quinta-feira, 24 de março de 2011

Música ao longe - Érico Veríssimo, 1933



Neste livro o autor segue narrando a vida da personagem Clarissa, também protagonista do livro anterior que traz seu nome como título. Essa história continua no livro Um lugar ao Sol, de 1936, que também é explêndido, mas não é o tema aqui. Essa narrativa é singela, realista, romântica. Vasco, primo de Clarissa, é um dos personagens mais cativantes que eu já li. Arisco, o Gato do Mato, como é chamado, tem um posição radical mediante os melindres dos tradicionalismos aristocráticos. Mais uma vez com a vantagem de referência gaúcha, a obra mostra um cenário interiorano decadente, onde os grandes latifundiários vão ficando à míngua na medida em que os valores sociais vão sendo invertidos com a introdução das novas relações econômicas impostas pelo capitalismo ainda incipiente. Em 1934, Música ao longe foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis, sendo considerado um dos primeiros romances regionalistas gaúcho. Boa leitura!


VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. 38ª edição. São Paulo: Globo, 1995. 240 p.

                Clarissa caminha à cadência dos pensamentos... O engraçado é que a gente fica moça, compreende melhor as coisas, estuda nos livros mas continua sentindo mais ou menos o que sentia quando criança. Certas impressões custam a se apagar. p. 6

                Quero escrever neste diário tudo o que penso, tudo o que sinto. Mas a gente nunca escreve tudo o que pensa, tudo o que sente. Por que será que só somos sinceros pensando? p. 10

Se o teto alto de estuque devolvesse as vozes que subiram para ele no passado... Se o espelho tornasse a refletir as imagens perdidas... p. 17

De que vale este vestido branco de organdi? De que vale este quadro laqueado de verde-claro? De que vale esse espelho? E aquelas flores? E aqueles quadrinhos nas paredes? De que serve esta vontade que a gente tem de ver e de fazer coisas bonitas? De que vale este desejo de ter bons amigos, de viver no meio de gente alegre? De que vale tudo isso, se os “outros” não compreendem? Se os outros não correspondem, meu Deus! p. 42

Eu pensava: o mundo está errado. Todos deviam ter dinheiro. Não devia existir gente rica e gente pobre. Mas a verdade é que existia mesmo. E se os ricos distribuíssem o dinheiro com os pobres? Por exemplo, os vizinhos ricos podiam vender o automóvel e dar dinheiro para a vizinha pobre. O automóvel não fazia falta... Eu disse isso ao tio Couto, ele franziu a testa e perguntou se eu estava ficando comunista. Não entendi a pergunta. Hoje entendo. Sei mais ou menos o que é comunismo. O vigário aqui de Jacarecanga fez hoje um sermão contra os comunistas. O que não compreendo é como depois ele disse que todos eram filhos de Deus e todos mereciam igual dose de felicidade. Não compreendo. p. 44

Mas a culpa é minha. Eu não devia observar tanto, pensar tanto. Se vivesse mais no ar era mais feliz. Quando a gente quer olhar tudo, acaba descobrindo o que há de feio no mundo. p. 50-51

E vêm outras histórias. Revoluções, combates nas coxilhas abertas, no inverno, o minuano cortando como navalha, e gemendo como um ferido abandonado no campo. Entreveros, correrias, cabeças esfaceladas, cavalos com a boca espumando. Cargas de Cavalaria, o barulho das patas, os urros dos guerreiros. As lagoas que se tingem de sangue. Lenços vermelhos e verdes. Lanças enristadas, palas voando. E combates e mais combates. E nomes, coronéis, generais, soldados... E outros degolamentos. E frases de entusiasmo: “Aquilo é que era homem, seu!” “Macho legítimo!” “Indio taura!”.
[...] Clarissa pensa... Ah! Como tudo aquilo é horrível, feio, sujo, assustador. Que quadro brutal: um cavalo correndo e espumando, levando no lombo um homem de cara de demônio, com lança estendida, estendida para destripar o inimigo... Por que os homens por todos os lados só falam em valentia e brigas, nos antepassados que mataram e nos descendentes que ainda hão de matar? Está gente não saberá fazer mais nada senão matar? Onde fica o amor? Onde a delicadeza? p. 55-56

- Sabem mesmo que o mundo não existe? Tirem os olhos ao homem: ele não vê mais o mundo. Tirem-lhe o olfato: ele não sentirá mais os cheiros do mundo. Vão lhe tirando todos os sentidos: o tato, o gosto... Que fica no fim? Nada. O homem não vê, não ouve, não sente cheiros, nem contatos, nem nada. Logo, o mundo não existe: é uma ilusão dos sentidos. p. 72

A Terra é um enorme bicho. Vejam os vulcões. São tumores por onde jorra o pus das lavas. E esse passeio maravilhoso que o bicho faz através do infinito? Formidável! Os demais planetas e sóis são outros bichos. Se um dia eles inventarem de guerrear estamos bem aviados. Vai ser um cataclismo nunca visto. O mundo é um bicho. Agora descubro uma definição melhor para o homem. O homem é um bicho, um parasita do grande bicho. Alimenta-se dele como o carrapato se alimenta do gado. Mas um belo dia o bicho come o parasita. É quando o homem morre e vai para debaixo da terra. p. 105

Mas será que a gente não pode fazer mais do que ter pena? Não haverá um remédio para a pobreza? Se todos tivessem, boa vontade, acho que o mundo melhorava sem comunismo nem essas outras histórias que os jornais falam todos os dias. Mas infelizmente por toda parte eu só encontro gente com disposição de brigar e prejudicar o próximo. p. 121

Mas o meu quarto é o lugar melhor do mundo. Aqui tudo é meu, aqui ninguém se mete, aqui não há caras tristes. [...] Não preciso de ninguém. Se todos me abandonam, tenho o meu quarto, os meus livros e o meu outro “eu” que conversa comigo. p. 156

Vasco então disse que achava essas histórias de farroupilhismos e bravatas e gauchismos muito engraçadas e ridículas. Respondi que não havia nada de engraçado nem ridículo e que os meninos precisavam conhecer a História da sua terra. Eu devia ter ficado calada, porque Vasco se pôs sério de repente e começou a falar, a falar, a falar, despejando um verdadeiro discurso em cima de mim. Demos mais de dez voltas ao redor da praça e o Gato do Mato, sempre falando. Disse que era muito malfeito ensinar às crianças que guerras e revoluções são coisas bonitas, que os heróis são só os generais e os soldados que matam. Disse que enquanto nós professoras ensinarmos na escola que foram os brasileiros que ganharam a batalha do Passo do Rosário, que o Brasil é mais corajoso, mais belo e mais adiantado que a Argentina ou do que o Chile – não poderá haver paz. Disse mais que as crianças vão se criando acostumadas a ouvir elogios à guerra e aos guerreiros e acabam achando que matar é a coisa mais natural e necessária deste mundo.
Quando ele parou um instante para tomar fôlego, eu aproveitei a pausa e disse que os meninos deviam aprender a amar a Pátria. Quando falei em Pátria, Vasco ficou aceso de novo e disse que essa idéia de pátria que nós temos é uma bobagem, que todos os homens são irmãos, são iguais e que por falarem línguas diferentes, terem olhos e cabelos de cor diversa não quer dizer que devam andar se estripando em guerras. [...] Disse que as guerras que nós pensamos que rebentam por causa do famoso patriotismo, são geralmente provocadas pelos vendedores de armamentos e por outros grandes negociantes que podem irar partido das bagunças internacionais. p. 202

- A vida é essa, - diz Vasco. – Uns têm automóveis e outros não têm. Os que têm jogam poeira nos que não têm. E assim o mundo marcha. p. 210

- Tu és comunista?
- Sou um ser humano. – Pausa. – Acho que a vida está torta e sofro porque não posso endireitar ela. Por isso é que quero fugir. p. 210

- Não adianta falar... – diz Vasco. – O mundo é assim. Nós fomos feitos deste jeito... A gente só se impressiona e sofre com o que sente de verdade. Quando a ferida é nos outros não dói em nós. A vida é assim. O melhor é fugir. p. 214

Olha para os alunos. Hoje eles são meninos. Amanhã serão homens e mulheres adultos, esquecidos de que estiveram juntos sob o mesmo teto, no colégio, alguns sentados no mesmo banco. Serão namorados e namoradas, maridos e mulheres, amigos ou inimigos. Uns irão embora para terras distantes e nunca mais voltarão. E já não terão estas caras contentes e lisas. Haverá rostos enrugados, bocas retorcidas e palavras feias e amargas saindo delas. Novas revoluções virão. Moisés que hoje dá um pouco de sua merenda a Carlos, na hora do recreio, amanhã estará atracado com ele, aos sopapos, por causa duma promissória, duma palavra, duma mulher ou dum pedaço de pão. Pedro sai da aula abraçado com Heitor. Amanhã cada qual terá o seu partido político, haverá um guerra civil e Pedro e Heitor se encontrarão no campo, e se espicaçarão a lançaços e a tiros, e lutarão com coragem e ferocidade, porque um dia, quando eles eram crianças, uma professora inconsciente lhes ensinou que matar pela sua bandeira é a coisa mais sublime, a suprema glória da vida.
E então ela pensa num mundo de palavras de amor e solidariedade para dizer, em vez da preleção patriótica que preparou em casa com cuidado, exaltando os heróis, frisando bem as datas, falando em patriotismo, coragem, ideal e sacrifício.
Vai falar. Vai despejar uma torrente de amor e ternura. Mas na porta aparece o vulto de D. Ermelinda, fiscalizando.
Com voz apagada Clarissa diz:
- Então, não esqueçam. Vinte de setembro, data duma das maiores revoluções brasileiras: a Revolução dos Farrapos. p. 221

terça-feira, 15 de março de 2011

O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde, 1890

Resolvi reler este livro e, mais uma vez, percebi como nossas leituras do mundo mudam, como as impressões mudam, as referências, etc. Reconheço que me impressionou muito da primeira vez. Agora, no entanto, já tive algumas ressalvas. É um ótimo livro sem dúvida, século XIX que por si já é algo incrível. O argumento é absolutamente genial. Penso, porém, que  poderia ter sido explorado de maneira mais sombria, mais densa. No todo, senti o livro muito dândi, muito floreado. Reflexo talvez do escritor, e da vida burguesa que levava. Neste sentido, o filme O retrato de Dorian Gray (2009) foi realmente muito feliz. Com algumas alterações adaptativas para uma melhor obra cinematográfica, o filme conta com uma fotografia incrível, e com a atuação notável do jovem ator Ben Barnes, um Dorian Gray perfeito. Sei que no livro Dorian é loiro, espadaúdo, etc. Mesmo assim, não consegui mais imaginar uma figura que correspondesse ao livro. É como se a alma do Dorian do cinema tivesse sido mais fiel ao espírito do livro do que o Dorian do próprio livro. Sei que é estranho dizer isso, mas foi assim que senti, assim que se deu comigo.
Apenas mais um ressalva, sobre o Oscar Wilde. Sei que "ser burguês" não é restrição de talento e não torna o autor menos creditado. Porém, muitas pessoas exaltam Wilde como um mártir do homossexualismo. Preso por isso, inclusive, sofredor. Contudo, sua vida foi bastante abastada e fútil. Foi casado e teve filhos. E o homossexualismo, no seu caso, foi mais um apetite pelo diferente, pelo experimental, na época, mesmo uma tendência de moda dos círculos intelectuais que aspiravam um retorno as origens clássicas. Mas teve também muitas paixões heterossexuais. Ficou preso apenas 2 anos, e algum tempo depois de sair da prisão recuperou  relativo prestígio artístico nos círculos sociais. 
No mais é isso. Indico os dois, livro e filme. Atenção para a tradução de Pietro Nassetti, muito boa, gostei muito. Seguem as fichas:

Ano: 2009
Origem: Reino Unido
Diretor: Oliver Parker
Escritores: Oscar Wilde (romance), Toby Finlay (roteiro)







WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005. 189 p.

                A forma de crítica mais elevada, como a mais baixa, é um gênero de autobiografia. Os que só vêem intenções vis nas coisas belas são depravados destituídos de encanto. É um defeito. Os que admitem intenções belas nas coisas belas são espíritos cultos. Para estes há esperança. São os leitos, para quem o belo significa unicamente beleza.
                A aversão do século XIX ao Realismo é a fúria de Calibã ao reconhecer a sua imagem num espelho. A antipatia que o século XIX vota ao Romantismo é o despeito de Calibã por não ver o seu rosto num espelho.
                Toda arte é ao mesmo tempo aparência e símbolo. Os que penetram abaixo dessa aparência o fazem por sua conta e risco. Os que decifram o símbolo também o fazem por sua conta e risco. A arte reflete o espectador e não a vida.
[Prefácio do autor, p. 13-14]

                Mas a beleza, a verdadeira beleza, acaba onde principia a expressão inteligente. A inteligência em si é uma espécie de exagero; desmancha a harmonia de qualquer rosto. A partir do instante em que nos metemos a pensar, vamos ficando só olhos, ou só testa, ou qualquer outro horror. p. 16

                Em toda superioridade física ou intelectual, há uma fatalidade, a fatalidade que parece seguir, através da história, os passos incertos dos reis. É preferível não sermos diferentes do nosso próximo. O feio, o tolo têm neste mundo a melhor sorte. Se não chegam a provar o gosto da vitória; pelo menos lhes é poupado o ranço das derrotas. Vivem como nós todos deveríamos viver: sossegados, indiferentes, sem preocupações. Não causam a desgraça alheia nem são desgraçados por alheias mãos. A sua posição social e a sua riqueza, Harry, a minha inteligência, seja qual for, a minha arte, valha o que valer, a bela aparência de Dorian Gray: são dons dos deuses, pelos quais teremos os três de sofrer, de sofrer horrivelmente. p. 17

[...] o gênio dura mais do que a beleza. Isso explica o nosso empenho em nos educarmos bem. Na luta feroz pela existência, queremos contar com alguma coisa duradoura, e enchemos a mente com bobagens e fatos, na esperança insensata de guardarmos o nosso lugar. O homem perfeitamente bem informado, eis o ideal moderno. E o cérebro do homem perfeitamente bem informado é uma coisa horrorosa, uma espécie de bricabraque atulhado de monstrengos e de poeira, com tudo tabelado abaixo do verdadeiro valor. p. 23

[...] a pior conseqüência de um romance de qualquer gênero é ele nos deixar tão desromantizados. p. 24

- Boa influência é coisa que não existe, senhor Gray. Toda influência é imoral... imoral, do ponto de vista científico.
- Por quê?
- Porque influenciar uma pessoa é emprestar-lhe a nossa alma. Essa pessoa deixa de ter idéias próprias, de vibrar com as suas paixões naturais. As suas qualidades não são verdadeiras. Os seus pecados, se é que existe o que se chama pecado, vêm-lhe de outrem. Essa pessoa torna-se o eco da música de outra pessoa, intérprete de um papel que não foi escrito para ela. A finalidade da vida é para cada um de nós o aperfeiçoamento, a realização plena da nossa personalidade. Hoje, cada qual tem medo de si próprio; esquece o maior dos deveres: o dever que tem consigo mesmo. Naturalmente, o homem é caridoso. Dá de comer ao faminto, veste o maltrapilho. Mas a sua alma é que sofre e anda nua. A coragem abandonou a nossa raça. Talvez nunca a tenhamos tido. O temos da sociedade, que é a base da moral, e do temos a Deus, que é o segredo da religião... eis as duas coisas que nos governam. Contudo, sou de parecer que se o homem vivesse plena e totalmente a sua vida, desse forma a todo sentimento, expressão a toda idéia, realidade a todo devaneio... creio que o mundo receberia um novo impulso de alegria que nos faria esquecer todos os males do medievalismo e voltar aos ideais helênicos. Mas o mais valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo. A mutilação do selvagem subsiste tragicamente na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos pelo que enjeitamos. Todo o impulso que nos empenhamos em sufocar incuba no nosso espírito e nos envenena. [...] A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder-lhe. Resistamo-lhe, e nossa alma adoecerá de desejo do que proibimos a nós mesmos, do que as suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilegítimo. Tem-se dito que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. Também é no cérebro, e só nele, que ocorrem os grandes pecados do mundo. p. 28-29

[...] este é um dos grandes segredos da vida: curar a alma, por meio dos sentido, e os sentidos , por meio da alma. p. 30

A beleza é uma forma de gênio... mais elevada até do que o gênio, pois dispensa explicação. Faz parte dos grandes fatos do universo, como a luz do sol, ou a primavera, ou o reflexo, nas águas escuras, dessa concha de prata a que chamamos lua. p. 31

O mundo é seu pelo espaço de uma temporada. p. 32

Quem foi que definiu o homem como animal racional? A definição mais prematura que já se formulou. O homem pode ser tudo menos racional. p. 36

O traje do século XIX é detestável. Escuro, tristonho... O pecado é realmente o único colorido que subsiste na vida moderna. p. 36

Herdando meses depois o título, dedicara-se ao estudo profundo da grande arte aristocrática de não fazer absolutamente nada. p 38

As pessoas filantrópicas perdem toda a noção de humanidade. p. 41

Meu filho, mulher nunca é um gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Nunca têm nada a dizer, mas falam que é um encanto. As mulheres representam o triunfo da matérias sobre o espírito; exatamente como os homens do espírito sobre a moral. p. 50

Um grande poeta, o verdadeiro grande poeta, é o menos poético dos indivíduos. Mas os poetas medíocres são encantadores. Quanto piores os versos, tanto mais pitoresco é o poeta. Ele vive a poesia que não soube escrever. Os outros escrevem a poesia que não conseguem concretizar. p. 57

Corpo e alma, alma e corpo – que dupla misteriosa! Há animalismo na alma; e o corpo tem sues momentos de espiritualidade. Os sentidos podem adquirir requintes, como o espírito está sujeito a degradar-se. Quem saberá dizer onde cessa o impulso carnal ou onde começa o impulso físico? Estará a alma instalada na casa do pecado, ou o corpo inserido realmente na alma? A separação entre o espírito e a matéria é um mistério; como é um mistério a união do espírito com a matéria. p. 58

A sabedoria de lábios finos, sentada na poltrona surrada, tornou a exortá-la à prudência com citações do livro da covardia, cujo autor se disfarça sob o nome de senso comum. p. 60

Sempre há um quê de ridículo nas emoções das criaturas que deixamos de amar. p. 81

Na auto-acusação há uma espécie de volúpia. Acusando-nos, sentimos que ninguém mais tem o direito de nos censurar. É a confissão que nos absolve, e não o sacerdote. p. 87

[...] nada nos envaidece tanto como dizerem-nos que somos pecadores. p. 92

[...] a admiração física pela beleza nasce dos sentidos e morre quando os sentidos se cansam. p 105

Um olhar retrospectivo à evolução do homem através da história causava-lhe uma impressão de dano irreparável. Quantos sacrifícios vãos! Renúncias voluntárias, formas monstruosas de penitência e de auto-imolação originadas pelo terror e cujo resultado era a degradação infinitamente maior e mais terrível do que a abjeção imaginária a que pretendiam furtar-se pobres criaturas ignorantes. A natureza, na sua estupenda ironia, levava os monges a conviver com as feras do deserto, dava aos eremitas, por companheiros, os animais campestres. p 113.

Cada um de nós tem em si o céu e o inferno. p. 131

A vida é muito curta para tomarmos às costas o fardo dos erros alheios. Cada um vive como quer e paga pelo que faz. Só é triste que muitas vezes se deva pagar por uma só falta. E a expiação não tem fim. Nos seus negócios com o homem, o destino nunca fecha a conta. p. 153

Definir é limitar. p. 158

Vá que fosse ilusão... Mas que poder, o da consciência! Que vida seria a dele, daí em diante, se os espectros dos seus erros o perseguissem dia e noite? p. 161

Os livros que o mundo tacha de imorais são os que mostram a sua imoralidade. p. 173

quinta-feira, 10 de março de 2011

As portas da percepção / Céu e Inferno - Aldous Huxley, 1954 - 1956


Esse livro, à grosso modo, trata da experiência no uso da mescalina, substância alucinógena extraída de um cacto. O autor, Huxley, fez uso dessa substância a fim de estudar o estado mental ao qual somos levados sob efeito da mescalina. Mas o livro traz uma proposta que vai além de um simples relatório de resultados e análises.  A obra tematiza o papel de todos os modificadores de consciência - sejam eles naturais ou químicos - na vida do homem, ao longo da história. Faz conexões com as religiões, e com os variados aspectos da vida em sociedade. Coloca questões interessantíssimas, sobre o que ele chama de céu e inferno, ou seja, um estado de transcendência mental e espiritual ao qual o usurário é levado por via do uso de alteradores / ampliadores dos sentidos. Huxley faz uma ligação entre o estado alterado de consciência e uma espécie de onisciência universal, um contato com a verdade absoluta do universo. Do mesmo modo, problematiza o conflito que tal estado encerra em si, na medida em que impõe ao homem um estado permanente de contemplação, o que impossibilitaria as ações fundamentais demandadas pela vida em sociedade. É curtinho, vale a leitura.



HUXLEY, Aldous. As portas da percepção; Céu e Inferno. Trad. Osvaldo de Araújo Souza. São Paulo: Globo, 2002. 169 p.

Quando cheguei à maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre0pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ – haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. [...] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos gnósticos da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.
[Henry Huxley – biólogo; inventor do termo agnóstico em meados do século XIX; avô de Aldous Huxley – Citado por Manuel da Costa Pinto no prefácio, p. 13]

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. p. 24


Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, Dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu – beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está ao nosso alcance; e isso subverte nosso senso de realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contado não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. p. 32-33

[...] importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. p. 41

E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? p. 47

[Em relação ao estado contemplativo que a mescalina proporcionar em contraposição ao estado ativo, da sobriedade]

Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. [...] seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais – por exemplo, quando se esforça em demais, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro -, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. p. 57

Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E na vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos serem humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais de percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos – o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos. 
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados. 
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida. A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalismo utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça. p. 66-67

O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atitude intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião – o álcool e as “pílulas inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”. 
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto mesmo as mais tolerantes jamais procuram converter a bebida ao cristianismo – isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de cerveja, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo. p. 72

Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta da Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender. p. 80



Céu e Inferno

A natureza primitiva guarda uma estranha similitude com esse mundo interior onde nossos desejos pessoais não são levados em conta nem são consideradas as preocupações constantes do homem em geral. p. 120

[...] Algo de natureza semelhante pode suceder após a morte. Depois de ter sido contemplado, de relance, o ofuscante esplendor da Realidade derradeira, e após ter vagado, de uma para outro lado, entre o céu e o inferno, a maioria das almas acabará por conseguir recolher-se àquela região mais tranqüila da mente onde lhe seja possível fazer uso dos seus e dos alheios desejos, recordações e predileções para construir um mundo bem semelhante ao que teve na Terra. p. 128

A pompa é uma arte visionária que tem sido usada, desde tempos imemoriais, como instrumento político. As suntuosas roupagens usadas por reis, papas e seus respectivos séquitos, militares e eclesiásticos, tinham uma finalidade bastante objetiva – impressionar as classes inferiores com um sentimento vívido da grandeza sobre-humana de seus senhores. Com o auxílio de belas roupas e de cerimônias solenes, a dominação de facto era transformada em reinado, não só de jure, mas até mesmo de jure divino. As coroas e tiaras; as variegadas jóias, cetins, sedas e veludos; os faustosos uniformes e vestimentas; as cruzes e medalhas; os punhos das espadas e os báculos; as plumas nos amplos chapéus e seus equivalentes clericais; aqueles enormes leques de penas que fazem com que qualquer audiência papal se pareça com um quadro da Aída – tudo isso são artifícios propiciadores de êxtase, destinados a transformar humaníssimos cavalheiros e damas em heróis, semideuses e serafins, proporcionando dessa forma uma boa dose de prazer inocente a todos, sem distinção: atores e espectadores. p. 148

O passado não é coisa fixa e inalterável. Suas realidades vão sendo redescobertas a cada geração, seus valores sofrem reavaliações, seus significados recebem novas definições, de acordo com as tendências e preocupações da época. Baseando-se nos mesmos documentos – bibliográficos, arquitetônicos e artísticos -, cada época concebe sua própria Idade Média, uma China a seu sabor, uma Hélade patenteada e com direitos de reprodução reservados. p. 155