sábado, 10 de outubro de 2009

O queijo e os vermes. Carlo Ginzburg, 1976.

Buenas, esse livro é realmente muito especial. Se apresenta como uma análise crítica de um processo inquisitorial da idade média. O autor e historiador Carlo Ginzburg analisa todos os documentos deste processo, motivado pela evidente peculiaridade desse indivíduo e de suas idéias. O moleiro Menocchio, membro de uma camada "inferior" da sociedade medieval, demonstra conhecimentos e idéias que não seriam comuns para sua condição sócio-histórica. Mas, entre os conhecimentos e informações demonstrados por Menocchio, sua capacidade de articulação e fundamentação é o que mais chama a atenção. A proposta do autor é mostrar que o conhecimento de uma sociedade ou época não é necessariamente disseminado, ou retido, a partir da elite sócio-econômica, num movimento linear de "cima" para "baixo", mas que os mecanismos dessa disseminação podem ser muito mais complexos do que supomos até então. A leitura do livro é muito leve e agradável. Recomendo...





Aqui vai a ficha de leitura:

“Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”. P. 27


“Menocchio não reconhecia, na hierarquia eclesiástica, nenhuma autoridade especial nas questões de fé”. P. 44

“- Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus”. P. 46/47

“- Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. P. 51
“- E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres”. P. 51

“- E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo até depois da morte”. P. 52/53

“-Acho que a Sagrada Escritura tenha sido dada por Deus, mas, em seguida, foi adaptada pelos homens”. (...) “A respeito das coisas dos Evangelhos, acho que parte delas é verdadeira e, noutra parte, os evangelistas puseram coisas da cabeça deles, como se pode ver nas passagens onde um conta de um modo e outro de outro”. P. 55

“Papa, cardeais e padres ‘arruínam os pobres’: mas em nome de quê? Com que direitos? O papa é ‘homem como nós’, com a diferença de que tem poder (‘pode fazer’) e, portanto, mais dignidade. Não existe diferença alguma entre clérigos e leigos: o sacramento da ordenação é uma ‘mercadoria’. Assim como todos os outros sacramentos e leis da Igreja: ‘mercadorias’, ‘invenções’, e graças a elas os padres engordam. A essa construção colossal baseada na exploração dos pobres, Menocchio contrapõe uma religião bem diferente, em que todos são iguais, porque o espírito de Deus está em todos”. P. 64

E justamente sobre os pigmeus Mandeville escrevera uma página que alcançaria grande sucesso: “É um povo de pequena estatura, cerca de 3 palmos, homens e mulheres belos e graciosos por causa do tamanho. Casam-se com a idade de seis meses e com dois ou três anos já têm filhos; em geral não vivem mais que seis ou sete anos e os que chegam a sete são considerados velhíssimos. Estes pigmeus são os mais habilidosos e os melhores mestres no trabalho com a seda, algodão e qualquer outra coisa que exista no mundo. Com freqüência fazem guerra contra os pássaros do lugar e muitas vezes são mortos e comidos por eles. Essa pequena gente não trabalha na terra, nem têm vinhas, mas existia gente grande como nós que trabalha a terra para eles. Eles [os pigmeus] desprezam-nos assim como nós os desprezaríamos se vivêssemos junto com eles...” p. 106

Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão e, se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco”. “O senhor acredita então”, insistiu o inquisidor, “que não se saiba qual a melhor lei?” Menocchio respondeu: “Senhor, eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acreditar que essa seja a melhor fé”. P. 113

“Suas afirmações mais desconcertantes nasciam do contato com textos inócuos, como As viagens, de Mandeville, ou a Historia Del Giudicio. Não o livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva”. P. 116

“Nos discursos de Menocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo, tão pouco comum que se torna quase incompreensível. Este caso, diferentemente dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Pra que essa cultura diversa pudesse vir à luz, foram necessárias a reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças à segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele”. P. 127

“Desejava que existisse um novo mundo e um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa”. P. 160

“A sociedade sonhada por Scolio é pia e austera, como nas utopias camponesas: livres das profissões inúteis ( “Não existam lojas ou artes manuais/ senão as mais importantes e principais;/ estime-se como vaidade toda sabedoria de médicos e vivam sem doutores” ), baseada em agricultores e guerreiros, governada por um único soberano, que é o próprio Scolio”. P. 213

“É mais complexa e, em parte, impossível de demonstrar. O estado da documentação reflete, é óbvio, o estado das relações de força entre as classes. Uma cultura quase exclusivamente oral como a das classes subalternas da Europa pré-industrial tende a não deixar pistas, ou então deixar pistas distorcidas. Portanto, há um valor sintomático num caso-limite como o de Menocchio. Ele repropõe, com força, um problema cuja importância só agora se começa a perceber: as raízes populares de grande parte da alta cultura européia, medieval e pós-medieval. Figuras como Rabelais e Bruegel não foram, provavelmente, exceções notáveis. Todavia, fecharam uma época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular. O período subseqüente, ao contrário, foi assinalado tanto por uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa quanto pela doutrinação das massas populares, vinda de cima. Podemos localizar o corte cronológico entre esses dois períodos na segunda metade do século XVI, que coincide significativamente com a intensificação das diferenças sociais sob a influência da revolução dos preços. Mas a crise decisiva ocorrera algumas décadas antes, com a guerra dos camponeses e o reino anabatista de Münster. Então se impôs às classes dominantes, de maneira dramática, a necessidade de recuperar, mesmo ideologicamente, as massas populares que ameaçavam escapar a qualquer forma de controle vindo de cima – porém mantendo e até acentuando as distâncias sociais. Esse renovado esforço de obter hegemonia assumiu formas diversas nas várias partes da Europa; mas a evangelização do campo por obra dos jesuítas e a organização religiosa capilar baseada na família, executada pelas igrejas protestantes, podem ser agrupadas numa mesma tendência. A ela correspondem, em termos de repressão, a intensificação dos processos contra bruxaria e o rígido controle dos grupos marginais, assim como dos vagabundos e ciganos. O caso de Menocchio se insere nesse quadro de repressão e extinção da cultura popular”. P. 230/231

“E junto a esse temor ao diabo, que rege a mente inquisitorial, temos uma prática que mal deixa saída a quem nela é apanhado: os interrogatórios, como os que Menocchio sofre. Como escapar deles? Como um “simples” (é verdade que ele é um tanto mais culto) poderá discutir se Cristo é ou não da mesma natureza que Deus Pai? Nessa questão se fundamenta boa parte da teologia e do poder cristão, mas dela o que entende a esmagadora maioria dos fiéis? O interrogatório é a pior das armadilhas. Tanto que a Inquisição deve o nome, justamente, ao seu procedimento de inquirição”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 239/240

“Nem toda confissão é uma vitória da tortura; porque às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 241








Um comentário:

Welber disse...

Demorei muito a parar e ler O Queijo e os Vermes. Li algumas páginas na época da graduação, o que serviu apenas para fazer os trabalhos de disciplina na época. Agora, "depois de velho", resolvi comprar a obra e tirar o atraso. Devo confessaqr que o que mais gostei no livro foi o posfácio do Renato Janine.