sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A outra armadilha...

Em outras palavras, apostamos tudo no gozo, sem desconfiar que este poderia nos escravizar. Na verdade, escapamos à repressão imposta às gerações anteriores, mas nos tornamos vítimas do nosso ideário. O homem, forçado a ter uma atividade sexual intensa, e a mulher, para demonstrar liberdade, forçada a dizer sim a todas as propostas masculinas. Insensivelmente, passamos do sexo proibido ao sexo obrigatório. [Del Priore, 2013]



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Como fazer amigos e influenciar pessoas. Dale Carnegie, 1936.

Sempre tive certa reserva quanto à esse livro. Queria e não queria ler. Achava cafona, com um título canastrão que prometia, muito provavelmente, uma obra canastrona, cheia de clichês de auto-ajuda. Mas um dia eu simplesmente comecei a ler, assim, "só pra dar uma olhada", e daí não parei mais. Foi um dos melhores livros que li nos últimos anos, e não é exagero dizer que talvez possa figurar em um top 20 geral das minhas melhores leituras.
Claro que é um livro que também é voltado para o "mundo dos negócios", mas através de uma perspectiva das relações pessoais, reforçando valores como respeito, compreensão e empatia. Ou seja, a obra de Carnegie apresenta uma filosofia de vida aplicável em todas as esferas da vida em sociedade, e uma filosofia da qual sou bastante entusiasta.
Dale Carnegie teve uma origem extremamente humilde, e pouco estudo, o que, muito antes de ser obstáculo, foi a mola propulsora de seu sucesso como orador. Carnegie tornou-se um dos mais bem sucedidos e requisitados palestrantes de todos os tempos. Este livro é um dos frutos de seu trabalho como palestrante e consultor.




         A obra é muito objetiva e apresenta uma didática muito funcional  em que introduz os princípios fundamentais seguidos de exemplos práticos da sua aplicação. É uma daquelas obras que proporcionam aos leitores uma ampliação de sua percepção existencial. Foi um livro que me surpreendeu muito, e, acreditem, apesar deste título um tanto quanto cafona, vale muito a pena lê-lo, e inclusive relê-lo.

Para baixar a versão digital do livro clique aqui

Aqui, elenco alguns dos princípios básicos que Carnegie trabalha:

- Não critique, não condene, não se queixe;
- Faça um elogio honesto e sincero;
- Interesse-se sinceramente pelas outras pessoas;
- Lembre-se de que o nome de uma pessoa é, para ela, o som mais doce e mais importante que existe em qualquer idioma, por isso lembre o nome das pessoas, dê essa consideração à elas;
- Seja um bom ouvinte. Incentive os outros a falar sobre eles mesmos;
- Fale sobre assuntos que interessem a outra pessoa;
- Faça a outra pessoa sentir-se importante, mas faça-o sinceramente;
- O melhor meio de vencer uma discussão é evitá-la;
- Respeite a opinião alheia.
- Nunca diga: "Você está errado".
- Se errar, reconheça o erro imediatamente;
- Procure honestamente ver as coisas pelo ponto de vista alheio;
- Mostre-se simpático às ideias e desejos alheios;
- Fale de seus próprios erros antes de criticar os erros das outras pessoas;
- Não envergonhe as outras pessoas;
- Elogie o menor progresso e também cada novo progresso. Seja "caloroso na sua aprovação e generoso no seu elogio".
- Incentive as outras pessoas.







terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Guardião - Dean Koontz (Lightning, 1988)


Eu me surpreendi muito com este livro, e positivamente. Não fazia ideia de que fosse uma história sobre viagem no tempo, e isso acabou instigando muito minha curiosidade, prendeu muito minha atenção. Sempre desvendando um pouco mais a trama, de pouquinho em pouquinho, fazendo com que o leitor avente hipóteses o tempo inteiro.

Além de uma história de ficção científica, é também um drama. A primeira parte do livro conta a infância de Laura Shane, e é muito emocionante, não no sentido mais clichê da palavra, mas no sentido de soco do estômago mesmo. No sentido de te fazer pensar em situações reais, extremamente tristes e chocantes que acontecem por aí. Koontz revela uma narrativa muito sensível. 
Outro aspecto marcante do livro, são os traços de humor que possui, um humor muito perspicaz, que me fez rir realmente em muitas passagens. 

Destaque para a personagem Thelma Ackerson, melhor amiga de Laura, sua companheira de orfanato na infância e adolescência, que se torna uma bem sucedida comediante. Minha impressão é de que Thelma é uma personagem muito mais interessante do que a própria Laura Shane, com seu humor ácido e natural. 
Eu achei a primeira parte do livro o ponto alto da história. Apesar de toda a ação se desenvolver na segunda parte, é na primeira parte que a trágica trajetória de Laura Shane é narrada, e o espectro de sua personagem construído. 

Outra coisa muito bacana é o posfácio escrito por Koontz em 2003, onde ele desabafa e denuncia os problemas do mercado editorial de livros. Nesse texto, Koontz explica como funciona, quais as regras, e como os escritores sofrem com isso, muitas vezes tendo que modificar suas obras em nome de condições ridículas e sem sentido impostas por toda a cadeia do processo de publicação. 

"Muitos editores se mostram ainda mais satisfeitos com um escritor bem-sucedido quando ele, ou ela, escreve sempre o mesmo livro. [...] A maioria dos editores, embora não sejam todos, acredita que um autor bem-sucedido deve se manter fiel ao mesmo gênero literário, concebendo personagens, tramas e temas que são familiares aos leitores e adotando uma narrativa que reflete essencialmente o mesmo tom, livro após livro. O desejo pela reprodução do mesmo estilo é suscitado pela necessidade do editor desenvolver e manter o mesmo nicho de mercado para o autor, "rotulando-o", assim como a sopa Campbell ou o chocolate Nestlé. No entanto, a verdade é que esse desejo também é estimulado pela convicção da maioria dos editores de que o público é composto por um rebanho de carneiros e cada um pode, e deve, ser conduzido para o mesmo pasto em que esteve anteriormente. [...]
Com exceção dos último anos, a minha relação com os editores tem sido bastante conflituosa ao longo da minha carreira, pois eu acho extremamente monótono produzir o mesmo livro continuamente. Além do mais, os meus romances, em geral, não se enquadram inteiramente em um único gênero literário. Eu escrevo livro intergêneros, suspense misturado com romance e humor, às vezes, insiro algumas colheradas de ficção científica ou terror, e às vezes, um leve toque de páprica...".


É isso pessoal. Esse livro, como praticamente todos do Koontz, não tem disponível em e-book na rede. Mas se quiserem comprar, tem a partir de R$ 8,99 no Estante Virtual, só clicar aqui.


Abraço carinhoso aos leitores do blog. Até! 





sábado, 19 de setembro de 2015

A fantástica saga de Stephen King: A Torre Negra.

Foi verdadeiramente emocionante. Ao fim, essa espécie de emoção apoteótica, uma melancólica sensação de orfandade, de vazio. A gente sabe de um bom livro quando sente isso, esse misto de êxtase e tristeza quando chegamos nas páginas finais de uma história. Ao longo de toda a jornada, fui tomada por tão verdadeiras emoções, que me fizeram sonhar que estava no Mundo Médio integrando o Ka-tet de Roland. Não apenas agora, hora em que tristemente me despeço desta jornada maravilhosa, mas ao longo de toda a trajetória, me senti mergulhada no Mundo Médio.
Stephen King escreve com um talento sem igual, constrói personagens tão genuínos que nos transporta para dentro de suas mentes, nos faz sentir o que eles sentem, viver o que eles vivem.
Espécie de velho oeste 'steampunk', os rumos desta saga me foram totalmente surpreendentes, superaram qualquer expectativa que eu pudesse ter.



Último de uma linhagem de pistoleiros, Roland se torna obcecado por chegar à Torre Negra, centro nevrálgico de todos os mundos. Nos mais diversos "quandos" e "ondes" existem portas pelas quais é possível transitar, mas quase sempre o sentido da travessia é único, e o que se vai encontrar do outro lado nem sempre é o que se espera, e muitas vezes perigoso. É através destas portas que Roland vai arrolar seu Ka-tet, formado por Eddie Dean, Jake Chambers e Susannah Dean, então Odetta Holmes. Ao longo do caminho, um membro inusitado integra o Ka-tet: Oi, um trapalhão (espécie de cachorro do mundo médio que é capaz de repetir algumas palavras) muito simpático que vai ter um papel surpreendentemente importante na história. A partir de então, o Ka-tet segue em direção a Torre Negra, cruzando territórios inóspitos e perigosos, enfrentando inimigos e situações atípicos.
O épico A Torre Negra é uma grande mistura de fantasia, terror e ficção. O termo que cunhei há pouco "velho oeste steampunk", apesar de não ser exato, dá uma boa impressão do que esperar ao ler A Torre Negra.



Destaque para Susannah Dean: mulher, negra, privada de ambas as pernas, que vem da década de 60 integrar o Ka-tet de Roland. Susannah é uma espécie de terceira personalidade que surge a partir do conflito esquizofrênico de suas duas outras personalidades, Odetta Holmes e Detta Walker. Uma grande personagem feminina, forte, inteligentíssima, talvez a mais sensivelmente perspicaz  de todo o Ka-Tet. 



Não vou me ater a fazer sínteses ou resumos dos livros, pois isso vocês encontram mil vezes por aí na internet. Registro aqui minha impressão e minha forte indicação para que leiam esta obra-prima do mestre do terror Stephen King .É bem verdade que é uma empreitada literária, são 7 volumes, a maioria deles bastante extensos. Mas ao iniciar, a gente não percebe mais o tempo correr, passear o olhos pelas páginas desta obra primorosa se torna um prazer. Existe um oitavo volume, lançado em 2012, intitulado "O vento pela fechadura", este ainda não li, mas pelo que pude entender, não é uma continuidade à história, mas um retorno através do qual o personagem de Roland Deschain conta mais uma parte de sua história pregressa.

Como em muitas obras de King, esta também é recheada com incríveis percepções sobre o escritor e o ato de escrever. Acho fantástico como o autor se percebe enquanto escritor: "Não esqueça que, no fundo, eu não invento as coisas; só registro o que vejo". Ele explica o escritor não como criador, mas como instrumento de uma força maior, quase um profeta de Gan.

"De qualquer modo, eu não devolveria um único minuto do tempo que vivi no onde e quando de Roland. Aqueles dias no Mundo Médio e no Fim do Mundo foram realmente extraordinários. Foram dias em que minha imaginação estava tão clara que eu podia cheirar a poeira e ouvir o ranger do couro." [KING, 2004]

No mais é isso pessoal. Longos dias e belas noites à todos. Iniciemos esta jornada...


O homem de preto fugia pelo deserto e o pistoleiro ia atrás...



Para download dos livros clique aqui


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Rei de Amarelo - Richard W. Chambers, 1895.

Gostei muito desse livro. Fiquei sabendo dele através das referências feitas na série True Detective - recomendadíssima! -, e desde então o coloquei entre as minhas almejadas leituras.
É um livro relativamente curto, composto por contos. Confesso que gostei mais da primeira parte, ou seja, dos primeiros quatro contos, “O reparador de reputações”, “A máscara”, “O Pátio do Dragão” e “O Emblema Amarelo”. São os contos onde há o elemento sobrenatural, e que se passam em um mundo onde existe a infame obra O Rei de Amarelo, peça teatral macabra que tem o poder de levar seus leitores à insanidade.

A segunda parte do livro, composta por contos realistas, não me cativou tanto. Os últimos contos acabam sendo um pouco repetitivos em seus cenários e personagens. Em suas notas, Carlos Orsi chama a atenção para os elementos que se repetem, atentando para uma possível subliminar relação entre os contos em outros níveis de significado. 


De qualquer forma, adorei o livro. A aura que envolve o mito do Rei de Amarelo é muito intensa, e muito bem descrita pelo Chambers.
Essa edição de 2014 da Intrínseca, com prefácio e notas de Carlos Orsi ficou muito boa e suas notas são interessantes e esclarecedoras sobre a obra. Gostei.


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Introdução, por Carlos Orsi.

“Seu olhar caiu sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. O que seria isso, perguntou-se
(...) após alguns minutos, estava absorto. Era o livro mais estranho que já havia lido. Parecia
que, em vestes refinadas, e ao som delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, em
silêncio, diante dele. Coisas com que havia sonhado de modo vago tornavam-se reais para ele.
Coisas que jamais imaginara eram-lhe reveladas.”
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde (1854-1900)

Na última década do século XIX, o amarelo, cor dos trajes do Rei que dá título a esta coletânea,
era o matiz do pecado, da podridão, da decadência, da loucura — e, ao menos no mundo de
língua inglesa, da literatura de vanguarda, a ponto de a principal revista literária de Londres, nos
anos 1890, chamar-se O Livro Amarelo. Não era por acaso que o pecado, a doença e a arte
moderna tinham a mesma cor: importados para a Inglaterra, os livros dos autores decadentes
franceses vinham encadernados em amarelo.
A chamada escola decadente francesa inspirava-se na poesia de Charles Baudelaire (1821-
1867), autor que havia sido saudado por Victor Hugo como o criador de un frisson nouveau, “uma
nova emoção”. O decadentismo atingiu seu ponto alto na obra de Joris-Karl Huy smans (1848-
1907), principalmente em seu romance À Rebours (“Às Avessas”, mais conhecido em inglês
com o Against the Grains, “Contra a Natureza”, publicado em 1884). Muitos críticos acreditam
que o “livro amarelo” que tanto fascinou Dorian Gray, no romance de Wilde, era exatamente
esse volume de Huy smans.
O horror que a literatura “amarela” francesa causava ao establishment anglo-saxão pode ser
visto nesta crítica do jornal Daily Chronicle à primeira edição de O Retrato de Dorian Gray,
publicada em 1890, cinco anos antes de O Rei de Amarelo:
“Trata-se de um livro gerado pela literatura leprosa dos decadentes franceses — um livro
venenoso, cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual.”
Afinal, o que eram e o que queriam os “mefíticos” decadentes franceses? Humilhados pela
derrota da França na guerra de 1870 com a Prússia, desiludidos com o fim sangrento da Comuna
de Paris de 1871, esmagados pelo peso da geração de gigantes literários que os antecedera —
Balzac, Hugo, Flaubert —, os decadentistas viam-se como mentes velhas em corpos jovens, os
últimos filhos de uma civilização que já fizera tudo, provara tudo e, agora, rumava para a tumba
ou, já morta, decompunha-se.
Seu projeto era radicalizar o frisson nouveau de Baudelaire: descobrir, estimular e registrar
emoções inéditas, capazes de sufocar o tédio de uma existência crepuscular, apelando para
meios artificiais, como drogas, ou para tudo aquilo que a civilização moribunda, filha da Igreja e
do Iluminismo, havia banido: o absurdo, o pecado, a misantropia, o crime, o sexo não como
expressão de amor ou para gerar filhos, mas como mero gozo e perversão. Era a busca do efeito
estético sem qualquer tipo de amarra moral, do prazer sem consequência, do excesso sem
responsabilidade.

O livro

É nesse contexto que Robert William Chambers (1865-1933) publica, em 1895, um peculiar
volume de contos, contendo dez histórias — sendo que quatro delas giram em torno de uma peça
de teatro intitulada O Rei de Amarelo.
A cor das roupas rasgadas do Rei não foi escolhida por acaso: a peça, da qual temos apenas
vislumbres, é a epítome, a realização final do projeto decadente. Seu autor, cujo nome jamais é
revelado, foi tão bem-sucedido na criação de un frisson nouveau, tão radical, que a própria beleza
do texto se converte em uma maldição para quem o lê. Um crítico francês já havia escrito que,
depois de um romance como À Rebours, as únicas alternativas eram “o cano de uma arma ou o
pé da cruz”, e de fato tanto Huy smans quanto Wilde acabaram fugindo de seus excessos e
buscando refúgio no catolicismo. Já Chambers nos indica, por meio do destino de seus
personagens, que, depois de ler O Rei de Amarelo, nem a morte nem o claustro oferecem
segurança.
Curiosamente, os contos de O Rei de Amarelo não são, eles mesmos, exemplos de literatura
decadente. Pelo contrário: seus protagonistas, mesmo quando são jovens artistas boêmios
farreando pelas ruas de Paris da decadência e do fin de siècle, revelam uma tocante pureza de
coração, coisa que seria impossível de encontrar em um anti-herói de Huy smans. Vários deles
são católicos ou estão em busca da fé.
Há muita especulação sobre as inspirações de Chambers. É bem provável que Wilde e
Baudelaire estivessem em sua mente enquanto criava O Rei de Amarelo. Diversos nomes de
lugares e pessoas que aparecem nos trechos da obra teatral citados nos contos, como Hastur, Hali
e Carcosa, vêm de Ambrose Bierce (1842-1914?), o jornalista e escritor americano que
desapareceu da face da Terra enquanto se dirigia ao México para cobrir a revolta de Pancho
Villa. Bierce também é famoso por seus contos de terror, mas Chambers parece ter extraído
muito pouco dele para além de um punhado de nomes altissonantes: enquanto o horror, em
Bierce, é subjetivo — afeta, principalmente, a mente do protagonista — em Chambers ele é
externo, físico, quase cósmico.
Quando O Rei de Amarelo foi escrito, a ideia de que uma obra literária poderia ser escandalosa
demais para circular, ou perturbadora demais para que fosse seguro lê-la, ainda tinha alguma
plausibilidade. Em 1892, a escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) teve seu
conto “O papel de parede amarelo” (eis a cor da maldade, de novo) criticado por um médico
que declarou a história “perigosa” e questionou se “esse tipo de literatura deveria ser permitido”,
já que representava “perigo mortal” para pessoas suscetíveis a “distúrbios mentais”. É provável
que Chambers tivesse conhecimento do conto e da polêmica: a crítica psiquiátrica ao trabalho de
Gilman de certa forma ecoa em “O reparador de reputações”, texto que abre este volume.
Esta coletânea se divide em duas partes, com quatro contos cada, separadas por duas histórias
que podem ser consideradas de transição. A primeira, composta pelos contos “O reparador de
reputações”, “A máscara”, “O Pátio do Dragão” e “O Emblema Amarelo”, se passa em um
mundo onde existe uma peça de teatro, O Rei de Amarelo, que provoca estranhos efeitos, físicos
e psicológicos, em quem a lê. Essas histórias talvez se passem no fim do século XIX, ou em um
futuro distópico imaginado pelo autor.
A segunda parte é formada pelo que alguns comentaristas chamam de “Quarteto das Ruas”:
“A rua dos Quatro Ventos”, “A rua da primeira bomba”, “A rua de Nossa Senhora dos Campos”
e “Rue Barrée”. São contos românticos da vida boêmia na Paris do século XIX. As histórias de
transição, “A Demoiselle d’Ys” e “O paraíso do profeta”, marcam a passagem do registro
fantástico, entre o delirante e o alegórico, da primeira parte para a pegada mais realista da
segunda.
Algumas versões de O Rei de Amarelo, publicadas após a morte do autor, omitem a segunda
parte do livro, substituindo o “Quarteto das Ruas” por contos de terror e fantasia escritos por
Chambers para outras de suas coletâneas. Isso me parece um equívoco, pois há uma articulação
e uma unidade temática entre as partes, como se uma fosse a versão alternativa, distorcida, da
outra.

O autor

Antes de se tornar escritor, Chambers havia sido pintor e ilustrador, colaborando com importantes
revistas americanas. De 1886 a 1893, estudara arte em Paris. Há algo de autobiográfico, pode-se
imaginar, nas descrições da vida boêmia dos jovens artistas do Quartier Latin que compõem o
pano de fundo de boa parte desta coletânea.
O Rei de Amarelo foi um sucesso no lançamento, e hoje é a única obra de Chambers ainda
lembrada por leitores e crítica. Entre os estudiosos da literatura fantástica, há quem o considere o
volume mais importante publicado por um autor americano entre o tempo de Edgar Allan Poe
(1809-1849) e o surgimento dos primeiros modernos, como os de H. P. Lovecraft (1890-1937).
No entanto, embora O Rei tenha sido bem recebido na estreia, não foi como autor de histórias
de fantasia e terror que Chambers conquistou fama e fortuna ainda em vida: o maior sucesso
veio de uma série de romances água com açúcar, obras comerciais, escritas para satisfazer o
gosto de moças românticas. O crítico S. T. Joshi diz que o melhor termo de comparação, na
literatura contemporânea, são os romances publicados em profusão pela editora Harlequin para o
público feminino. Joshi destaca outra coletânea de contos de Chambers como digna de nota, The
Mystery of Choice, de 1897, que também inclui contos fantásticos e pouco mais.
Sua obra romântica, composta de dezenas de volumes, foi um fracasso de crítica — as
personagens femininas eram “o que os homens gostariam que as mulheres fossem, não mulheres
de verdade”, de acordo com um comentarista — e, a despeito do sucesso de público (dois desses
livros chegaram a ser best-sellers, com mais de duzentos mil exemplares vendidos), desapareceu
na obscuridade. Com o dinheiro dos livros ele se instalou em uma mansão confortável em Nova
York. Gostava de caçar, pescar, colecionava borboletas, arte oriental e livros raros. Morreu em
1933, já quase esquecido como autor.
Muitos críticos lamentam que Chambers tenha sido, de certa forma, um escritor superior à
própria obra: um homem que, com algum esforço, poderia ter criado um legado literário muito
superior ao que realmente produziu. É como se o sucesso comercial de seus romances baratos
tivesse sufocado o gênio que se vislumbra em O Rei de Amarelo.

Influências

O Rei de Amarelo deixou marcas nas gerações de escritores de terror e de ficção científica que
surgiram após sua publicação. Hoje em dia, a obra de Chambers é mais comumente citada em
relação à Mitologia de Cthulhu, o conjunto de deuses “antigos” e lendas “ancestrais” forjado por
H. P. Lovecraft e compartilhado por seus amigos nos anos 20 e 30, e que ainda hoje é utilizado
por diversos autores.
A influência de Chambers sobre a Mitologia de Cthulhu, no entanto, costuma ser gravemente
superestimada: a correspondência de Lovecraft indica que ele só teve contato com O Rei de
Amarelo em 1927, quando seu estilo e seus temas já estavam bem definidos. Mesmo o
Necronomicon, livro fictício que leva seus leitores à loucura, tinha sido criado por Lovecraft antes
de ele conhecer O Rei de Amarelo, obra fictícia de efeito semelhante.
A incorporação de Chambers à Mitologia de Cthulhu tem duas causas: a primeira, o fato de
Lovecraft citar vários nomes pinçados do livro de Chambers em um — mas apenas um — de
seus contos, “Um sussurro nas trevas”, de 1930; e a segunda é August Derleth (1909-1971). Após
a morte de Lovecraft, Derleth tomou para si a tarefa de sistematizar a mitologia artificial deixada
pelo amigo, convertendo as menções vagas e lendas fragmentárias em uma “teologia
alienígena” consistente.
A sabedoria e a qualidade da iniciativa de Derleth são discutíveis, mas com isso, nomes tirados
da obra de Chambers, como Hastur, o lago de Hali, Carcosa e o próprio Rei de Amarelo,
acabaram atraídos para a órbita do mito coletivo lovecraftiano. O conto em que Derleth
apresenta sua visão organizada e enciclopédica do Mito de Cthulhu chama-se, exatamente, “O
retorno de Hastur”, publicado pela primeira vez em 1939.
O impulso sistematizador de Derleth contagiou outros autores, e logo surgiram tentativas de
organizar a “mitologia amarela”, ou “Mitologia de Carcosa”, em linhas semelhantes às da
Mitologia de Cthulhu. O esforço mais conhecido foi o dos autores do role-playing game “The Call
of Cthulhu”, principalmente a partir do cenário seminal “Tell Me, Have You Seen the Yellow
Sign?”, publicado em 1989.
Chambers, no entanto, deixou ainda menos pistas sobre o mito subjacente à sua obra que
Lovecraft. Talvez Carcosa seja uma cidade em outro planeta, em outra dimensão ou, mesmo,
uma estação espacial — algo sugerido pela afirmação de que suas torres aparecem “atrás” da
Lua. Talvez Hastur seja uma pessoa, ou uma cidade; Hali, um profeta, o nome de um lago, ou
um profeta que deu nome a um lago. Foram feitas algumas tentativas de escrever a peça O Rei
de Amarelo na íntegra, embora nenhum texto real jamais possa cumprir a promessa de horror e
loucura evocada por Chambers.
Em 1975, o “Culto do Emblema Amarelo”, uma sociedade secreta que serve a Hastur, “que
reside em um local misterioso chamado Hali, que já foi um lago mas agora é um deserto”, perto
de “uma cidade chamada Carcosa”, foi introduzido como uma das sociedades secretas que lutam
pela dominação mundial no romance “cult”, satírico, paranoico e pós-moderno “Illuminatus!
Trilogy ”, de Robert Anton Wilson e Robert Shea.
Em tempos mais recentes, Hastur foi citado como um anjo caído e Duque do Inferno no livro
Belas maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman. Gaiman também já mencionou Carcosa em
alguns de seus trabalhos solo, como o conto “Um estudo em esmeralda”, que mistura Sherlock
Holmes ao Mito de Cthulhu. No romance A maldição do cigano, de Stephen King, há um bar
chamado Hastur, que é destruído em um incêndio, e em seu lugar é construída uma loja de
produtos alternativos chamada O Rei de Amarelo. E no recente sucesso da tevê, a série True
Detective, um certo “Rei Amarelo” é figura-chave.
Fora do contexto da Mitologia de Cthulhu e das especulações em torno do que seria uma
“mitologia amarela” plenamente desenvolvida, nomes como Hastur e Carcosa também foram
usados pela escritora Marion Zimmer Bradley (1930-1999) em sua série de ficção científica
Darkover. E Ray mond Chandler (1888-1956), um dos grandes mestres do romance policial,
escreveu um conto intitulado “O rei de amarelo”, sobre o assassinato de um astro decadente do
jazz, vítima que lembra os protagonistas depravados de Huy smans.




Carlos Orsi é jornalista e escritor, publicado no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na
Inglaterra e na Argentina. Seu conto “The Machine in Yellow”, sobre uma montagem da
pe ç a O Rei de Amarelo durante a ditadura brasileira de 1964-1985, foi publicado na
antologia americana Rehearsals for Oblivion, em 2006. É autor do romance Guerra justa e
do livro de contos Campo total.








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