quinta-feira, 22 de abril de 2010

A história do ladrão de corpos - Anne Rice, 1993

Digo que este é um dos melhores da autora. Sempre profundamente comprometida com questões existenciais "vampirescas", Rice desta vez deixa Lestat nu em pelo. E pra quem é fã do vampiro mais inquieto  e perverso da autora, ganha uma viagem pela alma dele, entendendo um pouco melhor como funciona sua mente insana. Além desse aspecto, a autora traz também, como de costume, uma interessante teoria sobre uma bizarra experiência de "troca de corpos", Recomendadíssimo! Segue fichamento.




A civilização ocidental nem por um segundo vai oscilar à margem do abismo. E não haverá revelações de tempos remotos, nem meias-verdades e adivinhações apresentadas pelos velhos, nem promessas de respostas que de fato não existem e jamais existiram.
p. 12

         Era apenas melancólico, sombrio, a ausência do que faz a vida digna de ser vivida – o calor do fogo e das carícias, dos beijos e das discussões, do amor, do desejo e do sangue.
Ah, os deuses astecas deviam ser vampiros sedentos para convencer aquelas pobres almas humanas de que o universo cessaria de existir se o sangue não fosse derramado. Imagine, presidir a cerimônia naquele altar, estalando os dedos para outro e outro e mais outro, espremendo aqueles corações encharcados de sangue contra os lábios, como cachos de uva.
p. 39


Você tem razão. Foi desprezível o modo que o deixei. Pior, foi covardia. Prometo que, quando nos encontrarmos novamente, vou deixá-lo dizer tudo que tem a dizer.
Eu tenho uma teoria sobre Rembrandt. Passei muitas horas estudando seus quadros em todas as partes do mundo – em Amsterdã, Chicago, Nova York, nos lugares em que eles estão – e como eu disse, acredito que tantas almas tão perfeitas não poderiam ter existido como Rembrandt nos quer fazer acreditar.
Esta é a minha teoria e por favor, quando ler esta carta, lembre-se de que ela acomoda todos os elementos envolvidos. E essa acomodação era outrora a medida da elegância das teorias... antes da palavra “ciência” passar a significar o que significa hoje.
Acredito que Rembrandt vendeu a alma ao demônio quando era jovem. Foi um negócio simples. O demônio prometeu que ele seria o pintor mais famoso do seu tempo. O demônio enviou milhares de mortais para que Rembrandt os retratasse. Deu riqueza a Rembrandt, uma casa encantadora em Amsterdã, uma esposa e mais tarde uma amante, porque estava certo de que teria sua alma, no fim.
Mas o encontro com o demônio provocou uma mudança em Rembrandt. Depois de ver a prova inegável do mal, passou a ser atormentado pela seguinte pergunta. O que é o bem? Procurava nos rostos dos seus modelos a divindade interior e com surpresa viu que era capaz de encontrar uma fagulha dessa divindade nos homens mais desprezíveis.
Seu talento era tal que – e por favor, compreenda, o demônio não conferiu a Rembrandt nenhuma habilidade artística; ele possuía naturalmente esse talento – não só podia ver a bondade, como também podia reproduzi-la na tela, podia fazer com que seu conhecimento e sua fé nessa bondade impregnasse o todo.
A cada retrato ele compreendia mais profundamente a graça e a bondade que existiam nos homens. Compreendia a potencialidade de compaixão e de sabedoria que existe em cada alma humana. Sua arte foi se aperfeiçoando à medida que trabalhava; o vislumbre do infinito tornava-se cada vez mais sutil, a pessoa cada vez mais particular e mais grandioso e mais sereno o todo.
Finalmente, os rostos pintados por Rembrandt não eram mais rostos de carne e osso. Eram expressões espirituais, retratos do que havia no interior do corpo do homem ou da mulher, visões do que cada pessoa era no seu momento de maior grandeza, do que cada um havia se tornado a partir daquele momento.
Por isso os homens da associação dos mercadores de tecidos parecem todos com os mais antigos e mais sábios santos de Deus.
Porém em nenhum outro lugar essa intensidade espiritual manifesta-se com maior clareza do que nos auto-retratos de Rembrandt. E certamente você sabe que ele nos deixou nada menos do que vinte e dois.
Por que acha que Rembrandt fez tantos auto-retratos? Eram uma súplica para que Deus notasse o progresso deste homem que, observando outros iguais a ele, sofrera uma intensa transformação religiosa. “Esta é a minha visão do homem”, disse Rembrandt a Deus.
Quando Rembrandt chegava ao fim da sua vida, o demônio começou a ter suspeitas. Não queria que seu escravo criasse obras tão magníficas, tão repletas de calor e bondade. Acreditava que o povo holandês era materialista, portanto voltado para as coisas terrenas. E ali, nos quadros onde apareciam ricas roupas e objetos de valor, cintilava a prova inegável de que os seres humanos são completamente diferentes de qualquer outro animal do cosmo – são uma combinação preciosa de carne e chama imortal.
Bem, Rembrandt suportou todos os tormentos inventados pelo demônio. Perdeu a bela casa na Jodenbreestraat. Perdeu a amante e, por fim, até o filho. Contudo continuou a pintar, sem nenhuma demonstração de amargura ou de perversidade, continuou a infundir o amor nas suas obras.
Finalmente estava no seu leito de morte. O demônio cabriolava de alegria, pronto para apanhar a alma de Rembrandt e apertá-la entre os dedos do mal. Mas os anjos e os santos imploraram a intervenção de Deus.
“No mundo inteiro, quem conhece melhor a bondade?” Eles perguntaram, apontando para Rembrandt que agonizava. “Quem mostrou mais do que este pintor? Olhamos para seus retratos quando queremos saber o que há de divino no homem.”
Então Deus desfez o acordo entre Rembrandt e o demônio. Tomou para si a alma do pintor e o demônio, recentemente roubado da alma de Fausto pela mesma razão, ficou louco de raiva.
Bem, ele enterraria na obscuridade a vida de Rembrandt. Providenciaria para que todos os bens pessoais daquele homem e todos os registros sobre sua vida fossem engolidos pela corrente do tempo. Por isso pouco sabemos sobre a verdadeira vida de Rembrandt, ou que tipo de homem ele era.
Mas o demônio  não pôde controlar o destino dos seus quadros. Por mais que tentasse, não conseguiu fazer com que fossem queimados, jogados fora ou postos de lado para dar lugar aos artistas mais novos. Na verdade, aconteceu uma coisa muito curiosa, aparentemente de origem desconhecida. Rembrandt tornou-se o mais admirado pintor que já existiu. Rembrandt veio a ser o maior pintor de todos os tempos.
Essa é a minha teoria sobre Rembrandt e aqueles rostos.
Agora, se eu fosse mortal, escreveria um romance sobre Rembrandt com esse tema. Mas não sou mortal. Não posso salvar a minha alma através da arte ou de Boas Obras. Sou uma criatura igual ao demônio, com uma diferença. Eu amo os quadros de Rembrandt!
Mas olhar para eles me parte o coração. Meu coração se partiu quando vi você no museu. E tem razão quando diz que não há vampiros com rostos iguais aos dos santos da associação dos mercadores de tecidos.
Por isso eu o deixei daquele modo no museu. Não foi com a raiva do demônio. Apenas com mágoa.
Outra vez prometo que, no nosso próximo encontro, eu o deixarei dizer tudo que tem para dizer.
p. 48 – 51 – Carta de Lestat à David. 



Juro por Deus que não conto mentiras para os outros. Mas minto para mim mesmo.
p. 75


- Há mais inteligência contida nesse antigo poema do que na criação do mundo. Você fala como um episcopal. Mas eu sei o que quer dizer. Já pensei nisso uma vez ou outra. Estupidamente simples. Tem de haver alguma coisa nisto tudo. Tem de haver! Tantas peças faltando. Quanto mais você pensa no assunto, mais os ateus parecem falar como fanáticos religiosos. Mas acho que é uma ilusão. Tudo não passa de um processo.
- Peças que faltam, Lestat. É claro! Imagine por um momento que eu construí um robô, uma réplica perfeita da minha pessoa. Suponha que passei para ele toda a informação possível das enciclopédias, você sabe, programei no seu cérebro que é um computador. Muito bem, infalivelmente chegaria o momento em que ele ia dizer, “David, onde está o resto? A explicação! Como tudo começou? Por que você não explicou porquê do big bang que deu origem ao mundo, nem exatamente o que aconteceu quando os minerais e outros compostos inertes evoluíram de repente para formar células orgânicas? E o ele perdido no registro da evolução dos fósseis? ”
- E eu teria de revelar ao pobre robô – continuou David – que não existe explicação. Que eu não tenho as peças que faltam.
P. 82


  - A religião é primitiva com suas conclusões ilógicas. Imagine um Deus perfeito permitindo a existência do demônio. Isso não faz sentido. A grande falha na Bíblia é a idéia de que Deus é perfeito. Representa uma falta de imaginação da parte dos antigos estudiosos. Essa crença é responsável por todas as impossíveis questões teológicas a respeito do bem e do mal que há séculos procuramos responder. Porém, Deus é o bem, é maravilhosamente bom. Sim, Deus, é amor. Mas nenhuma força criadora é perfeita. Isso é evidente.
- E o demônio? Alguma coisa nova a respeito dele? – David olhou para mim com uma leve impaciência. – Você é um ser tão cínico.
- Não, não sou. Quero saber de verdade. É claro que tenho um interesse especial no demônio. Falo dele muito mais do que falo de Deus. Não compreendo por que os mortais o amam tanto, quero dizer, por que amam tanto a idéia da sua existência. Mas eles gostam.
- Porque não acreditam nele – disse David – Porque um demônio perfeito é menos lógico do que um Deus perfeito. Imagine um demônio jamais ter aprendido coisa alguma durante todo esse tempo, nunca ter mudado sua idéia de ser demônio. É um insulto à nossa inteligência.
- Então, qual é a sua verdade atrás da mentira?
- Ele não é simplesmente incapaz de ser redimido. É apenas uma parte do plano de Deus. Um espírito a quem foi concedida a licença para tentar os humanos. Ele não aprova os seres humanos, não aprova a experiência de Deus. A meu ver essa é a natureza da queda do demônio. Ele pensou que a idéia não ia funcionar. Mas a chave, Lestat, é compreender que Deus é matéria! Deus é um ser físico, Deus é o Senhor da Divisão Celular, e o demônio detesta o excesso de permitir que essa divisão continue sem controle.
P. 84 – 85


Ele usa a desgraça como os outros usam o veludo. O sofrimento o enfeita como a luz das velas. As lágrimas o adornam como jóias. Nada desse lixo combina comigo.
P. 130


Na verdade, a limpeza e a ordem extremas dos pequenos cômodos davam a impressão de que ninguém vivia neles.
P. 170


            Assim, estendemos a mão para o caos furioso, apanhamos alguma coisa pequena e brilhante e nos agarramos a ela, dizendo para nós mesmos que ela tem significado, que o mundo é bom, que não somos a encarnação do mal e que no fim iremos para casa.
P. 175


[...] na verdade não acredito que eu seja um herói para o mundo. Porém resolvi há muito tempo que devia viver como se fosse um – que devia vencer todas as dificuldades que aparecessem no meu caminho, porque elas são apenas meus inevitáveis círculos de fogo.
P. 193


            Mas, Senhor Deus, e se o vampiro Lestat jamais tivesse existido, se fosse apenas uma criação literária, pura invenção do homem em cujo corpo eu vivia e respirava! Que idéia maravilhosa!
P. 220


- Esse é o único meio pelo qual o verdadeiro demônio pode fazer o bem. Representar o próprio papel para expor o mal.
P. 245


Há séculos venho observando com interesse vários seres humanos de dois anos. São tremendamente infelizes. Eles querem corre e caem, e gritam o tempo todo. Eles detestam ser humanos! Já sabem que é uma espécie de truque sujo.
P. 329


- Existe algum ser no mundo que faça uso de tudo que possui? Talvez um pequeno número de seres geniais e corajosos conheçam os próprios limites. O resto de nós não faz outra coisa senão se queixar.
P. 341


Afinal, o que nosso mundo significa para as estrelas lá em cima? O que elas pensam do nosso minúsculo planeta, repleto de insanas justaposições, circunstâncias fortuitas, a luta eterna, as ensandecidas civilizações espalhadas por toda a sua superfície, que sobrevivem não por força de vontade, fé ou ambição comum, mas por uma capacidade onírica de milhões para ignorar e esquecer as tragédias da vida e mergulhar na felicidade, como os passageiros daquele navio – como se a felicidade fosse tão natural aos seres humanos como a fome ou o sono, a necessidade de calor e o medo do frio.
P. 376



- Em geral fazemos nossos heróis muito superficiais. Nós os fazemos frágeis e quebradiços. Compete a eles nos fazer lembrar do verdadeiro significado da força.
P. 393

[...] os humanos são capazes de agir como perfeitos animais quando se trata de dinheiro.
P. 419


            A noite, como sempre, estava à minha espera. E a minha sede não podia esperar mais. Parei por um momento, a cabeça inclinada para trás, olhos fechados, boca aberta, sentindo a sede, com vontade de rugir como um animal faminto. Sim, sangue outra vez, quando não há nada mais. Quando o mundo, em toda sua beleza, parece vazio e sem coração e eu me sinto completamente perdido. Dê-me minha velha amiga, a morte e o sangue que jorra com ela. O vampiro Lestat está aqui, sedento, e nesta noite de todas as noites não vai deixar de saciar sua sede.
P. 421


            E minha alma tenebrosa está feliz outra vez, porque há muito tempo não sabe sentir outra coisa e porque a dor é um mar profundo e escuro no qual posso me afogar se não conduzir meu frágil barco habilmente sobre a superfície, sempre na direção do sol que jamais vai nascer.
P. 431



RICE, Anne. A história do ladrão de corpos: crônicas vampirescas. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 467 p.