quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Narcisismo social

Às vezes - quase sempre nos últimos tempos deste país, e deste mundo - bate um desalento ao ver tanto ódio. Tantas neuroses mal resolvidas virando política de estado. A imensa deficiência na habilidade de interpretação de texto é exatamente proporcional ao ódio que se quer destilar, colocar para fora, no mundo. Quase num ímpeto inconsciente de vingança e rancor por uma frustração que não se quer assumir, e que serve de combustível para um sentimento de cólera errante, não identificado, camuflado como uma aberrante postura ideológica. 

Ou talvez o ódio cegue, como o clichê fala. Mais do que isso, talvez esse sentimento potente de raiva não apenas cegue, mas distorça, deforme, desfigure, sufoque o sentido real daquilo que o raivoso quer atacar. A distorção alimenta o ciclo de raiva e ressentimento. 

O ressentido vê tudo através de um filtro rancoroso. Rancor que nasce da inabilidade de olhar para si mesmo e de refletir sobre si mesmo, e que projeta no mundo a sua incapacidade de lidar com o abismo dentro de si, com as contradições humanas, com os infinitos graus de cinza da realidade. Pretende uma visão reducionista da vida, negando a sua complexidade. Arrogantemente, acredita que a sua perspectiva limitada é a única chave de leitura possível do mundo. Aplica seus padrões viciados e limitados para julgar o intrincado e indissolúvel tecido da vida. 

O analfabetismo emocional talvez seja o pior dos nossos males. Contamina tudo, deturpa, corrompe. Atribui as cores que eu quero à tudo que me cerca. Mas isso por si mesmo é natural. Vermos o mundo através dos nossos filtros. O analfabetismo mesmo, começa quando brigo e imponho que o meu filtro é o único filtro, menosprezando e desconsiderando cinicamente a pluralidade de perspectivas, negando a riqueza da vida.

O analfabetismo começa quando me fecho no meu mundo de interesse individual e não vejo os outros. Quando o bem comum se transmuta no meu bem pessoal apenas. Quando não pratico a empatia. Quando eu não consigo entender que o mundo é mais do que posso ver. 

"O mundo é mais do que conhecemos..."


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

. terror .

 

Não há prazer como o terror. Se fosse possível sentar-se sem ser visto entre duas pessoas em qualquer trem, sala de espera ou escritório, a conversa ouvida rondaria uma e outra vez sobre este tema. Poderia parecer que se tratava de um assunto completamente distinto: a situação do país, um bate-papo despreocupado sobre as mortes na estrada, o aumento dos preços dos dentistas, mas pondo a nu a metáfora, a insinuação, ali, encerrada no coração do discurso, encontra-se o terror. Enquanto aceitamos sem discussão a natureza de Deus e a possibilidade de vida eterna, ruminamos alegremente as minúcias da miséria. A síndrome não tem limite, tanto nos banheiros como nas salas de aula, se repete o mesmo ritual. Com a inexorabilidade de uma língua que se retorce para explorar um dente dolorido, voltamos uma, duas ou mil vezes a nossos medos, nos sentando para discutir sobre eles com a impaciência de um homem faminto ante um prato cheio e fumegante.

Não há prazer como o terror. Enquanto ele for de outros.


Clive Barker, Livros de Sangue 1, 1984.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

O Irlandês (2019)


Desculpem-me, mas já adianto que esse texto não vai lamber as bolas do Scorsese. Ouvi tanto sobre esse filme, todos passando pano, que já estava me sentindo culpada por não ter assistido. Até que enfim resolvi começar a empreitada de 3 horas e 29 minutos. Não consegui ver tudo num talagaço só, demorei três dias pra concluir essa dose cavalar de testosterona na veia. 


Houve uma época em que eu gostava desse tipo de filme. Vi muitos deles, que praticamente não diferem em nada entre si - inclusive nem os atores! - Era uma vez na América (1984), Cassino (1995), Scarface (1983), Fogo Contra Fogo (1995), Os Bons Companheiros (1990), Os Infiltrados (2006), Desafio no Bronx (1993), a trilogia de O Poderoso Chefão (72,74 e 90), com certeza muitos mais que não me recordo agora, e muitos mais que não cheguei a ver. Alguns biográficos, outros baseados em fatos reais. 

Como eu disse, houve um tempo em que olhei muito e gostava desses filmes. Continuo reconhecendo suas qualidades de roteiro, atuações impecáveis, fotografia, reconstituição histórica, etc. São bons filmes. Inclusive O irlandês. As atuações do Pacino, do De Niro e do Pesci estão demais, mesmo com o auxílio de toda a maquiagem para as transições de idade. 
Contudo, alguma coisa dentro de mim já não tem mais paciência, e acha incrivelmente previsível essas tramas: Crime organizado, corrupção política, traições, grandes esquemas de lavagem de dinheiro e, claro, muita violência. Eu sei que em grande medida eles refletem aspectos da realidade, e isso é o que mais me incomoda: grande parte dos problemas do mundo está intimamente ligado à essa lógica masculina de comportamento. No fim, tudo se resume a conflitos criminosos e extremamente narcisistas.

Hoje em dia tenho uma sensibilidade muito diferente para filmes, e acho esses filmes carregados de testosterona desconfortáveis, rasos e maçantes. Por mais que ao final a moral seja sempre "o crime não compensa", há algo extremamente apelativo na forma como a violência é mostrada, as armas, os tiros, os assassinatos e o poder que deles emana. Não venham me dizer que no final não ficaram com pena do Frank. Não venham me dizer que não romantizaram a figura de um assassino frio, como sendo um cara fodão. A estética do crime e da violência tem um apelo muito forte dentro de nós. Na maior parte do tempo a história nos inspira simpatia pelo Frank, glamouriza o universo do crime, e é isso que me causa extremo desconforto e reflexão. 

Nunca os atributos "filme masculino" ou "filme carregado de testosterona" fez tanto sentido, afinal, notaram que praticamente não há falas das personagens femininas? Mesmo a personagem da Anna Paquin, que é quem traz o elemento de crítica do filme, praticamente não abre a boca. E o que quero dizer com isso não é que o filme deveria ou não ter mais voz feminina, mas justamente fazer perceber o quão masculino é esse universo.

Esse tipo de filme não é mérito do Scorsese. Ele fez muitos filmes bons que fogem dessa trama. 

Se você queria assistir O Irlandês, assista, é um bom filme. Mas quiçá meu texto faça com que você perceba essas nuances e reflita sobre a perspectiva que expus aqui. Se isso acontecer já me dou por satisfeita.