sábado, 1 de dezembro de 2012

Fogo Frio - Dean Koontz, 1991.


Mais uma leitura ótima do Koontz. Estou me tornando cada vez mais fã desse escritor. Sempre apresentando figuras femininas muito fortes, com um enredo alucinante e uma história pra lá de aterrorizante, o Koontz tem uma receita bastante particular que faz com que seus livros constituam uma leitura prazerosa, fluida e envolvente. Indicadíssimo!

Ela cultivara uma qualidade transcendental, como uma projeção espectral, mais aparência do que conteúdo. Suas opiniões e atitudes eram inconscientes, baseadas menos em fatos e percepção do que em caprichos – caprichos de ferro, mas ainda assim caprichos –, e ela as expressava numa linguagem cheia de ostentação, mas imprecisa, inflada, mas vazia. P. 17

A própria Holly era também uma ambientalista, e ficou consternada ao descobrir que ela e Louise defendiam o mesmo lado de algumas questões. Era irritante para a ela ter aliados que lhe pareciam tolos; faziam suas próprias opiniões parecerem suspeitas. P. 17

Um sonho não realizado, independente de ser majestoso ou humilde, é uma tragédia para o sonhador que perdeu as esperanças. P. 96

Nada podia fazer em relação ao amor; simplesmente fazia parte dela agora, como sangue ou ossos ou nervos. P. 400

sábado, 10 de novembro de 2012

As brumas de Avalon. Marion Zimmer Bradley, 1979.

Esse é mais um exemplo de releitura que resultou em grande surpresa ao perceber como nossas percepções sobre as mesmas coisas mudam através do tempo e de nossas experiências acumuladas. Da primeira vez que li, tinha em torno de 19 anos, creio. E percebo como foi uma leitura superficial, romântica. À época, me ficou como uma história idílica de cavalaria, de corajosos guerreiros, amores impossíveis, mocinhas indefesas. Nesta segunda leitura, já tive uma sensibilidade TOTALMENTE diferente. E quando enfatizo o totalmente, é porque foi realmente diferente. Percebi nuances muito mais profundas. Com a mente voltada para análises de cunho mais conjuntural - exercício aperfeiçoado pelo curso de História, certamente -, tive acesso aos espectros político, social e religioso expostos ao longo dos quatro volumes. A importância e excelência inegável da obra reside em duas principais características: a] a história se passa nos anos determinantes de transição entre as religiões antigas [chamadas pagãs pelos cristãos] e o cristianismo em ascensão; e com isso a mudança de valores, signos e concepções fundamentais da sociedade - por exemplo, a mulher, a virgindade, a introdução das noções de pecado, céu e inferno, etc.; b] a perspectiva feminina predominante. 
Os personagens são muito ricos e muito bem explorados pela autora. O desenvolvimento dos personagens e suas histórias e a relação destes com o tempo foi algo que me chamou muito a atenção. Ou seja, o resultado de acontecimentos a longo prazo acaba por ampliar o horizonte de análise do leitor e exercita uma diferente sensibilidade ao tempo e ao que ele representa.

Me dei conta de que não informei sobre a história do livro em si. Bom aqui vão algumas palavras chaves que    vão dar conta de resumir: Grã-Bretanha, Celtas, Rei Arthur, Paganismo, Cristianismo, Saxões, Batalhas,  Excalibur, Druidas... 


Leitura indicadíssima. Bora ler?!!! 

Boa leitura então.

Abraço aos leitores do blog.


K.






quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Coleção O guia do mochileiro das galáxias - Douglas Adams

A saga macrocósmica futurista do inglês Douglas Adams, é sem dúvida um dos humores mais inteligentes e sarcásticos que já li. Dotado de um senso crítica afiado, e de uma perspectiva ampla sobre a humanidade, o autor transmite na sua obra uma reflexão vertiginosa sobre a vida, o universo e tudo mais. Utiliza o humor como método suave de pautar questões filosóficas e paradoxos existenciais. Traz em primeiro plano alegorias como a dos "Vogons" pra fazer uma alusão clara ao nosso próprio sistema burocrático, que já chega às raias da loucura. Assim, como também trata de forma crítica o nosso modelo econômico e social de vida. São cinco livros muito breves que realmente vão mudar seu horizonte de análise. Adorei! Seguem alguns trechos.

O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior ainda. p. 25

Como é sabido, a vida apresenta uma série de problemas, dos quais os mais importantes são, entre outros, Por que as pessoas nascem? Por que elas morrem? Por que elas passam uma parte tão grande do tempo entre o nascimento e a morte usando relógios digitais?. p. 122

[O guia do Mochileiro das Galáxias, 1979.]

Há muitos anos este era um planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria. Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés, amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz. p. 55

O problema com a maioria das formas de transporte é que basicamente não valiam a pena. Na Terra – quando havia uma Terra, antes de ela ter sido demolida para dar lugar a uma via expressa hiperespacial - o problema eram os carros. As desvantagens envolvidas em arrancar toneladas de gosma preta e viscosa do subsolo, onde a tal gosma tinha ficado escondida em segurança e longe de todo o mal, transformá-la em piche para cobrir o chão, fumaça para infestar o ar e espalhar o resto pelo mar, tudo isso parecia anular as aparentes vantagens de se poder viajar mais rápido de um lugar para o outro. Especialmente quando o lugar a que se chegava tinha ficado, por conta dessa coisa toda, muito parecido com o lugar de que se tinha saído, ou seja, coberto de piche, cheio de fumaça e com poucos peixes. p. 118

- O Jardim do Éden. A árvore. A maçã. Essa parte, lembra? O tal de Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz “vocês dois podem fazer o que vocês quiserem aqui, mas não comam essa maça”. Obviamente eles comem a maçã, então Deus pula de trás de uma moita gritando: “Peguei vocês, peguei vocês!” Não faria a menor diferença se eles não tivessem comido a maçã.
- Por que não?
- Olha, quando você está lidando com alguém que tem esse tipo de mentalidade – mais ou menos a mesma das pessoas que deixam um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem -, pode ter certeza de que ele não vai desistir. Ela vai acabar te pegando.
p. 150-1


[O restaurante no fim do Universo, 1980.]


O campo de Problema de Outra Pessoa e muito mais simples e mais eficaz. Melhor ainda, pode funcionar durante mais de 100 anos usando uma unica bateria de lanterna. Isso porque ele conta com a tendência natural das pessoas de não verem nada que não querem, que não estão esperando ou que não podem explicar.  

[A vida, o universo e tudo mais, 1982.]


Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido.
Girando em torno deste sol, a uma distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há um planetinha verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes de primatas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que relógios digitais são uma grande idéia.
Este planeta tem – ou melhor, tinha – o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes.
E assim o problema continuava sem solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as que tinham relógios digitais.
Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.

Um dos maiores benfeitores de todas as formas de vida foi um homem que não conseguia se concentrar em qualquer trabalho que estivesse fazendo.
Foi brilhante?
Certamente.
Foi um dos maiores engenheiros genéticos de sua geração ou de qualquer outra, inclusive várias que ele mesmo projetou?
Sem dúvida.
Então, quando o seu mundo se viu ameaçado por invasores terríveis de uma estrela distante, que ainda estavam muito longe, mas viajavam bem rápido, foi conduzido a um lugar onde pudesse ficar completamente isolado, protegido pelos mestres de sua raça, com instruções para criar uma linhagem de superguerreiros fanáticos, prontos para resistir e para derrotar os temidos invasores. Ele tinha que criá-los o mais rápido possível e disseram-lhe: "Concentre-se!"
Então ele se sentou próximo a uma janela e contemplou um jardim em pleno verão e projetou, projetou e projetou, mas, inevitavelmente, distraiu-se um pouco com outras coisas e, quando os invasores já estavam praticamente em órbita em torno deles, inventou uma nova raça de supermoscas que podiam descobrir, por conta própria, como voar pela metade aberta de uma janela entreaberta e também um interruptor para desligar crianças. As comemorações dessas incríveis descobertas pareciam fadadas a durar muito pouco, porque o desastre era iminente — as naves espaciais já estavam pousando. Mas, para a surpresa de todos, os temíveis invasores, que, como a maioria das raças beligerantes, só estavam comprando briga com os outros porque não sabiam lidar com seus problemas domésticos, ficaram tão impressionados com as invenções extraordinárias que decidiram participar das comemorações e foram imediatamente persuadidos a assinarem uma série de acordos comerciais abrangentes e a instituírem um programa de intercâmbio cultural. E, em uma surpreendente inversão da prática tradicional na conduta desses assuntos, todos os envolvidos viveram felizes para sempre.

[Até mais, e obrigado pelos peixes, 1984]



sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Viagem ao centro da Terra - Julio Verne, 1864.

Um livro fantástico! Me levou a uma verdadeira viagem ao centro da Terra. Me envolveu de uma maneira que me deixou super ansiosa, na expectativa. Júlio Verne constrói uma atmosfera muito rica, sem, no entanto, cair nas infindáveis e enfadonhas descrições de detalhes. Ele é objetivo, direto e, mesmo assim, consegue transmitir tamanha inspiração ao leitor, nos introjeta com tal força o seu universo, é impossível não se apaixonar. Um livro super curto, mas que parece que conta tanta história. Indicadíssimo. Boa leitura!


DOWNLOAD DO EPUB

A história das mulheres no Brasil - Mary Del Priore (Org.), 1997.

Li esse livro como bibliografia básica do meu TCC (inacabado, e sem previsão). Um compêndio de excelente qualidade, composto de artigos de vários profissionais da área. Se propõe a contar as diversas histórias da mulher no Brasil. O livro começa a viagem desde os tempos colonias, através de análises interessantíssimas dos relatos dos primeiros viajantes, assim como das ilustrações dessas obras que transmitiam as primeiras impressões sobre o povo nativo das terras brasileiras. Sempre com foco no elemento feminino.
Passa pelos reflexos culturais ainda fortemente ligados à mentalidade medieval, seguindo de forma muito fluída até a contemporaneidade.

O livro é um verdadeiro calhamaço, me assustou logo de cara. Tanto que já tinha decidido de antemão ler apenas os capítulos do período que dissesse respeito ao meu trabalho. Por acaso comecei a ler o primeiro artigo, e daí foi só amor. Realmente muito gostoso de ler. Seu formato, dividido em artigos, de diferentes autores, com linguagem super acessível, torna a leitura um verdadeiro prazer. Também acaba sendo muito interessante e diferente, por trazer uma abordagem mais cultural da história da mulher, apresentando fontes históricas alternativas, como, por exemplo, a história oral, a cultura popular, etc.

Seguem alguns trechos:


A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos. p. 7 (Mary Del Priore)

Além de estudar o cotidiano das mulheres, e as práticas femininas nele envolvidas, os documentos nos permitem aceder às representações que se fizeram, noutros tempos, sobre as mulheres. Quais seriam aquelas a inspirar ideais e sonhos? As castas, as fiéis, as obedientes, as boas esposas e mães. Mas quem foram aquelas odiadas e perseguidas? As feiticeiras, as lésbicas, as rebeldes, as anarquistas, as prostitutas, as loucas. p. 8 (Mary Del Priore)

As histórias aqui contadas refletem as mais variadas realidades: o campo e a cidade, o norte, o sudeste e o sul. Os mais diferentes espaços: a casa e a rua, a fábrica e o sindicato, o campo e a escola, a literatura e as páginas de revista. E, finalmente, os múltiplos extratos sociais: escravas, operárias, sinhazinhas, burguesas, heroínas românticas, donas de casa, professoras, bóias-frias. p. 8 (Mary Del Priore)

Teria então chegado o tempo de falarmos, sem preconceitos, sobre as mulheres? Teria chegado o tempo de lermos, sobre elas, sem tantos a priori ? Muito se escreveu sobre a dificuldade de se construir a história das mulheres, mascaradas que eram pela fala dos homens e ausentes que estavam do cenário histórico. Esta discussão está superada. As páginas a seguir oferecem o frescor de uma estrutura na qual se desvenda o cruzamento das trajetórias femininas nas representações, no sonho, na história política e na vida social. p. 8-9 (Mary Del Priore)

Não nos interessa, aqui, fazer uma história que apenas conte a saga de heroínas ou de mártires: isto seria de um terrível anacronismo. Trata-se, sim, de enfocar as mulheres através das tensões e das contradições que se estabeleceram em diferentes épocas, entre elas e seu tempo, entre elas e as sociedades nas quais estavam inseridas. Trata-se de desvendar as intricadas relações entre a mulher, o grupo e o fato, mostrando como o ser social, que ela é, articula-se com o fato social que ela também fabrica e do qual faz parte integrante. As transformações da cultura e as mudanças de idéias nascem das dificuldades que são simultaneamente aquelas de uma época e as de cada indivíduo histórico, homem ou mulher. p. 9 (Mary Del Priore)


Colônia:

Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições eclesiásticas. (Emanuel Araújo, p. 45)

Nunca se perdia a oportunidade de lembrar às mulheres o terrível mito do Éden, reafirmado e sempre presente na história humana. Não era de admirar, por exemplo, que o primeiro contato de Eva com as forças do mal, personificadas na serpente, inoculasse na própria natureza do feminino algo como um estigma atávico que predispunha fatalmente à transgressão, e esta, em sua medida extrema, revelava-se na prática das feiticeiras, detentoras de saberes e poderes ensinados e conferidos por Satanás. (Emanuel Araújo, p. 46)

O ideal do adestramento completo, definitivo, perfeito, jamais foi alcançado por inteiro. A Igreja bem que tentava domar os pensamentos e os sentimentos, muitas vezes até com algum, sucesso, mas nem todo mundo aceitava passivamente tamanha interferência quando o fogo do desejo ardia pelo corpo ou quando as proibições passavam dos limites aceitáveis em determinadas circunstâncias. Contudo, parece que o normal era a introjeção, por parte das próprias mulheres, dos valores misóginos predominantes no meio social; introjeção imposta não só pela Igreja e pelo ambiente doméstico, mas também por diversos mecanismos informais de coerção, a exemplo da tagarelice de vizinhos, da aceitação em certos círculos, da imagem a ser mantida neste ou naquele ambiente etc. Os desvios da norma, porém, não eram tão incomuns numa sociedade colonial que se formava e muitas vezes improvisava seus próprios caminhos muito longe do rei. (Emanuel Araújo, p. 53)

Na época colonial a mulher arriscava-se muito ao cometer adultério. Arriscava, aliás, a vida, porque a própria lei permitia que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero.” (Emanuel Araújo, p. 59)

Num cenário em que doença e culpa se misturavam, mostra como o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja Católica quanto por médicos: um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam. Qualquer doença, qualquer mazela que atacasse uma mulher, era interpretada como um indício da ira celestial contra pecados cometidos, ou então era diagnosticada como sinal demoníaco ou feitiço diabólico. Esse imaginário, que tornava o corpo um extrato do céu ou do inferno, constituía um saber que orientava a medicina e supria provisoriamente as lacunas de seus conhecimentos. p. 78 (Mary del Priore)

Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava do homem apenas pelo conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas características morais. p. 79 (Mary del Priore)

É importante lembrar que, à época, a ciência médica começava a adquirir a imagem de um saber devotado e infalível, que impunha progressivamente as normas da vida saudável, assumindo, por fim, uma função de vigilância social e moral. Contra esse pano de fundo, uma espécie de ternura patética tomou conta da pluma dos médicos, que procuraram descrever a mulher como um ser frágil, carente de vontade, amolengada por suas qualidades naturais que seriam a fraqueza, a minoridade intelectual, a falta de musculatura, a presença da menstruação. Melhor submeter-se docilmente à servidão que a natureza impunha ao gênero feminino. p. 105 (Mary del Priore)


Século XIX: 


Mulher e família burguesa. Maria Ângela D’Incao.


Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações: a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade - burguesa - reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor. p. 223

Presenciamos ainda nesse período o nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, agora marcada pela valorização da intimidade e da maternidade. Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela como forma de proteção ao mundo externo também marcaram o processo de urbanização do país. p. 223

Nas casas, domínios privados e públicos estavam presentes. Nos públicos, como as salas de jantar e os salões, lugar de máscaras sociais, impunham-se regras para bem-receber e bem-representar diante das visitas. As salas abriam-se freqüentemente para reuniões mais fechadas ou saraus, em que se liam trechos de poesias e romances em voz alta, ou uma voz acompanhava os sons do piano ou harpa.
As leituras animadas pelos encontros sociais, ou feitas à sombra das árvores ou na mornidão das alcovas, geraram um público leitor eminentemente feminino. A possibilidade de ócio entre as mulheres de elite incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais consumidas entre um bordado e outro, receitas de doces e confidências entre amigas. As histórias de heroínas românticas, langorosas e sofredoras acabaram por incentivar a idealização das relações amorosas e das perspectivas de casamento. p. 228-9

As alcovas, espaço do segredo e da individualidade, forneciam toda a privacidade necessária para a explosão dos sentimentos: lágrimas de dor ou ciúmes, saudades, declarações amorosas, cartinhas afetuosas e leitura de romances pouco recomendáveis. “A máscara social será um índice das contradições profundas da sociedade burguesa e capitalista [...] em função da repressão dos sentimentos, o amor vai restringir-se à idealização da alma e à supressão do corpo”. p. 229

Num certo sentido os homens eram bastante dependentes da imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu grupo de convívio. Em outras palavras significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas, do pai ou do marido. Esposas, tias, filhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais) cuidavam da imagem do homem público; esse homem aparentemente autônomo, envolto em questões de política e economia, estava na verdade rodeado por um conjunto de mulheres das quais esperava que o ajudassem a manter sua posição social. p. 229-30

O que a literatura do período informa é que a mulher das classes baixas, ou sem tantos recursos, teve maiores possibilidades de poder amar pessoas de sua condição social, uma vez que o amor, ou expressão da sexualidade, caso levasse a uma união, não comprometeria as pressões de interesses políticos e econômicos. As mulheres de mais posses sofreram com a vigilância e passaram por constrangimentos em suas uniões, de forma autoritária ou adoçada, na sua vida pessoal. Para elas o amor talvez tenha sido um alimento do espírito e muito menos uma prática existencial. p. 234

É certo que os relatos dos cronistas, viajantes e historiadores do período nos exibem um quadro em que a menina ou a mulher candidata ao casamento é extremamente bem cuidada, é trancafiada nas casas etc. Não há como negar ou interpretar de outra maneira fatos tão conhecidos. Todavia, essa rigidez pode ser vista como único mecanismo existente de manutenção do sistema de casamento, que envolvia a um só tempo aliança política e econômica. Em outras palavras, nos casamentos das classes altas, a respeito dos quais temos documentos e informações, a virgindade feminina era um requisito fundamental. Independentemente de ter sido ou não praticada como um valor ético propriamente dito, a virgindade funcionava como um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor econômico e político, sobre o qual se assentaria o sistema de herança de propriedade que garantia linhagem da parentela. p. 235



Mulheres no sul. Joana Maria Pedro.


O isolamento feminino nas atividades de esposa, mãe e dona de casa tornou-se forma de distinção para uma classe urbana abastada [...]. p. 285

A nova família “civilizada” que se pretendia compor deveria ser diferente daquela do restante da população: qualquer parente, além de pai-mãe-filhos, atrapalharia. Assim, a imagem da sogra passou a vir associada a características negativas na década de 80 do século XIX. p. 286

As mães, homenageadas como as responsáveis pela civilização, pelo heroísmo, pela piedade cristã dos homens, eram percebidas como estorvo ao se tornarem sogras. Além disso, não se tratava de qualquer sogra, mas a do homem, o mesmo que escrevia nos jornais. p. 287

A proclamação da República pode ser vista como o momento a partir do qual os novos modelos femininos passaram a ser mais reforçados. Esse período promoveu intensas transformações e remanejamentos nas elites que vinham se configurando no decorrer do século XIX. Muitas da imagens idealizadas das mulheres sofreram mudanças e intensificações por conta das transformações que se operaram com a Proclamação da República. p. 291

Na virada do século, as imagens das prostitutas tornaram-se as referências de como as mulheres não deveriam ser. Seus comportamentos, seu modo de falar, de vestir, de perfumar-se, eram aqueles que deveriam ser evitados pelas mulheres que quisessem ser consideradas distintas. p. 305 


Psiquiatria e feminilidade. Magali Engel.

Uma das imagens mais fortemente apropriadas, redefinidas e disseminadas pelo século XIX ocidental é aquela que estabelece uma associação profundamente íntima entre a mulher e a natureza, opondo-a ao homem identificado à cultura. Retomada por um “velho discurso” que tentava justificar as teorias e práticas liberais - que, embora comprometidas com o princípio da igualdade, negavam às mulheres o acesso à cidadania, através da ênfase na diferença entre os sexos -, tal imagem seria revigorada a partir das “descobertas da medicina e da biologia, que ratificavam cientificamente a dicotomia: homens, cérebro, inteligência, razão lúcida, capacidade de decisão versus mulheres, coração, sensibilidade, sentimentos”.  Essas considerações remetem a duas questões importantes.
A construção da imagem feminina a partir da natureza e das suas leis implicaria em qualificar a mulher como naturalmente frágil, bonita, sedutora, submissa, doce etc. Aquelas que revelassem atributos opostos seriam consideradas seres antinaturais. Entretanto, muitas qualidades negativas - como a perfídia e a amoralidade - eram também entendidas como atributos naturais da mulher, o que conduzia a uma visão profundamente ambígua do ser feminino.
No século XIX ocidental, a velha crença de que a mulher era um ser ambíguo e contraditório, misterioso e imprevisível, sintetizando por natureza o bem e o mal, a virtude e a degradação, o princípio e o fim, ganharia uma nova dimensão, um sentido renovado e, portanto, específico. Amplamente disseminada, a imagem da mulher como ser naturalmente ambíguo adquiria, através dos pincéis manuseados por poetas, romancistas, médicos, higienistas, psiquiatras e, mais tarde, psicanalistas, os contornos de verdade cientificamente comprovada a partir dos avanços da medicina e dos saberes afins. p. 332

[...] a mulher transformava-se num ser moral e socialmente perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras extremamente rígidas que assegurassem o cumprimento do seu papel social de esposa e mãe; o que garantiria a vitória do bem sobre o mal, de Maria sobre Eva. Se a mulher estava naturalmente predestinada ao exercício desses papéis, a sua incapacidade e/ou recusa em cumpri-los eram vistas como resultantes da especificidade da sua natureza e, concomitantemente, qualificadas como antinaturais. Sob a égide das incoerências do instinto, os comportamentos femininos considerados desviantes - principalmente aqueles inscritos na esfera da sexualidade e da afetividade - eram vistos ao mesmo tempo e contraditoriamente como pertinentes e estranhos à sua própria natureza. Nesse sentido, a mulher era concebida como um ser cuja natureza específica avizinhava-se do antinatural. p. 332-3

Assim, no organismo da mulher, na sua fisiologia específica estariam inscritas as predisposições à doença mental. A menstruação, a gravidez e o parto seriam, portanto, os aspectos essencialmente priorizados na definição e no diagnóstico das moléstias mentais que afetavam mais freqüentemente ou de modo específico as mulheres. p. 333

Mas se queremos mesmo dar uma guinada na história das mulheres, deslocando-a para um campo bem mais fértil e instigante da história dos gêneros, é preciso que, entre outras coisas, abandonemos definitivamente essa obsessão em buscar comprovar que a mulher é mais discriminada, é mais explorada, é mais sofredora, é mais revoltada etc., etc. Nem mais, nem menos, mas sim diferentemente. Diferenças cujos significados não se esgotam nas distinções sexuais, devendo, portanto, ser buscados no emaranhado múltiplo, complexo, e muitas vezes, contraditório, das diversidades sociais, étnicas, religiosas, regionais, enfim, culturais. p. 334

Como estabelecer as fronteiras entre o normal e o patológico no mundo da sexualidade feminina que, definido nesses termos, revelava-se tão profundamente incerto? Os médicos do século XIX tomariam para si essa tarefa baseando-se em dois pressupostos: a normalidade ocuparia o espaço de uma pequena ilha cercada pela imensidão oceânica da doença; entre a água e a terra os limites seriam tão vagos e móveis quanto os definidos pelas próprias ondas. p. 340

Embora a idéia de que a mulher seria um ser assexuado ou frígido tenha sido bastante difundida entre os médicos brasileiros do século XIX, alguns deles reconheciam, explicitamente, a existência do desejo e do prazer sexual na mulher. Entre os muitos desdobramentos decorrentes da transformação do casamento em uma instituição higiênica, temos não apenas o reconhecimento, mas até mesmo o estímulo à sexualidade feminina. 33 para os médicos, a ausência ou a precariedade da vida sexual poderiam resultar em conseqüências funestas para as mulheres: como o hábito da masturbação - causador de esterilidade, aborto - ou o adultério. p. 342

Assim, a sexualidade só não ameaçaria a integridade física, mental e moral da mulher, caso se mantivesse aprisionada nos estreitos limites entre o excesso e a falta e circunscrita ao leito conjugal. Ademais, ao priorizarem o cumprimento dos deveres da maternidade (gestação. amamentação etc.) como característica indispensável da mulher saudável e incompatíveis com o pleno exercício da sexualidade, os médicos restringiriam a disponibilidade feminina para as práticas e prazeres sexuais, criando um impasse que acreditavam resolver afirmando a existência do gozo sexual através da amamentação. p. 342

Reconhecendo ou negando a existência do desejo e do prazer na mulher, os alienistas estabeleciam uma íntima associação entre as perturbações psíquicas e os distúrbios da sexualidade em quase todos os tipos de doença mental. p. 342

Cabe lembrar que entre as estratégias que fundamentariam a construção de uma ciência sexual ao longo do século XIX figurava a histerização do corpo da mulher, desqualificando-o como corpo excessivamente impregnado de sexualidade. 38
Entre os alienistas brasileiros, o caminhos percorridos pelo tema da histeria seguiram bem de perto a mesma trajetória, circunscrevendo-se em torno de duas questões-chave: a associação entre a histeria e o ser feminino; e a relação entre histeria e sexualidade e/ou afetividade. p. 343

As conquistas e sofisticações da psiquiatria na passagem do século XIX para o século XX, longe de questionarem a associação entre mulher e histeria, aprofundaram-na, conferindo-lhe status de verdade científica. Ainda por muito tempo, as palavras impetuosas do psiquiatra francês Ulysse Trélat, discípulo de Esquitol, continuariam a ecoar dentro e fora do mundo acadêmico e científico: “Toda mulher é feita para sentir, e sentir é quase histeria”. 79

Mulheres pobres e violência no brasil urbano. Rachel Soihet

Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existência. Como era grande sua participação no “mundo do trabalho”, embora mantidas numa posição subalterna, as mulheres populares, em grande parte, não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade. Eram mulheres que trabalhavam e muito, em sua maioria não eram formalmente casadas, brigavam na rua, pronunciavam palavrões, fugindo, em grande escala, aos estereótipos atribuídos ao sexo frágil. p. 367

Essas dificuldades se agravavam, pois muitas das idéias das mulheres dos segmentos dominantes se apresentavam fortemente às mulheres populares. Mantinham, por exemplo, a aspiração ao casamento formal, sentindo-se inferiorizadas quando não casavam; embora muitas vezes reagissem, aceitavam o predomínio masculino; acreditavam ser de sua total responsabilidade as tarefas domésticas, ainda que tivessem que dividir com o homem o ganho cotidiano. p. 367

A liberdade sexual das mulheres populares parece confirmar a idéia de que o controle intenso da sexualidade feminina estava vinculado ao regime de propriedade privada. A preocupação com o casamento crescia na proporção dos interesses patrimoniais a zelar. No Brasil do século XIX, o casamento era boa opção para uma parcela ínfima da população que procurava unir os interesses da elite branca. p. 368

A violência (masculina) surgia, assim, de sua incapacidade de exercer o poder irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência do que de força e poder. p. 370

As condições concretas de existência dessas mulheres (populares), com base no exercício do trabalho e partilhando com seus companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíram para o desenvolvimento de um forte sentimento de auto-respeito. Isso lhes possibilitou reivindicar uma relação mais simétrica, ao contrário dos estereótipos vigentes acerca da relação homem/mulher que previam a subordinação feminina e a aceitação passiva dos percalços provenientes da vida em comum. p. 377

A autonomia das mulheres pobres no Brasil da virada do século é um dado indiscutível. Vivendo precariamente, mais como autônomas do que como assalariadas, improvisavam continuamente suas fontes de subsistência. Tinham, porém, naquele momento, maior possibilidade que os homens de venderem seus serviços: lavando ou engomando roupas, cozinhando, fazendo e vendendo doces e salgados, bordando, prostituindo-se, empregando-se como domésticas, sempre davam um jeito de obter alguns trocados. p. 379

Na virada do século, o crime passional assumiu grandes proporções. p. 380

Os crimes beneficiavam-se da onda de romantismo no âmbito da literatura e da arte enfatizando o amor e a paixão. Situações desse teor eram retratadas por Tolstoi, Dostoievski, Daudet, Maupassant e D’Annunzio, cujas obras estão repletas de situações em que o amor e o ciúme aparecem como determinantes dos atos mais impulsivos. p. 381

Alguns países chegavam a adotar a norma de impunidade total em favor do marido que “vingasse a honra” ao surpreender sua mulher em adultério. No Brasil, de acordo com o Código Penal de 1890, só a mulher era penalizada por adultério, sendo punida com prisão celular de um a três anos. O homem só era considerado adúltero no caso de possuir concubina teúda e manteúda. p. 381

Os motivos da punição são óbvios, já que o adultério representava os riscos da participação de um bastardo na partilha dos bens e na gestão dos capitais. O homem, em verdade, tinha plena liberdade de exercer sua sexualidade desde que não ameaçasse o patrimônio familiar. Já a infidelidade feminina era, em geral, punida com a morte, sendo o assassino beneficiado com o argumento de que se achava “em estado de completa privação de sentidos e inteligência” no ato de cometer o crime, ou seja, acometido de loucura ou desvario momentâneo. p. 381-82

Na prática, reconhecia-se ao homem o direito de dispor da vida da mulher. p. 382

A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela ausência do homem, através da virgindade, ou pela presença masculina no casamento. Essa concepção impõe ao gênero feminino o desconhecimento do próprio corpo e abre caminhos para a repressão de sua sexualidade. Decorre daí o fato de as mulheres manterem com seu corpo uma relação matizada por sentimentos de culpa, de impureza, de diminuição, de vergonha de não ser mais virgem, de vergonha de estar menstruada etc. p. 389

Afinal, “pureza” era fundamental para a mulher, num contexto em que a imagem da Virgem Maria era o exemplo a seguir. “Ser virgem e ser mãe” constituía-se no supremo ideal dessa cultural, em contraposição à “mãe puta”, a maior degradação e ofensa possível da qual todas desejavam escapar. p. 390

Os crimes cometidos em nome da defesa da honra feminina equivaliam àqueles cometidos pelos homens, no caso da infidelidade da mulher. Percebe-se, portanto, por parte dos agentes jurídicos, uma tendência a considerar as mulheres que defendessem sua honra como merecedoras de tolerância, aceitando-se para o seu ato a justificativa do “estado de irresponsabilidade penal por privação de sentidos e inteligência”. p. 394

As defesas nos processos da mesma natureza não se pautam em aspectos essenciais: o significado da violência contra a mulher, o desrespeito à pessoa humana, à integridade individual da mulher, ao direito desta dispor de seu corpo. A defesa acentuava tão-somente a questão da honra feminina, cujo significado para a sociedade era o único relevante, um verdadeiro atentado à propriedade do marido ou do pai. p. 394-5

Além da violência física, sobre elas (mulheres populares) fez-se sentir, igualmente, a violência simbólica dando lugar à incorporação de inúmeros estereótipos. Em boa parte das situações essas mulheres desenvolveram táticas com vistas a mobilizar para seus próprios fins representações que lhes eram impostas, buscando desviá-las contra a ordem que as produziu; ou seja, definiram muitos de seus poderes por meio de um movimento de reapropriação e desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina contra o seu próprio dominador. Isso se evidencia nos casos de crimes contra a honra. p. 398

Escritoras, escritas, escrituras. Norma Telles
  
É preciso ressaltar o papel fundamental desempenhado pelos produtos culturais, em particular o romance, na cristalização da sociedade moderna. Escrita e saber estiveram, em geral, ligados ao poder e funcionaram como forma de dominação ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos esperados em determinadas situações. p. 401-2

O discurso sobre a “natureza feminina”, que se formulou a partir do século XVIII e se impôs à sociedade burguesa em ascensão, definiu a mulher, quando maternal e delicada, como força do bem, mas, quando “usurpadora” de atividades que não lhe eram culturalmente atribuídas, como potência do mal. Esse discurso que naturalizou o feminino, colocou-o além ou aquém da cultura. Por esse mesmo caminho, a criação foi definida como prerrogativa dos homens, cabendo às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição. p. 403

A situação de ignorância em que se pretende manter a mulher é responsável pelas dificuldades que encontra na vida e cria um círculo vicioso: como não tem instrução, não está apta a participar da vida pública, e não recebe instrução porque não participa dela. p. 406

O século XIX não via com bons olhos mulheres envolvidas em ações políticas, revoltas e guerras. As interpretações literárias das ações das mulheres armadas, em geral, denunciam a incapacidade feminina para a luta, física ou mental, donde concluem que as mulheres são incapazes para a política, ou que esse tipo de idéia é apenas diversão passageira de meninas teimosas que querem sobressair. p. 407

Ao mesmo tempo que se pregavam valores burgueses, eram reforçados preconceitos de classe e raça. p. 429

Os higienistas empenharam-se com afinco na tarefa de formar a “mãe burguesa”. Empreenderam campanhas para convencer as mulheres a amamentar. Visavam também à “mãe educadora” sob vigilância do médico de família. Definiam a mulher como ser afetivo e frágil. Doçura e indulgência eram atributos que se somavam aos anteriores para demonstrar a inferioridade da mulher, cujo cérebro, acreditavam, era dominado pelo capricho ou instinto de coqueteria. Para que não adoecesse, era preciso que aceitasse o comando do homem e se dedicasse inteiramente à maternidade e à família. As mulheres pobres, as vendedoras de rua, as lavadeiras vão sendo expulsas do centro, que se afrancesa, e de seus ofícios de sobrevivência. p. 429

Em nome do perigo venéreo, domesticam (os médicos) a sexualidade feminina. p. 429

Durante o Império, e mais ainda no início do período republicano, a medicina higiênica tem um caráter de polícia médica. É dessa medicina que surgirá, entre nós, a psiquiatria. Desde o início a medicina institucional, em suas várias formas, pretendia interferir no “organismo social”, cuidar da saúde da cidade e dos indivíduos. A versão psiquiátrica nacional era nitidamente autoritária, permeada pela noção de progresso dos positivistas. Assim, irá perseguir aqueles que resistem às disciplinas para a normalização. Artistas e intelectuais, em especial, serão objeto de desconfiança e considerados problemas potenciais pelos alienistas. p. 430

Nas últimas décadas do século XIX, surge um novo tipo de personagem, a histérica. Os romances fazem estudos de temperamento que mais parecem relatos de enfermidades ou diagnósticos. Descrevem ‘casos de alcova’, temperamentos patológicos. O médico aparece com a palavra na literatura; as personagens passam a evidenciar uma obsessiva medicalização da linguagem. Quanto mais a personagem do médico discursa, dá aulas, mais aumenta sua credibilidade e sedução. Em geral, as personagens histéricas são enfermas, órfãs de mãe, e é sugerido que a causa da enfermidade é a quebra do quadro familiar. A cura está no casamento, na procriação, na aceitação das normas institucionalizadas. Os traços que estigmatizam a histérica na sociedade da família, do casamento e da maternidade higienizada são sua orfandade, isto é, a falta de um modelo feminino e o fato de serem solteiras e fogosas.
O médico, através de suas citações científicas, é que descobre o “temperamento doentio”, duplamente faltoso, um espaço a ser preenchido por seus discursos infindáveis. As histéricas quase não falam, os médicos falam por elas e só lhes resta reproduzirem os sintomas. Resultado: desmaios, enxaquecas e gritos. A mulher letárgica é socorrida pelo médico, e, mesmo que ela morra, o doutor permanece cercado de uma aura de sabedoria.
A despeito de muitas vozes contrárias, o mito da fragilidade feminina, da incapacidade física ou mental da mulher, floresceu ainda neste final de século. p. 430-1









sexta-feira, 18 de maio de 2012

Os mortos vivos - Peter Straub, 1979

Um livro realmente saboreável. Quinhentas e tantas páginas que passaram realmente voando pra mim. Peter Straub desenvolve em sua narrativa uma teoria do universo sobrenatural perturbadora. E se todos os fenômenos sobrenaturais, paranormais ou extraordinários estivessem ligados à apenas uma espécie de ser não-humano? E se todo esse universo misterioso de manifestações incompreendidas fossem representações manipuladas por tais seres, no que para eles seria uma brincadeira sádica? E se esses seres fossem profundamente maléficos?

Indicadíssimo!

quarta-feira, 9 de maio de 2012

O grande livro de histórias de fantasmas - Richard Dalby (org.), 2006

Esse livro é de histórias de fantasmas mesmo, ou seja, aparições, casas mal-assombradas, sons, vozes, espíritos inconformados e inquietos, revoltosos. Contos que apresentam narrativas de lendas e mitos que refletem mais do que uma mentalidade supersticiosa, muitas vezes até mesmo dilemas éticos através de fantasmas que muitas vezes habitam mentes torturadas pelo remorso. Cabe ao leitor, ou ao ouvinte, tanto no caso do livro, como sempre que se depara com uma história dessas, julgar como deseja encarar, sob uma luz turva e confusa entre os abismos do desconhecido, ou se sob o feixe de uma pretensa razão científica.
Algo interessante sobre o livro é que possui contos de várias épocas, desde os tempos napoleônicos, até tempos mais modernos. Todas as histórias de autorias feminina. Alguns contos são um pouco ingênuos, devido a própria época em que foram escritos, outros, porém, verdadeiramente arrepiantes.

Elenco algumas das quais mais gostei:

A porta aberta, de Margaret Oliphant
Os olhos, de Edith Wharton
O livro, Margaret Lawrence


Abaixo, alguns trechos:

Além desta terra e além da espécie humana há um mundo invisível e um reino de espíritos; esse mundo está à nossa volta, pois está por toda parte. (Jane Eyre, de Charlotte Brontë).

Contudo, acho que todas as gerações têm um conceito de si próprias que as eleva, na sua opinião, acima da que vem depois delas. (A Villa Lucienne, de Ella D’Arcy)

Pareceu-me - que os céus nos ajudem, como sabemos pouco sobre tudo! - que uma cena daquele tipo seria capaz de deixar a sua marca no cerne oculto da natureza. (A porta abert, de Margaret Oliphant)

(...) mas me intrigava ver uma mulher satisfeita sendo tão desinteressante, e eu queria descobrir o segredo dessa satisfação. (Os olhos, de Edith Wharton)

As coisas que nos perturbam à meia-noite são insignificantes às nove da manhã. (O livro, de Margaret Irwin)

Eu senti como se eu estivesse sendo agarrado por esse horrível terror primitivo que não tinha nenhuma relação com a razão ou com saber em quê se acredita e em quê não se acredita. (A assombração da residência do Reitor de Shawley, Ruth Rendell)

O álcool é bom, às vezes é praticamente medicinal. Garantia as coisas. Mas só até certo ponto; além dele não havia volta, apenas rápida deterioração. ( O sonho das mulheres loiras, A. L. Barker)

Parece que as pessoas dispõem de um tempo ilimitado para atos rancorosos em relação a outras pessoas que nunca lhes causaram nenhum mal pessoal. (O traidor, Joan Aiken)

Nossos vizinhos tinham o recato despretensioso, o acanhamento simples e discreto das pessoas totalmente felizes. Não viam necessidade de se afirmar; já tinham tudo de que precisavam. (O traidor, Joan Aiken)

 Mas se lembre, minha querida: a morte não são apenas plumas negras e berreiro. Ela precisa ser enfrentada do melhor modo que pudermos. (O traidor, Joan Aiken)


Referência bibliográfica:

DALBY, Richard (org.). O grande livro de histórias de fantasmas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Intensidade - Dean Koontz, 1995

Então, aqui vai mais uma indicação do Koontz, um dos mestres do terror/suspense. Como no anterior que indiquei - Lágrimas do Dragão -, toda a trama se desenvolve num período de aproximadamente 24 horas, numa seqüência realmente vertiginosa de acontecimentos.

Sobrevivente incógnita de um massacre à família de sua melhor amiga, Chyna, se vê enredada numa situação aterrorizante com o psicopata que permanece na casa. Apavorada e confusa, dá início a uma verdadeira coreografia de "esconde-esconde" que acaba por levá-la até o trailer do assassino. Já tomada por um pavor macabro, ao perceber o movimento de arrancada do trailer, ela descobre que aquela noite medonha está apenas começando.

Para além dos clichês psicológicos que revestem os mistérios da psicopatia, o assassino construído por Koontz é deveras singular. Não é, de maneira alguma, um lunático, perturbado e atormentado pela sua condição. Pelo contrário, a considera um verdadeiro dom concedido a ele, uma espécie de homem superior. Equilibrado, frio, metódico, um assassino de enregelar o sangue.

Trecho do livro:


No dia 1º de julho, enquanto Ariel sentava-se na toalha, olhando para o mar que o sol enchia de lantejoulas, Chyna tentava ler um jornal, mas todas as notícias a afligiam. Guerra, estupro, assassinato, assalto, políticos irradiando ódio de todos os lados do espectro político. Leu uma crítica de cinema com comentários insidiosos sobre o diretor e o roteirista, questionando o direito deles de criar. Passou em seguida para uma colunista que fazia um ataque igualmente rancoroso a um romancista. Não eram críticas genuínas, mas puro veneno, e ela jogou o jornal numa lata de lixo. Aqueles pequenos ódios e agressões indiretas pareciam-lhe reflexos desagradáveis e óbvios de impulsos homicidas mais fortes que infeccionavam o espírito humano; os assassinatos simbólicos eram diferentes apenas no grau e não na espécie, do homicídio de fato, e a doença nos corações de todos era igual.
Não há explicações para o mal humano. Apenas desculpas.


...

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sombras da noite - Stephen King, 1978


Não adianta, Stephen King é um gênio. Não só pelas tramas, mas pelo domínio que ele tem da arte de escrever. O terror expresso numa verdadeira dança de palavras e frases, com uma cadência quase poética. Lindo de se ler. Este é um livro de contos, o que certamente torna a leitura mais dinâmica. Indicadíssimo! 
É importante comentar sobre o "terror natural" que a gente encontra em alguns dos contos do King, ou seja, o terror da vida real, presente em dilemas cotidianos, que assumem um aspecto definitivamente macabro quando vistos através dos olhos do autor. Exemplos desse "terror natural", estão em Primavera Vermelha, O Ressalto (ótimo), Ex-fumantes Ltda., O último degrau da escada, O Homem que Adorava Flores e A mulher no quarto.


Segue lista dos contos no livro. Grifei aqueles que julgo serem os melhores.


- Jerusalem's Lot;
- Último Turno;
- Ondas Noturnas;
- Eu Sou o Portal;
- A Máquina de Passar Roupa;
- O Bicho-Papão;
- Massa Cinzenta;
- Campo de Batalha;
- Caminhões;
- Às Vezes Eles Voltam;
- Primavera Vermelha;
- O Ressalto;
- O Homem do Cortador de Grama;
- Ex-Fumantes Ltda;
- Eu Sei do que Você Precisa;
- As Crianças do Milharal;
- O Último Degrau da Escada;
- O Homem que Adorava Flores;
- A Saideira;
- A mulher no quarto.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

BELAS MALDIÇÕES, 1990.

O que aconteceria se o Anticristo, destinado a liderar o Apocalipse na Terra, fosse trocado na maternidade? O que aconteceria se esse garoto crescesse como um garoto comum, sem a influência das forças sombrias do mundo subterrâneo?
O que fazer quando o Adversário, Destruidor de Reis, Anjo do Poço Sem Fundo,
Grande Besta que é chamada de Dragão, Príncipe Deste Mundo, Pai das Mentiras, Filho de Satã e Senhor das Trevas, não passa de um garoto pré-adolescente bastante confuso e com fortes tendências ideológicas utópicas sobre um mundo melhor, um mundo corrigível?
Esse livro é uma narrativa bastante bem-humorada e irônica do Apocalipse, através de um perspectiva que ultrapassa a dicotomia de bem e mal, caindo num terreno deveras filosófico. Uma das passagens que resume bastante esse aspecto do livro é essa que segue:

— Claro que eu tenho que escolher um lado — disse Pimentinha. — Todo mundo tem que escolher um lado em alguma coisa.
Adam (Anticristo) apareceu para tomar uma decisão.
— Sim. Mas acho que você pode criar seu próprio lado.
p. 297

Abaixo, as notas que extraí:


GAIMAN, Neil; PRATCHETT, Terry. Belas maldições: as belas e precisas profecias de Agnes Nutter, bruxa : romance. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 374 p.

Deus age de formas extremamente misteriosas, para não dizer tortuosas. Deus não joga dados com o universo; Ele joga um jogo inefável de sua própria criação, que poderia ser comparado, na perspectiva de qualquer um dos outros jogadores [todos os dois], a estar envolvido numa obscura e complexa versão de pôquer numa sala completamente escura, com cartas em branco, por apostas infinitas, com um crupiê que não lhe diz quais são as regras, e que sorri o tempo todo. p. 15


A maioria dos membros do convento eram satanistas empedernidas, como seus e pais e avós antes delas. Haviam sido criadas dentro do satanismo e não eram, pensando bem, particularmente más. Seres humanos não costumam ser. É que eles se deixam levar por novas idéias, como se vestir com uniformes camuflados e sair matando pessoas, ou se vestir com lençóis brancos e sair linchando pessoas, ou se vestir com jeans justos e tingidos e sair tocando guitarras na cara das pessoas. Ofereça às pessoas um novo credo com um uniforme e seus corações e mentes seguirão. p. 29

Pode ser de alguma ajuda compreender as questões humanas para esclarecer que a maioria dos grandes triunfos e tragédias da história são provocados não pelas pessoas serem fundamentalmente boas ou más, mas por elas serem, fundamentalmente, pessoas. p. 30

[...] ele gostava das pessoas. Era um grande defeito num demônio.
Ah, ele dera o melhor de si para infernizar as vidas deles, porque esse era seu trabalho, mas nada que ele pudesse pensar era metade do que eles pensavam por conta própria. Pareciam ter um talento para isso. Estava embutido no projeto da criação deles de algum modo. Nasceram num mundo que era contra eles em um milhão de coisinhas, e então dedicavam a maior parte de suas energias a torná-lo pior. Ao longo dos anos, Crowley achara cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse contra o plano de fundo natural da maldade generalizada. No decorrer do último milênio, houve momentos em que sentiu vontade de enviar uma mensagem lá para Baixo dizendo: escutem, que tal a gente desistir de tudo agora, fechar Dis e o Pandemônio e todo o resto e nos mudarmos para cá? Não há nada que possamos fazer a eles que eles já não façam por conta própria, e eles fazem coisas que nós sequer pensamos, freqüentemente envolvendo eletrodos. Eles têm o que não temos. Eles têm imaginação. E eletricidade, é claro. p. 37

E justo quando você pensa que eles eram mais malignos do que o Inferno jamais poderia ser, eles podiam ocasionalmente mostrar mais graça do que o Céu jamais sonhara. Muitas vezes o mesmo indivíduo estava envolvido. Era essa coisa de livre-arbítrio, claro. Era um saco.
Aziraphale havia tentado explicar isso para ele certa vez. A questão, dissera ele — isso foi por volta de 1020, quando fizeram seu primeiro Acordo —, a questão era que, quando um humano era bom ou mau, era porque queria sê-lo. Ao passo que pessoas como Crowley e, claro, ele próprio eram orientadas em seus caminhos desde o começo. As pessoas não podiam se tornar inteiramente santas, dissera ele, a menos que também tivessem a oportunidade de serem definitivamente más.
Crowley pensara nisso por algum tempo e, por volta de 1023, dissera, Espere aí, isso só funciona se todos começarem iguais, ok? Você não pode jogar alguém numa cabana lamacenta no meio de uma zona de guerra e esperar que eles façam coisas tão boas quanto alguém que nasceu num castelo.
Ah, dissera Aziraphale, essa é a parte boa. Quanto mais de baixo você começa, mais oportunidades você tem.
Crowley dissera: Isso é loucura.
Não, dissera Aziraphale, é inefável.

p. 38


De qualquer modo, por que estamos falando de bem e mal? São apenas nomes de facções. Nós sabemos disso. p. 56

Dizem que o Diabo tem as melhores músicas.
Isso é em grande parte verdade. Mas o céu tem os melhores coreógrafos. p. 82

- Não acho que sair queimando gente seja permitido - disse Adam. - Senão as pessoas estariam fazendo isso a todo instante.
- Tudo bem se você for religioso - disse Brian com segurança. - E isso impede que as bruxas vão para o inferno, então acho que elas até ficariam bastante agradecidas se entendessem isso direito. p. 125

Anathema não só acreditava em linhas de energia telúrica como também em focas, baleias, bicicletas, florestas tropicais, pães de trigo integral, papel reciclado, sul-africanos brancos fora da África do Sul e americanos fora de praticamente qualquer lugar até e incluindo Long Island. Ela não compartimentalizava suas crenças. Estavam fundidas numa crença enorme e inteiriça e, comparada a ela, a de Joana D'Arc seria apenas uma ideiazinha vaga. p. 137

Costumava-se pensar que os eventos que mudavam o mundo eram coisas como grandes bombas, políticos maníacos, enormes terremotos ou vastas movimentações populacionais, mas hoje em dia se sabe que esta é uma visão muito antiquada sustentada por pessoas inteiramente fora de contato com o pensamento moderno. As coisas que realmente mudam o mundo, segundo a teoria do Caos, são as coisas pequenas. Uma borboleta bate as asas na selva amazônica, e subseqüentemente uma tormenta ataca metade da Europa. p. 139
— É gozado — disse ele. — Você passa a vida inteira indo pra escola e aprendendo um monte de coisas, e eles nunca falam pra você de coisas como o Triângulo das Bermudas, ovnis e todos esses Velhos Mestres correndo por dentro da Terra. Por que a gente tem que aprender coisas chatas quando tem tanta coisa fantástica que podíamos estar aprendendo, é isso o que eu quero saber. p. 160
Newton Pulsifer jamais tivera uma causa em sua vida. Tampouco, até onde ele sabia, jamais acreditara em nada. Isso era embaraçoso, porque ele realmente queria acreditar em alguma coisa, já que reconhecia que crença era a tábua de salvação que fazia a maioria das pessoas passar pelas águas turbulentas da Vida. Ele teria gostado de acreditar num Deus supremo, embora tivesse preferido meia hora de bate-papo com Ele antes de se comprometer, para esclarecer uma ou duas coisas. Ele freqüentara todos os tipos de igrejas, esperando aquele lampejo único de luz azul, que não havia aparecido. E então tentou e se tornou um Ateu oficial, e não tinha a força inabalável e confiante para crer sequer nisso. E todos os partidos políticos lhe pareciam igualmente desonestos. E ele desistira da ecologia quando a revista ecológica que assinava mostrou aos seus leitores um plano de uma horta auto-suficiente, e haviam desenhado a cabra ecológica a um metro da colméia ecológica. Newt passara muito tempo na casa de sua avó, no campo, e achava que entendia alguma coisa dos hábitos de cabras e abelhas, e concluiu, portanto que a revista era editada por um bando de maníacos vestidos com jardineiras. Além do mais, ela usava a palavra "comunidade" com freqüência demais; Newt sempre suspeitara de que as pessoas que usavam regularmente a palavra "comunidade" a estavam utilizando num sentido muito específico que excluía a ele e todos que ele conhecia.
Então tentara crer no Universo, o que lhe pareceu sadio o suficiente até começar inocentemente a ler novos livros com palavras como Caos, Tempo e Quântico nos títulos. Descobrira que até mesmo as pessoas cujo trabalho era, por assim dizer, o Universo, no fundo não acreditavam nele e estavam até muito orgulhosos de não saber o que ele realmente era ou mesmo se ele poderia existir teoricamente.
Para a mente certinha de Newt isso era intolerável.
Newt não havia acreditado nos Lobinhos, e depois, quando ficou grande o bastante, tampouco nos Escoteiros. p. 169-70

— É como você disse outro dia — disse Adam. — Você cresce lendo sobre piratas, caubóis, homens do espaço, essas coisas, e justo quando você pensa que o mundo está cheio de coisas fantásticas, eles te dizem que a verdade é que ele está cheio é de baleias mortas, florestas devastadas e lixo nuclear que vai ficar por aí milhões de anos. Mundinho boboca de se crescer, se você quer minha opinião. p. 208

Foi então que Marvin entrou para a religião. Não a do tipo silencioso e pessoal, que envolve fazer boas ações e viver uma vida melhor; nem mesmo o tipo que envolve vestir um terno e tocar as campainhas dos outros; mas o tipo que envolve ter sua própria rede de TV e chamar pessoas para lhe dar dinheiro. p. 257

Para ampliar seus aspectos ocultos, Julia havia começado a usar muita jóia de prata feita à mão e sombra verde nos olhos. p. 266

Carros, teoricamente, são um método fantasticamente rápido de se viajar de um lugar a outro. Engarrafamentos, por outro lado, são uma fantástica oportunidade de se ficar absolutamente parado. p. 283




segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que o Tio Sam realmente quer - Noam Chomsky, 1999.


Li esse livro como demanda da faculdade, e posso dizer que foi um soco no estômago. É um estudo revelador sobre as ações norte-americanas no período do pós-guerra (2ªGM), sobre as intervenções destes no mundo todo, sobre o apoio clandestino a uma série de ditaduras e conflitos como nos casos da Nicarágua, El Salvador, Panamá, Guatemala, Sudeste Asiático, enfim, pelo mundo todo; intervenções que contaram com verdadeiras atrocidades ao ser humano.

Dentre tantos, deparei-me com o absurdo que sucede. É um trecho do Estudo de Planejamento Político 23 [EPP 23], elaborado em 1948, pelo Departamento de Estado dos EUA, redigido pelo então encarregado George Kennan. Na verdade é absurdo, mas nem tanto. Nem tanto, porque a gente já sabe bem como funcionam as coisas por trás dos panos, e ficar chocado não é exatamente a reação.

Esse documento foi concebido como ultra secreto, mais como um diálogo entre os estrategistas americanos do pós-guerra, que objetivavam claramente a hegemonia e monopólio da economia mundial. Essa história dos EUA dominar o mundo parece meio clichê já, mas é interessante perceber como eles realmente estavam articulados no sentido de elaboração de metas e estratégias de dominação, no sentido de ações concretas, para que a gente saia um pouco daquele plano de idéias vagas de conspiração.


Segue um trecho:

Precisamos parar de falar de vagos e irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor. 

"Seguindo essas mesmas linhas, numa reunião de embaixadores americanos na América Latina, em 1950, Kennan observou que a maior preocupação da política externa norte-americana devia ser 'a proteção das nossas (isto é, da América Latina) matérias-primas. Devemos combater a perigosa heresia que, segundo informava a Inteligência americana, estava se espalhando pela América Latina: “A idéia de que o governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo'. Os estrategistas americanos chamam esta idéia de comunismo. [...] se elas apóiam tal heresia, elas são comunistas."




Ficha de leitura completa:



Os objetivos principais da política externa dos EUA

>> A proteção do nosso território.


A relação entre os EUA e os outros países remonta às origens da história da América, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de águas, comecemos então por aí. Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos rivais industriais, aos EUA ela propiciava enormes benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que triplicou. p. 9

Aqueles que determinam a política norte-americana sabiam muito bem que os EUA sairiam da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que, durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo do pós-guerra. p. 9-10

>> A “Grande Área”


[...] grupos de estudos do Departamento de Estado e do Conselho de Relações Exteriores desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que eles denominaram a “Grande Área” [se possível o mundo inteiro], para que esta fosse subordinada às necessidades da economia norte-americana.  A divisão das funções e setores específicos da nova ordem mundial seria a seguinte:

- Países industrializados: grandes oficinas, trabalhando sob a supervisão norte-americana.

- Terceiro Mundo: fonte de matérias-primas e mercado consumidor para as sociedades industriais capitalistas.

 p. 15-16

A Guerra do Vietnã emergiu da necessidade de garantir esse papel de serviçal. Os vietnamitas nacionalistas não quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaça não era a de que eles iriam conquistar alguém, mas que eles poderiam dar um exemplo perigoso de independência nacional, que inspiraria outros países na região. p. 16

>> A restauração da ordem tradicional


Os estrategistas do mundo pós-guerra logo perceberam que ia ser imprescindível, para o bem das empresas americanas, que as outras sociedades ocidentais se refizessem dos prejuízos da guerra, para que pudessem importar mercadorias manufaturadas dos EUA, e assim fornecerem oportunidades de investimentos. p. 18

A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominação das empresas, com a divisão e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da reconstrução sendo colocado inteiramente nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres. p. 18

[...] isso requeria extrema violência, mas, entre outras, isso era feito por meio de medidas mais suaves, como subverter eleições ou esconder alimentos extremamente necessários. p. 18

Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a “ameaça” na Europa não era a agressão soviética, mas a resistência anti-fascista operária e camponesa com seus ideais democráticos radicais, o poder político e a atração dos partidos comunistas locais. p. 19

Outro aspecto da repressão à resistência anti-fascista foi o recrutamento de criminosos de guerra, como Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na França. Lá, ele recebeu o apelido de “açougueiro de Lyon”. Embora ele tivesse sido responsável por crimes hediondos, o Exército dos EUA encarregou-o da espionagem na França. p. 23

Mais tarde, quando se tornou difícil, ou impossível, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles esconderam-se nos EUA ou na América Latina, muitas vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas. Lá, eles se tornaram conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos EUA, [...] traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores - ensinando a camponeses latino-americanos técnicas de tortura inventadas pela Gestapo. p. 23-24

>> Nosso compromisso com a democracia


[...] a principal ameaça à nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo do Terceiro mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os “regimes nacionalistas” que atendem às “exigências populares de elevação imediata dos baixos padrões de vida das massas” e produção de bens que satisfaçam às suas necessidades básicas. p. 24

As metas: evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um golpe de sorte eles chegassem ao poder, retirá-los e instalar ali governos que favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produção para exportação e o direito de remessa de lucros para fora do país. p. 24-25

Os EUA esperam contar com a força e fazer alianças com os militares, de modo que se pode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do controle. p. 25

Outro problema apontado nesses documentos secretos, é o excessivo liberalismo dos países do Terceiro Mundo [...], onde os governos não estão suficientemente comprometidos com o controle de idéias, restrições de viagens e onde o sistema judicial é tão deficiente que exige prova para acusação de crimes. 25-26

[...] ligeira e superficial encenação de interesse humano em relação aos trabalhadores → efeito psicológico. [...] para manter as massas da América Latina na linha, “há que adulá-las um pouco, para fazê-las pensar que você gosta delas”. p. 26

Somos radicalmente opostos à democracia se seus resultados não podem ser controlados. O problema com as democracias verdadeiras é que elas podem fazer seus governantes caírem na heresia de responderem às necessidades de sua própria população, em vez das dos investidores norte-americanos. p. 26-27

[...] enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro é com a “empresa capitalista privada”. p. 27

>> A ameaça do bom exemplo


Desde a Revolução Bolchevique de 1917, até a queda dos governos comunistas do Leste Europeu, no final da década de 1980, era possível justificar qualquer ataque norte-americano como defesa contra a ameaça soviética. p. 29

Os estrategistas norte-americanos, desde fins dos anos 1940, até os dias de hoje, têm advertido que “uma maçã podre pode estragar todo o lote”. p. 31

[...] o que os EUA querem é “estabilidade”, segurança para “as classes dominantes e liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos democráticos formais, ok. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. p. 32

A menos que você entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro Mundo, a política externa norte-americana parece ser uma série de erros ocasionais, inconsistentes e confusos. Na verdade, nossos líderes têm sido mais que bem-sucedidos, dentro dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a eles atribuídas. p. 36

Devastação no exterior

>> Nossa política de boa vizinhança


Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos inteiramente de lado a preocupação com os “objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização?” p. 37

“a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos latino-americanos que torturam seus cidadãos”. Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio. p. 37

[...] há estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana, ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. p. 37

A Aliança para o Progresso fortificou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, [...] a produção de carne aumentou, enquanto o consumo de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo produz um “milagre econômico” onde o PNB sobe enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular inevitavelmente aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. p. 38

O primeiro passo é o uso da polícia [...]. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército, é tempo de derrubar o governo. p. 39

Os países que tentaram inverter as regras tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos EUA. p. 39

Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. p. 39-40

Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra. p. 40-41

Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos, em geral para a maior parte da população, etc. p. 41

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas. p. 42

>> O bandido de aluguel do mundo


Nós devemos ser “mercenários bem dispostos”, pagos pelos nossos rivais por nossos amplos serviços prestados, usando nosso “monopólio de poder” no “mercado de segurança” para manter “nosso controle sobre o sistema econômico mundial”. Deveríamos administrar um plano de proteção global, vendendo “proteção” para outras potências ricas, que nos pagariam uma “recompensa de guerra”. p. 97

Quando o Estado está comprometido com tais políticas, deve de alguma forma buscar uma maneira de distrair a população, para impedi-la de ver o que está acontecendo ao seu redor. Não há muitas maneiras de fazer isso. As mais comuns são inspirar medo a inimigos terríveis que estão prestes a nos subjugar e reverenciar nossos grandes líderes, que nos salvam a tempo do desastre. p. 98

Essas não são leis da natureza. Os processos e as instituições que as engendram podem ser mudados. Mas isso exigiria profundas mudanças culturais, sociais e institucionais que não aconteceriam a curto prazo, inclusive mudanças nas estruturas democráticas, que vão além da seleção periódica de representantes do mundo empresarial para dirigir os negócios nacionais e internacionais. p. 99

Lavagem cerebral interna

>> Como funcionava a Guerra Fria


Naturalmente, tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de gerenciamento global, chamado Guerra Fria, foi estabelecido. p. 102

No lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções na Europa Oriental (...). No lado americano, as intervenções eram no mundo inteiro, refletindo o status alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da história. p. 103

Cada superpotência controlava seu inimigo principal - sua própria população - aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. p. 103

Numa avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito entre a URSS e os EUA, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência em seu próprio domínio. p. 104

Entretanto, se esta fase singular terminou, os conflitos Norte-Sul continuam. Um dos lados pode ter se retirado do jogo, mas os EUA procedem como antes - na realidade mais livremente - com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. p. 105

>> A guerra contra certas drogas

Um dos substitutos do extinto Império do Mal tem sido a ameaça representada pelos traficantes de drogas da América Latina. p. 106

Assim como a ameaça soviética, tais inimigos fornecem uma boa desculpa para a presença militar americana onde haja atividade rebelde ou outros distúrbios.
Assim, internacionalmente, “a guerra às drogas” fornece um pretexto para intervenções. Internamente tem pouco a ver com as drogas, mas muito a ver com a distração da população, aumentando a repressão nos centros urbanos e apoiando o ataque às liberdades civis. p. 107

A estreita correlação entre o comércio de drogas e o terrorismo internacional não é nenhuma surpresa. As operações clandestinas necessitam de muito dinheiro, que deve ser lavado. E elas (as operações) precisam de criminosos eficientes. E por aí vai. p. 112

>> Socialismo, o falso e o verdadeiro

Pode-se questionar o significado do termo “socialismo”, mas se ele tem algum significado, este é, antes de tudo, o controle de produção pelos próprios trabalhadores, não pelos donos e dirigentes que os comandam e tomam decisões, seja em empresas capitalistas ou em Estados totalitários. p. 118

Em qualquer significado mais profundo do termo socialismo, os bolcheviques apressaram-se, mais uma vez, em destruir os componentes socialistas nele existentes. Desde então, nenhuma divergência socialista foi permitida. p. 118

Os bolcheviques chamaram seu sistema de socialista para explorar o prestígio moral do socialismo.
O Ocidente adotou a mesma prática por uma razão oposta: difamar ideais libertários, associando-os com os calabouços bolcheviques para minar a crença popular de que seria possível o progresso em direção a uma sociedade mais justa (...). p. 120


>> A mídia

Sejam chamadas de “liberais” ou de “conservadoras”, as principais mídias são grandes empresas pertencentes e interligadas a conglomerados maiores ainda. p. 120

(...) “vazamento de informações”, por exemplo, são amiúde maquinações produzidas enganosamente por autoridades, em cooperação com a mídia, que finge nada saber. p. 121

Para servir aos interesses dos poderosos, a mídia deve apresentar um quadro toleravelmente realista do mundo. p. 121-122

A mídia é apenas uma parte de um sistema doutrinário maior: as outras partes são os jornais de opinião, as escolas e as universidades, as pesquisas acadêmicas, e assim por diante. p. 122

Esses setores do sistema doutrinário servem para distrair a grande massa e reforçar os valores sociais básicos: a passividade, a submissão às autoridades, as predominantes virtudes da avareza e da ganância pessoal, a falta de consideração com os outros, o medo de inimigos reais e imaginários. p. 123

O futuro

>> As coisas mudaram

É importante reconhecer o quanto o cenário mudou nestes últimos trinta anos em conseqüência dos movimentos populares, que se organizaram de forma solta e caótica em torno de certas questões como os direitos civis, a paz, o feminismo, o meio ambiente e outros temas de interesse humano. p. 125

Atualmente, a intervenção clássica não é mais considerada uma opção. Os métodos limitam-se ao terror clandestino, mantido oculto da população interna, ou à demolição “rápida e fulminante” de “inimigos muito mais fracos”, após uma enorme campanha de propaganda, expondo-os como monstros de poder indescritível. p. 126

Em outras áreas também há mais abertura e entendimento, mais ceticismo e questionamento da autoridade. Logicamente, as últimas tendências são uma faca de dois gumes. Elas podem levar ao pensamento independente, à organização popular e a pressões mais que necessárias por transformações institucionais. Ou podem fornecer uma base popular de pessoas amedrontadas para novos líderes autoritários. p. 127

>> O que se pode fazer

(...) uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incomoda é não ser passivo e aquiescente. (...) Manifestar-se, escrever cartas e votar podem ser ações bastante significativas, dependendo da situação. Mas o ponto principal é ser persistente e organizado. p. 127-128

Pode-se também fazer sua própria pesquisa. Não confie apenas na história convencional dos livros e textos de ciência política. p. 129



Referência:

CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.