e homicídio em massa ao amor mais refinado, coragem e abnegação. E essa desordem moral de múltipla personalidade não se restringe ao judaísmo e ao cristianismo. Pode-se encontrá-la profundamente entranhada no Islã, na tradição hindu, de fato em quase todas as religiões do mundo. Talvez não sejam os cientistas, mas as pessoas que são moralmente ambíguas.


O mundo assombrado pelos demônios. Carl Sagan, 1996.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Antropologia I

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Há em mim uma batalha permanente e oscilante entre um instinto de autopreservação e um impulso autodestrutivo.

A vida é autodestrutiva, porque da destruição vem a renovação da vida, e dessa renovação vem a eternidade da força da vida. A vida que transcende o indivíduo, o cosmos.

Me pergunto se o instinto e o impulso estão conectados de alguma forma com o mistério do cosmos. Ou serão frutos da dimensão do indivíduo em sociedade? Ou uma mistura híbrida dos dois? Afinal... a civilização também é filha do cosmos... 

O impulso autodestrutivo acelera o processo inevitável da destruição. Será um manifestação inconsciente de autopunição? Ainda que muitos atos autodestrutivos estejam a princípio na categoria de prazeres e deleites, como o consumo de álcool, cigarros e drogas, eles são, em última análise, atos autodestrutivos.

Será que é uma troca consciente? Estou destruindo um pouco de mim em troca de um prazer, e é isso, nada mais justo? Será simples assim? A vida me consome, por isso vou consumi-la também?

Seremos nós totalmente reduzíveis à antropologia?


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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Narcisismo social

Às vezes - quase sempre nos últimos tempos deste país, e deste mundo - bate um desalento ao ver tanto ódio. Tantas neuroses mal resolvidas virando política de estado. A imensa deficiência na habilidade de interpretação de texto é exatamente proporcional ao ódio que se quer destilar, colocar para fora, no mundo. Quase num ímpeto inconsciente de vingança e rancor por uma frustração que não se quer assumir, e que serve de combustível para um sentimento de cólera errante, não identificado, camuflado como uma aberrante postura ideológica. 

Ou talvez o ódio cegue, como o clichê fala. Mais do que isso, talvez esse sentimento potente de raiva não apenas cegue, mas distorça, deforme, desfigure, sufoque o sentido real daquilo que o raivoso quer atacar. A distorção alimenta o ciclo de raiva e ressentimento. 

O ressentido vê tudo através de um filtro rancoroso. Rancor que nasce da inabilidade de olhar para si mesmo e de refletir sobre si mesmo, e que projeta no mundo a sua incapacidade de lidar com o abismo dentro de si, com as contradições humanas, com os infinitos graus de cinza da realidade. Pretende uma visão reducionista da vida, negando a sua complexidade. Arrogantemente, acredita que a sua perspectiva limitada é a única chave de leitura possível do mundo. Aplica seus padrões viciados e limitados para julgar o intrincado e indissolúvel tecido da vida. 

O analfabetismo emocional talvez seja o pior dos nossos males. Contamina tudo, deturpa, corrompe. Atribui as cores que eu quero à tudo que me cerca. Mas isso por si mesmo é natural. Vermos o mundo através dos nossos filtros. O analfabetismo mesmo, começa quando brigo e imponho que o meu filtro é o único filtro, menosprezando e desconsiderando cinicamente a pluralidade de perspectivas, negando a riqueza da vida.

O analfabetismo começa quando me fecho no meu mundo de interesse individual e não vejo os outros. Quando o bem comum se transmuta no meu bem pessoal apenas. Quando não pratico a empatia. Quando eu não consigo entender que o mundo é mais do que posso ver. 

"O mundo é mais do que conhecemos..."


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

. terror .

 

Não há prazer como o terror. Se fosse possível sentar-se sem ser visto entre duas pessoas em qualquer trem, sala de espera ou escritório, a conversa ouvida rondaria uma e outra vez sobre este tema. Poderia parecer que se tratava de um assunto completamente distinto: a situação do país, um bate-papo despreocupado sobre as mortes na estrada, o aumento dos preços dos dentistas, mas pondo a nu a metáfora, a insinuação, ali, encerrada no coração do discurso, encontra-se o terror. Enquanto aceitamos sem discussão a natureza de Deus e a possibilidade de vida eterna, ruminamos alegremente as minúcias da miséria. A síndrome não tem limite, tanto nos banheiros como nas salas de aula, se repete o mesmo ritual. Com a inexorabilidade de uma língua que se retorce para explorar um dente dolorido, voltamos uma, duas ou mil vezes a nossos medos, nos sentando para discutir sobre eles com a impaciência de um homem faminto ante um prato cheio e fumegante.

Não há prazer como o terror. Enquanto ele for de outros.


Clive Barker, Livros de Sangue 1, 1984.