segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Todos os nomes - José Saramago, 1997

    Saramago é sempre Saramago. Mas é difícil falar sobre um autor né? Esses tempos estava olhando uma entrevista do Saramago, no programa Roda Viva, de 1997. Achei curiosamente absurdo como os “entrevistadores” faziam perguntas ao mesmo tempo que afirmavam veredictos sobre o caráter do nosso autor. O Saramago, como gênio que foi (e que continua a ser através de sua magnífica obra) de forma muito elegante sempre tentava explicar da maneira mais pacienciosa do mundo. Mas realmente fiquei com vergonha pelo povo brasileiro de ver verdadeiros bobalhões fazendo perguntas tolas, do tipo, “Saramago, eu vejo que nesses seus últimos livros você faz uma espécie de provocação, uma birra com Deus, é isso?”. Porra né. Saramago foi ateu, ele se utiliza do sarcasmo e da ironia quando fala de Deus, lançando luz à forte sustentação da sua falta de fé professa. Na resposta educada do autor ele tenta dizer, em síntese, que não poderia se colocar na posição de provocador de Deus, pois não cria nele. Meio óbvio né? E assim foi quase todo o debate, com perguntas desse tipo, salvos alguns entrevistadores que formularam coisas melhores. (Para quem quiser assistir a entrevista aqui vai o link: http://tvcultura.com.br/rodaviva/programa/PGM0584).
    Mas enfim, eu adorei esse livro. Ele trata de uma excêntrica história de amor. Trata também, e mais uma vez, das sensibilidades e das contradições da alma humana. Um funcionário de um arquivo subitamente se vê vítima de uma verdadeira obsessão pelo verbete de determinada mulher. Dali em diante ele empreende uma verdadeira cruzada para saber tudo o que puder sobre aquela mulher. Suas descobertas vão se tornando tanto mais intrigantes quanto mais surpreendentes.

SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 279 p.

Em todo o caso não seria justo esquecer as dificuldades dos vivos. É mais do que certo e sabido que a morte, quer por incompetência de origem quer por má-fé adquirida na experiência, não escolhe as suas vítimas consoante a duração das vidas que viveram, procedimento este, aliás, entre parêntesis se diga, que, a dar crédito à palavra das inúmeras autoridades filosóficas e religiosas que sobre o tema se pronunciaram, acabou por produzir no ser humano, reflexamente, por diferentes e às vezes contraditórios caminhos, o efeito paradoxal duma sublimação intelectual do temor natural da morte. p. 15-16

O Sr. José tem o louvável pudor daqueles que não andam por aí a queixar-se dos seus transtornos nervosos e psicológicos, autênticos ou imaginados [...].p. 22

[...] é por de mais sabido que o espírito humano, muitas vezes, toma decisões cujas causas mostra não conhecer, sendo de supor que o faz depois de ter percorrido os caminhos da mente com tal velocidade que depois não é capaz de os reconhecer e muito menos reencontrar. p. 24

[...] de facto não há nada que mais canse uma pessoa que ter de lutar, não com o seu próprio espírito, mas com uma abstração. p. 27
A prudência tentava retê-lo, segurá-lo pela manga, mas como toda a gente sabe, ou devia saber, a prudência só é boa quando  se trata de conservar aquilo que já não interessa [...]. p. 35

Quanto aos pensamentos metafísicos, meu caro senhor, permita-me que lhe diga que qualquer cabeça é capaz de os produzir, o que muitas vezes não consegue é encontrar as palavras. p. 39

Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós. p. 42

Quem somo nós para falar de conseqüências, se da fila interminável delas que incessantemente vêm caminhando na nossa direcção apenas podemos ver a primeira. p. 48

[...] perdoa-se porque se ama, ama-se porque se perdoa [...]. p. 63

[...] no casamento existem três pessoas, há a mulher, há o homem, e há o que chamo a terceira pessoa, a mais importante, a pessoa que é constituída pelo homem e pela mulher juntos, se um dos dois comete adultério, por exemplo, o mais ofendido, o que recebe o golpe mais fundo, por muito incrível que isto lhe pareça, não é o outro, mas esse outro outro que é o casal, não é o um, mas o dois [...]. p. 63-64

Entre matar e deixar morrer, preferi matar. p. 65

[...] é o que sucede quando assistimos a uma conversa e não prestamos atenção, sempre o mais importante nos escapa. p. 66

[...] deve haver na minha cabeça, e seguramente na cabeça de toda a gente, um pensamento autônomo que pensa por sua própria conta, que decide sem a participação do outro pensamento, aquele que conhecemos desde que nos conhecemos e que tratamos por tu, aquele que se deixa guiar por nós para nos levar aonde cremos que conscientemente queremos ir, mas que, afinal de contas, poderá ser que esteja a ser conduzido por outro caminho, noutra direcção, e não para a esquina mais próxima, onde um bando de perdizes nos espera sem que o saibam, mas sabendo nós, enfim, que o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e que é preciso andar muito para alcançar o que está perto. p. 68-69

[...] também os pássaros cantam e não sabem porquê. p. 71

[...] o princípio de um desenho como o de todas as vidas, feito de linhas quebradas, de cruzamentos, de intersecções, mas nunca de bifurcações, porque o espírito não vai a lado nenhum sem as pernas do corpo, e o corpo não seria capaz de mover-se se lhe faltassem as asas do espírito. p. 74

[...] as vidas são como os quadros, precisaremos sempre de olhá-los quatro passos atrás, mesmo se um dia chegamos a tocar-lhes a pele, a sentir-lhes o cheiro, a provar-lhes o gosto. p. 74

Provavelmente, quanto maior é a diferença, maior será a igualdade, e quanto maior é a igualdade, maior a diferença será. p. 97

[...] nunca se sabe, tantas têm sido as vezes na vida que uma pequena viração acabou em furacão destruidor. p. 116

O diálogo fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse estar o seu espírito atento aos múltiplos sentidos das palavras que cautelosamente ia pronunciando, sobretudo aquelas que parecem ter um sentido só, com elas é que é preciso mais cuidado. Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições. p. 134-135

A solidão, Sr. José, declarou com solenidade o conservador, nunca foi boa companhia, as grandes tristezas, as grandes tentações e os grandes erros resultam quase sempre de se estar só na vida, sem um amigo prudente a quem pedir conselho quando algo nos perturba mais que o normal de todos os dias. p. 141

Eu, triste, o que se chama propriamente triste, senhor, não creio que o seja, talvez minha natureza seja um pouco melancólica, mas isso não é defeito [...]. p. 141

[...] a melhor maneira de defender os segredos próprios ainda é guardar respeito aos segredos alheios. p. 147-148

[...] a pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós, por baixo dela nem nós próprios conseguimos saber quem somos. p. 157

A sabedoria dos tectos é infinita, Se és um tecto sábio, dá-me uma idéia, Continua a olhar para mim, às vezes dá resultado. p. 157

Homem, não tenhas medo, a escuridão em que estás metido aqui não é maior do que a que existe dentro do teu corpo, são duas escuridões separadas por uma pele, aposto que nunca tinhas pensado nisto, transportas todo o tempo  de uma lado para outro uma escuridão, e isso não te assusta, [...] meu caro, tens que aprender a viver com a escuridão de fora como aprendeste a viver com a escuridão de dentro. p. 177

[...] o tempo psicológico não corresponde ao tempo matemático. p. 179

[...] as velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de que estamos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe , e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós. p. 181

[...] o que eu havia dito não passava duma frase de efeito, oca, dessas que parecem profundas e não têm nada dentro. p. 199

[...] a memória, que é susceptível e não gosta de ser apanhada em falta, tende a preencher os esquecimentos com criações de realidade próprias, obviamente espúrias, mas mais ou menos contíguas aos factos de cujo acontecer só lhe havia ficado uma lembrança vaga, como o que resta da passagem duma sombra. p. 201

Nos países civilizados não existe esta prática absurda dos lugares cativos, esta idéia de considerar para sempre para sempre intocável qualquer sepultura, como se não tendo podido a vida ser definitiva, a morte o pudesse ser. p. 217

[...] o facto evidente de o Cemitério Geral ser um catálogo perfeito, um mostruário, um resumo de todos os estilos, sobretudo de arquitetura, escultura e decoração, e portanto um inventário de todos os modos de ver, estar e habitar existente até hoje [...]. p. 226

[...] é nas ocasiões de mais extremo apuro que o espírito dá a autêntica medida da sua grandeza. p. 237

O espírito humano, porém, quantas vezes será preciso dizê-lo, é o lugar predilecto das contradições, aliás, nem se tem observado ultimamente que elas prosperem ou simplesmente tenham condições de existência viáveis fora dele. p. 268

[...] o certo é que nunca poderá haver sobre o que se vê garantias firmes, as aparências enganam muito, por isso lhes chamamos aparências. p. 268


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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Stanley Krippner - Possibilidades Humanas, 1980


Esse livro é um pouco underground. Digo isto no sentido de que deve-se realmente ter a mente aberta a respeito de novas abordagens teóricas e empíricas sobre a existência, a matéria, o universo e outras tantas questões fundamentais que vivem assombrando a comunidade científica. Traz idéias sobre campos eletromagnéticos, energia, tensão muscular, reservas humanas latentes, etc. Tudo isso através de uma séria e sensata abordagem científica do autor, Krippner. A despeito de crer ou não crer, o importante mesmo é que possamos acrescentar novos referenciais de conhecimentos acessados, a fim de expandir nossas perspectivas e capacidade de articulação. Um livro excelente, que trata principalmente das experiências acerca do potencial humano no contexto da extinta União Soviética.


KRIPPNER, Stanley. Possibilidades Humanas. Trad. Alberto Costa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 400 p.


Ao poder do qual o homem supostamente seria dotado, sob determinadas circunstâncias, de agir sem motivos outros que não a própria ação, é dado o nome de livre arbítrio. A existência de tal faculdade nos seres humanos foi - e ainda é - motivo de muita celeuma nos mais variados níveis. Seja como for, é senso comum que a liberdade de escolha está na razão direta das possibilidades daquele que escolhe; não sendo possível admitir-se um "total livre arbítrio". Por exemplo, vivemos num país onde uma maioria de indivíduos possui um número tão reduzido de possibilidades, que nos é possível prever, com nível razoável de acerto, qual será o "destino" desta ou daquela pessoa. p. 13

Este episódio bizarro demonstra o quão facilmente a mentira pode ser perpetuada uma vez que apareça num periódico. Distorções e mentiras têm vida própria e continuam a erguer suas cabeças feias por longos períodos de tempo antes que se expirem. p. 41

Em nossa conversa, ele especulou que a psi poderia ser uma feição arcaica dos seres humanos que começou a desaparecer a partir do momento que sua utilidade foi minimizada pela linguagem, armas e outras formas de comunicação e proteção. p. 66

Existe um problema de ordem prática proveniente da suposta interação entre o cérebro e o magnetismo solar – a saber, o fato de as manchas solares serem seguidas por distúrbios magnéticos na terra, que resultam em altas taxas de doenças emocionais e nervosas, acidentes, suicídios e ataques cardíacos. Em determinadas partes da URSS, existem alertas médicos e de segurança de âmbito nacional nos dias seguintes a súbitas explosões de atividade solar. p. 69/70

Estamos longe de dizer que podemos fornecer as respostas últimas a todos os problemas. Apenas tomamos um dos caminhos possíveis para revelar uma pequena porção das possibilidades do homem. (Georgi Lozanov, 1978, p. 11). p. 157


Existem três fontes de atração
No amor dos seres humanos;
São elas o espírito, a mente e o corpo.

A mútua atração dos espíritos
Gera a amizade.

A mútua atração das mentes
Gera o respeito.

A mútua atração dos corpos
Gera o desejo.

E a combinação das três
Gera o amor.

[Verso indiano dos Upanixades. Em: VASSILCHENKO, 1977]

Em consonância com seu uso da teoria geral dos sistemas, Vassilchenko definiu o amor como "um sistema dinâmico complexo, baseado na intelectualidade, emoções e no poder do desejo", e observou que o mesmo consiste de uma multidão de variáveis. Em contraste aos sentimentos temporários de desejo, os sentimentos profundos do "verdadeiro" amor permitem que o relacionamento seja de realização e de totalidade. No "verdadeiro" amor, o indivíduo freqüentemente nega as necessidades do ego pessoal e transforma-se através da união com o outro. p. 230

As habilidades auto-reguladoras do corpo são de fato responsáveis por muitas das curas da ciência médica. Nenhuma droga é capaz de curar uma doença a menos que os mecanismos próprios do corpo estejam funcionando de maneira correta. Em conseqüência, podemos considerar que todas as enfermidades, e todas as curas, devem-se a algum aspecto dos sistemas que controlam a auto-regulação biológica. [Hill, 1979]. p. 303

Nosso universo não é composto de partes isoladas; somos feitos da mesma matéria bruta que o restante dele, e respondemos às mesmas forças que dirigem e moldam tudo o mais. As estrelas e a pele estão em contato constante. [Playfaur e Hill, 1978]. p. 306

Pavlov concebia a força da natureza agindo no organismo como um todo e na célula individual, cada um simultaneamente compreendido dentro do outro. A natureza é miniaturizada e materializada no próprio âmago do ser em suas menores partes. Expande-se intimamente para o interior de um universo tão amplo quanto o universo externo macroscópico. p. 329

Ademais, a memória não é apenas um traço de um evento passado, mas também, de forma mais importante, uma pré-condição para a realização de ações futuras (Tikhomirov, 1975).  p. 331

Margineanu (1980) conclui, “existem apenas duas formas de se viver numa ditadura – com menos inferno ao seu redor, mas com conflitos em sua consciência por aceitar sua tirania... [ou] num completo inferno, de maneira particular, aquele da prisão, porém com paz em seu coração por ter permanecido em conformidade com a própria consciência”. (p. 7). p. 336

Seu conceito (de Dr. Bek Ibraev) de “cérebro étnico” e “cérebro superétnico” sugere que com seu campo um indivíduo representa “um neurônio”, o qual pertence ao campo étnico geral. Ele acredita que, sob condições específicas, algumas pessoas (xamãs, por exemplo) são capazes de receber informação deste campo étnico. p. 359



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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Notícia de um seqüestro - Gabriel García Márquez, 1996

Um verdadeiro trabalho de jornalismo histórico do nosso querido escritor García Márquez. Através, principalmente, do relato de um casal vítima da série de seqüestros de personalidades ocorrida na Colômbia nos anos 90 - pelo bando chamado "Os extraditáveis", grupo ligado à Pablo Escobar e ao narcotráfico colombiano - , o autor reconstitui um momento importante da história recente da Colômbia. Transitando entre as diferentes perspectivas dos acontecimentos - ora através dos olhos da mídia, ora dos familiares, ora, inclusive, do presidente colombiano, ora do próprio seqüestrado - García nos proporciona um panorama amplo do que representou para o país os anos de terror vividos naquela década, nos mostrando que não só indivíduos estavam sob tutela dos sequestradores, mas o próprio país se viu como um refém. Tudo isso, claro, narrado por um dos maiores escritores de todos os tempos.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Notícia de um seqüestro. Rio de Janeiro: Record, 1996. 318 p.

O poder de recuperação talvez seja a fórmula mais cruel da temeridade. p. 198

A vida tinha se encarregado de ensinar a eles que a felicidade do amor não foi feita para que se repouse sobre ela, mas sim para danar-se junto. p. 244



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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Anne Rice - O servo dos ossos, 1996

Uma verdadeira retrospectiva histórico-religiosa. Narra a história de uma entidade religiosa, O servo dos ossos, outrora um humano,  desde sua vida enquanto mortal, durante a antiguidade babilônica, até os tempos modernos, quando, mais uma vez, é despertado. A relação entre o seu despertar e a ascenção em nível mundial de uma estranha ceita religiosa vai sendo desvendada ao longo do livro. Muito bom, Rice é sempre uma boa leitura.

RICE, Anne. O servo dos ossos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 381 p.

Dos vivos e dos mortos, da terra crua e daquilo que forjado e refinado, tecido e guardado, venha a mim, menos do que grãos de areia, e sem fazer barulho, sem chamar atenção, sem ferir ninguém, o mais rápido possível, ultrapassando qualquer barreira à minha volta, e vista-me de veludo vermelho , roupas macias de cor do rubi. p. 34

- Era isso que eu queria dizer, que temos superstições – ele disse. – Quando, impensadamente, eu perguntei sobre seus pais, eu queria dizer que você acredita em certas coisas mas não acredita nelas. Você vive numa dupla disposição de ânimo. p. 34

- Mas nós tínhamos que sobreviver na Babilônia. Tínhamos toda a intenção de voltar ricos para a nossa terra. Tínhamos que ser fortes. E isso significava o que sempre significou para os hebreus. Você tem que ser suficientemente forte para se dispersar sem ser destruído. p. 53

- Só existe um propósito na vida: dar testemunho de e compreender o máximo possível a complexidade do mundo – sua beleza, seus mistérios, seus enigmas. Quanto mais você compreende, quanto mais você olha, mais você aproveita a vida e mais você se sente em paz. É simples assim. Todo o resto são prazeres e jogos. Se uma atividade não tiver como base “amar” ou “aprender”, ela não tem valor. p. 139

Sem memória não pode haver discernimento. Sem amor não se pode apreciar nada. P. 378

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A corporação, 2003

CINEASTA: MARK ACHBAR, JENNIFER ABBOTT
GÊNERO: DOCUMENTÁRIO/HISTÓRICO
ORIGEM: CANADÁ
Esse documentário deveria ser obrigatório! É realmente fantástico. Ele trata, evidentemente da "corporação", essa instituição que causa tanta controvérsia e polêmica nos dias de hoje. Mas o que é exatamente "a corporação", qual sua natureza, qual sua função? Em que medida ela foi desvirtuada com o passar dos anos?
Baseado no livro homônimo de Mark Achbar, o documentário consegue expandir vertinosamente alguns conceitos chaves para compreensão do mundo em que vivemos e, sobretudo, da economia em que vivemos.

Disponibilizo o link para o download do documentário:

Créditos para o link de download: 

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Do amor e outros demônios - Gabriel García Márquez, 1994


Uma incrível visita ao mundo colonial na américa espanhola. Tendo como ponto de partida a mordida de um cão raivoso, o autor traz o debate entre os limites epistemológicos da ciência, da religião e da loucura numa época e contexto onde discrepantes elementos culturais estavam entrando em contato. Sobre o pano de fundo do Santo Ofício, a história ainda aborda de forma delicada e única a questão do celibato. Vale a leitura!

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Do amor e outros demônios. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1995. 221 p.

- O corpo humano não foi feito para os anos que a pessoa é capaz de viver. p. 31

- É pena, porque a falta de comunicação com os cavalos atrasou a humanidade. Se conseguíssemos rompê-la, poderíamos fabricar o centauro. p. 44

- Nenhum louco é louco para quem aceita as razões dele. p. 55

- Não é que a menina seja negação para tudo, o que há é que ela não é deste mundo. p. 68

- Nada é mais útil que uma dúvida em tempo. p. 123

- Falou de Yucatán, onde tinham construído catedrais suntuosas para esconder as pirâmides pagãs, sem perceber que os aborígenes acudiam a missa porque debaixo dos altares de prata seus santuários continuavam vivos. Falou da mixórdia de sangue que tinham feito desde a conquista: sangue de espanhóis com sangue de índios, destes e daqueles com negros de toda laia, até mandingas muçulmanos, e perguntava se tal promiscuidade cabia no reino de Deus. p. 153

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O livro dos abraços - Eduardo Galeano, 1989


Esse livro deveria vir naquelas versões minúsculas, sabe? Como aqueles 'minuto de sabedoria'. A diferença é que esse realmente é feito de grandes pérolas de sabedoria e beleza. É melhor ainda por ter essa característica fragmentada, que não te exige ler de cabo a rabo, que te dá muito sem pedir nada em troca... pode-se simplesmente abrir numa página e ler o que diz. Todas as páginas têm muito a dizer. Eu adoro esse escritor, muito pela sua história de vida, mais ainda por seu talento em descrevê-la de forma tão encantadora.


GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2008. 272 p.

Recordar:
Do latim re-cordis, tornar a passar pelo coração.

 O mundo

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo e isso — revelou —. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que e impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. p. 13

A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
       Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar! p. 15

A casa das palavras

       Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos,provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido.
       Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre,
vermelho-sangue, vermelho-vinho... p. 19

A função da arte/2

O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando.
O cacique levou um tempo. Depois, opinou:
— Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou:
— Mas onde você coça não coça. p. 28


[...] roupa de plástico, comida de plástico, gente de plástico, enquanto os vídeos e os computadores domésticos se transformam em perfeitas contra-senhas da felicidade.

(Crônica da cidade de Santiago, p. 33)


A realidade é uma doida varrida. p. 51


A burocracia/3

Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha.
No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita por que sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito ate que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca. p. 62 

Causos/1

Nas fogueiras de Paysandú, Mellado Iturria conta causos. Conta acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas tem uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados.
Este e o triste causo do bagrezinho do arroio Negro.
Tinha bigodes de arame farpado, era vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já tinha se resignado.
Com o tempo, foi sentindo carinho pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.
Os cachorros, enciumados, olhavam o bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia desagradar a Deus.
Estava sempre de olho nele. O bagre tinha uma notória tendência as diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia espantar as galinhas ou provocar os cachorros:
— Comporte-se — dizia Mellado ao bagre.
Certa manha de muito calor, quando as lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas, Mellado teve a idéia fatal:
— Vamos tomar banho no arrolo — propos. Foram, os dois.
E o bagre se afogou. p. 64

Os ninguéns

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanha, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e
mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm numero.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. p.71 

Os numerinhos e as pessoas

Onde se recebe a Renda per Capita? Tem muito morto de fome querendo saber. Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?
Em Cuba, a Revolução triunfou no ano mais prospero de toda a historia econômica da ilha.
Na America Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas. Nas décadas de 50, de 60, de 70, anos atormentados, tempos turbulentos, a America Central exibia os índices de crescimento econômico mais altos do mundo e o maior desenvolvimento regional da história humana.
Na Colômbia, os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o pais produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas. p. 79

A fome/2

Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco da de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços. p. 81


Dizem as paredes/l

No setor infantil da Feira do Livro, em Bogotá:
O Loucóptero é muito veloz, mas muito lento.
Na avenida costeira de Montevidéu, frente do rio-mar:
Um homem alado prefere a noite.
Na saída de Santiago de Cuba:
Como gasto paredes lembrando você!
E nas alturas de Valparaíso:
Eu nos amo.

p. 83 


Teologia/1
O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava.
Passaram-se os anos. Eu já não temo nem creio. E, em todo caso – penso – se mereço ser assado cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés:
Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra. Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora. p. 86

Teologia/2
O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso afinal que Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer e subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências. p. 87

Teologia/3
Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender. Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu... bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça-se a luz”, mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloqüente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei vôo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade. p. 89

A noite/1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. p. 90

O diagnóstico e a terapêutica

O amor e uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite apos noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor e surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não ha decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo. p. 91


A noite/2

- Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me. p. 92

A noite/3

Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo. p. 94

A pequena morte

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer e uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce. p. 95


[...] os amantes se comem entre si de ponta a ponta, todos todinhos, todo-poderosos, todo-possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um dedo do pé. (O devorador devorado, p. 97)


 A vida profissional/ 2

Têm o mesmo nome, o mesmo sobrenome. Ocupam a mesma casa e calçam os mesmos sapatos. Dormem no mesmo travesseiro, ao lado da mesma mulher. A cada manhã, o espelho lhes devolve a mesma cara. Mas ele e ele não são a mesma pessoa:
E eu, o que tenho a ver com isso? — diz ele, falando dele, enquanto sacode os ombros.
Eu cumpro ordens — diz, ou diz:
Sou pago para isso.
Ou diz:
Se eu não fizer, outro faz.
Que é como dizer:
Eu sou o outro.
Frente ao ódio da vítima, o verdugo sente estupor, e até uma certa sensação de injustiça: afinal, ele é um funcionário,um simples funcionário que cumpre seu horário e suas tarefas. Terminada a jornada extenuante de trabalho, o torturador lava as mãos.
Ahmadou Gherab, que lutou pela independência da Argélia, me contou. Ahmadou foi torturado por um oficial francês durante vários meses. E a cada dia, às seis em ponto da tarde, o torturador secava o suor da fronte, desligava da tomada a máquina de dar choques e guardava os outros instrumentos de trabalho. Então se sentava ao lado do torturado e falava de sua mulher insuportável e do filho recém-nascido, que não o deixara grudar o olho a noite inteira; falava contra Orã, esta cidade de merda, e contra o filho da puta do coronel que...
Ahmadou, ensangüentado, tremendo de dor, ardendo em febre, não dizia nada. p. 104

A vida profissional/3

Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:
Somos neutros — dizem.

p. 106


Mapa-múndi/1

O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vitimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
p. 107

 Mapa-múndi/ 2

No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão. Não são poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão; e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem a história, mas a natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.

p. 108

 O medo

Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.

p. 111


A desmemória / 3

Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente. Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802. A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações. Disso, os textos não dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.

p. 114

A desmemória/4

Chicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
Deve ser por aqui — me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que esta como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.


p. 115


Celebração de bodas da razão com o coração

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.
Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.

p. 119


Divórcios

Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços.
O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.
O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias.

p. 121


Paradoxos

Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós.
Nem o próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stalin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos Mariategui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos.
"Acho que você está meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho.

p. 126

O sistema/1

Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão a serviço das coisas.

p. 129

Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam? O que dizem quando calam? (Os índios/2, p. 132)


A televisão/2

A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.

p. 149


Nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata, enquanto os jovens filhos da telev.isão, treinados para contemplar a vida em vez de fazê-la, sacodem os ombros.

Os livros não precisam ser proibidos pela polícia: os preços já os proíbem.

(A televisão/3, p. 152)


Pela tela desfilam os eleitos e seus símbolos de poder. O sistema, que edifica a pirâmide social escolhendo pelo avesso, recompensa pouca gente. Eis aqui os premiados: são os usurários de boas unhas e os mercadores de dentes bons, os políticos de nariz crescente e os doutores de costas de borracha.

(A televisão/5, p. 155)


Celebração da desconfiança

No primeiro dia de aula, o professor trouxe um vidro enorme:
 — Isto está cheio de perfume — disse a Miguel Brun e aos outros alunos —. Quero medir a percepção de cada um de vocês. Na medida em que sintam o cheiro, levantem a mão.
E abriu o frasco. Num instante, já havia duas mãos levantadas. E logo cinco, dez, trinta, todas as mãos levantadas.
— Posso abrir a janela, professor? — suplicou uma aluna, enjoada de tanto perfume, e várias vozes fizeram eco. O forte aroma, que pesava no ar, tinha-se tornado insuportável para todos.
Então o professor mostrou o frasco aos alunos, um por um. Estava cheio de água.

p. 156


A alienação /l

Em meus anos moços, fui caixa de banco.
Recordo, entre os clientes, um fabricante de camisas. O gerente do banco renovava suas promissórias só por piedade. O pobre camiseiro vivia em perpétua soçobra. Suas camisas não eram ruins, mas ninguém as comprava.
Certa noite, o camiseiro foi visitado por um anjo. Ao amanhecer, quando despertou, estava iluminado. Levantou-se de um salto.
A primeira coisa que fez foi trocar o nome de sua empresa, que passou a se chamar Uruguai Sociedade Anônima, patriótico nome cuja sigla é U. S. A. A segunda coisa que fez foi pregar nos colarinhos de suas camisas uma etiqueta que dizia, e não mentia: Made in U. S. A. A terceira coisa que fez foi vender camisas feito louco. E a quarta coisa que fez foi pagar o que devia e ganhar muito dinheiro.

p. 158


A alienação/2

Os que mandam acreditam que melhor é quem melhor copia. A cultura oficial exalta as virtudes do macaco e do papagaio. A alienação na América Latina: um espetáculo de circo. Importação, impostação: nossas cidades estão cheias de arcos do triunfo, obeliscos e partenons. A Bolívia não tem mar, mas tem almirantes disfarçados de Lord Nelson. Lima não tem chuva, mas tem telhados a duas águas e com calha. Em Manágua, uma das cidades mais quentes do mundo, condenada a fervura perpétua, existem mansões que ostentam soberbas lareiras, e nas festas de Somoza as damas da sociedade exibiam estolas de raposa prateada.

p. 159

A alienação/3

Alaistair Reid escreve para The New Yorker, mas quase não vai a Nova York.
Ele prefere viver numa praia perdida da República Dominicana. Nessa praia desembarcou Cristóvão Colombo, alguns séculos atrás, numa de suas excursões ao Japão, e desde aqueles tempos nada mudou.
De vez em quando, o carteiro aparece entre as árvores. O carteiro vem dobrado debaixo da carga. Alaistair recebe montanhas de correspondência. Dos Estados Unidos é bombardeado por ofertas comerciais, folhetos, catálogos, luxuriosas tentações da civilização de consumo incitando a comprar.
Uma vez, entre muita papelada, chegou a propaganda de uma máquina de remar. Alaistair mostrou-a a seus vizinhos, os pescadores.
Dentro de casa? Se usa dentro de casa?
Os pescadores não conseguiam acreditar.
Sem água? Rema-se assim, sem água?
Não podiam acreditar, não podiam entender:
E sem peixes? Sem sol? E sem céu?
Os pescadores disseram a Alaistair que eles se levantavam todas as noites, muito antes do alvorecer, e se metiam mar adentro e jogavam suas redes enquanto o sol se erguia no horizonte, e que essa era a sua vida, e que gostavam daquela vida, mas que remar era a única coisa de merda naquele assunto inteiro:
Remar e a única coisa que odiamos — disseram os pescadores.
Então Alaistair explicou-lhes que a máquina de remar servia para fazer ginástica.
Para quê?
Ginástica.
Ah, bom. E o que é ginástica?

p. 160


No reino da chatice, os bons modos proíbem tudo aquilo que não é imposto pela rotina.
(A máquina de retroceder, p. 168)



A pálida

No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E tem dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem aquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado.

p. 169

O baixo astral

Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mal olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que, encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.

p. 170


O sistema/ 2

Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem oculta, rende-se culto a cultura do disfarce. Fala-se a dupla linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral para fazer. A moral para fazer se chama realismo.
A lei da realidade é a lei do poder. Para que a realidade não seja irreal, dizem os que mandam, a moral deve ser imoral.

p. 176 

Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido.
(O sistema/3, p. 178)


O crime perfeito

Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente, puseram mãos a obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.

p. 181 

E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada.

(A casa, p. 194)

E disse que dali para a frente era conosco, porque a sorte não ajuda quem não a ajuda a ajudar.

(O exorcismo, p. 196)

Os sonhos do fim do exílio/3

As lentes dos óculos tinham se quebrado, e as chaves tinham se perdido. Ela buscava as chaves pela cidade inteira, às cegas, de joelhos, e quando finalmente as encontrava, as chaves diziam que não serviriam para abrir suas portas.

p. 200 

Como minhas incessantes viagens ao banheiro entre cerveja e cerveja me davam vergonha, resolvi dizer que o caminho da cerveja conduz ao banheiro da mesma forma que o caminho do tabaco leva ao cinzeiro, e me senti muito arguto.

(A última cerveja de Caldwell, p. 204)

Chorar

Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
Por que choram na frente dela, se ela ainda esta viva?
E os que choravam responderam:
Para que ela saiba que gostamos muito dela.

p. 214


Dizem as paredes/5

Na faculdade de Ciências Econômicas, em Montevidéu:

A droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci.

Em Santiago do Chile, nas margens do rio Mapocho:

Bem-aventurados os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes.

Em Buenos Aires, no bairro de Flores:

Uma namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo.

p. 216

Eu, mutilado capilar

Os barbeiros me humilham cobrando meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror.
Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número.
A frase de um amigo piedoso me consola:
Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora.
Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas idéias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por ai.

p. 220 

O parto

Três dias de parto e o filho não saía:
Tá preso. O negrinho tá preso — disse o homem.
Ele vinha de um rancho perdido nos campos,
E o medico foi até lá.
Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu.
Depois, contou para Glória Galván:
A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma idéia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entre as pernas abertas da mulher.
O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou: Não se pode fazer mais nada.
E mesmo assim, sabe-se lá por quê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e apertou seu dedo com força.
Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa.

p. 222

Ressurreições / 2

Eram os tempos da ditadura militar no Brasil.
Os generais deixaram-no entrar para que morresse em sua própria terra. Darcy Ribeiro chegou do exílio e uma ambulância, que o esperava ao pé do avião, levou-o diretamente ao hospital.
Darcy sabia que estava com câncer, e que o câncer tinha devorado pelo menos um de seus pulmões, mas estava alegre de alegria por estar na sua terra e sentir que ela estava tão sempre-viva e dançadoura.
O irmão de Darcy chegou da cidade de Montes Claros. Vinha para se despedir. Sentado ao lado de Darcy no hospital, olhava os próprios pés. Estava choroso e sombrio e Darcy tratava de levantar-lhe o ânimo. O cirurgião tomou Darcy pelo braço e levou-o para caminhar pelo corredor:
Não quero desanimá-lo — disse —, mas acho que o senhor deve preparar-se para o pior. Se o seu irmão sair vivo, será um milagre.
Darcy não pôde conter o riso, e o médico não entendeu.
No dia seguinte, foi operado. Darcy despertou com um pulmão a menos. Como tem tantos, nem percebeu.

p. 223 

As formigas

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

p.231


Celebração da amizade/2

Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam a manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou...
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silencio, ela disse:
Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende...
Meu filho morreu — repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade...
Cretinos — fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calcadas, propuseram:
Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah! Não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

p. 239


E me perguntei: se Deus existe, por que fica de fora? Não será Deus ateu?
(Gelman, p. 241)


Profissão de fé

Sim, sim, por mais machucado e fodido que a gente possa estar, sempre é possível encontrar contemporâneos em qualquer lugar do tempo e compatriotas em qualquer lugar do mundo. E sempre que isso acontece, e enquanto isso dura, a gente tem a sorte de sentir que é algo na infinita solidão do universo: alguma coisa a mais que uma ridícula partícula de pó, alguma coisa além de um momentinho fugaz.

p. 243


A cerca de arame

À meia-noite da noite mais gelada do ano chegou, súbita, violenta, a ordem de formar fila. Aquela era a noite mais gelada daquele ano e de muitos anos, e uma nevoa inimiga mascarava tudo.
Aos gritos, debaixo de golpes das armas, os presos foram postos de cara contra a cerca de arame que rodeava as barracas. Das torres de vigia, os refletores atravessavam a nevoa e lentamente percorriam a longa fileira de uniformes cor-de-cinza, mãos crispadas e cabeças rapadas a zero.
Dar meia volta era proibido. Os presos escutaram ruídos de botas correndo e os sons metálicos das metralhadoras sendo armadas. Depois, silêncio.
Naqueles dias, tinha corrido na prisão o rumor:
Vão matar a gente.
Mario Dufort era um daqueles presos, e estava suando gelo.
Tinha os braços abertos, como todos, com as mãos agarrando a cerca: como ele estava tremendo, a cerca de arame tremia. Tremo de frio, disse a si mesmo, e repetiu; e não acreditou.
E teve vergonha de seu medo. Sentiu-se incomodado por aquele espetáculo que estava dando na frente dos companheiros. E soltou as mãos.
Mas a cerca de arame continuou tremendo. Sacudida pelas mãos de todos os outros, a cerca de arame continuou tremendo.
E então, Mario compreendeu.

p. 249

O céu e o inferno

Cheguei a Bluefields, no litoral da Nicarágua, no dia seguinte a um ataque dos contras. Havia muitos mortos e feridos. Eu estava no hospital quando um dos sobreviventes do tiroteio, um garoto, despertou da anestesia: despertou sem braços, olhou o médico e pediu:
Me mate.
Fiquei com um nó no estômago.
Naquela noite, noite atroz, o ar fervia de calor. Eu me estendi num terraço, sozinho, olhando o céu. Não longe dali, a música soava forte. Apesar da guerra, apesar de tudo, a cidade de Bluefields estava celebrando a festa tradicional do Paio de Mayo. A multidão dançava, jubilosa, ao redor da arvore cerimonial. Mas eu, estendido no terraço, não queria escutar a música nem queria escutar nada, e estava tentando não sentir, não recordar, não pensar: em nada, em nada de nada. E estava naquilo, espantando sons e tristezas e mosquitos, com os olhos pregados na noite alta, quando um menino de Bluefields, que eu não conhecia, estendeu-se ao meu lado e começou a olhar o céu, como eu, em silêncio.
Então, passou uma estrela cadente. Eu podia ter pedido um desejo; mas não lembrei.
O menino me explicou:
Você sabe por que as estrelas caem? A culpa é de Deus. Deus gruda elas mal. Ele gruda as estrelas com cola de arroz.
Amanheci dançando.

p. 251


As impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

p. 267


Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
(O ar e o vento, p. 269)


A ventania

Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.

p. 270