quarta-feira, 28 de julho de 2010

Entrevista com o Vampiro - Anne Rice, 1976

Pois então. Finalmente consegui ler o livro mais famoso da Anne Rice. Não tem o que dizer. Simplesmente fantástico. E uma ressalva, o filme sem dúvida é uma das melhores adaptações literárias para a telona que eu já vi. Além de ser fiel ao texto, com pequenas alterações, mais no sentido de traduzir melhor para a linguagem do cinema, o filme captura muito bem a atmosfera do livro. Enfim, mais que indicados, livro e filme. Vergonha eu ainda não ter lido o livro =P.


RICE, Anne. Entrevista com o vampiro.7ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 309 p.

Esta é uma idéia muito mais mundana. As pessoas que param de crer em Deus ou na bondade continuam a acreditar no diabo. Não sei por que. Não, realmente não sei por que. O mal é sempre possível. E a bondade é eternamente difícil. P. 20

Acho que é esta a função do monumento. Seja a pequena casa ou a mansão de colunas gregas ou ferro trabalhado. O monumento não diz que este ou aquele homem andou por ali. Não, mas que aquilo que sentiu em determinada época e em determinado local ainda continua. P. 45

- Mas por que... disse que Lestat não devia ter feito que começasse com pessoas. Quer dizer... que para você era uma opção estética, e não moral?
- Se tivesse me perguntado então, teria lhe dito que era estética, que pretendia compreender a morte por etapas. Que a morte de um animal me proporcionava tal prazer e experiência que mal tinha começado a compreendê-la, e desejava resguardar a experiência da morte humana para uma fase mais madura. Mas era moral. Por que na verdade, todas as decisões estéticas são morais.
- Não compreendo - disse o rapaz. – Pensava que a estética pudesse ser inteiramente amoral. O que diz do clichê do artista que abandona mulher e filhos para pintar? Ou Nero, tocando harpa enquanto Roma ardia?
- Ambas são atitudes morais. Ambas serviram a um bem maior, na mente do artista o conflito se estabelece entre a moral do artista e a sociedade, e não entre estética e moralidade. Mas freqüentemente isto não é compreendido. E aí surge o desperdício, a tragédia. Um artista, roubando quadros de uma loja, por exemplo, imagina ter tomado uma decisão inevitável mas imoral, e então se vê como um perseguido pelo destino. O que se segue é desespero e irresponsabilidade mesquinha, como se a moralidade fosse um imenso mundo de vidro que pudesse ser irremediavelmente maculado por um único ato. Mas, na época, esta mão era minha maior preocupação. Ainda não pensava nisso. Acreditava que só matava animais por razões estéticas, e me atinha à grande questão moral: se minha própria natureza era maldita ou não.
- Pois, compreende, apesar de Lestat nunca me dito nada sobre diabos ou infernos, acreditava estar condenado desde o momento em que me uni a ele, assim como Judas deve ter acreditado quando colocou um laço em torno do pescoço. Compreende? P. 73

- A grande aventura de nossas vidas. Qual o significado da morte quando se pode viver até o fim do mundo? E o que é “o fim do mundo”, além de uma frase, pois quem sabe, ao menos, o que é o mundo? Já vivi dois séculos, vi as ilusões de um serem transferidas para o outro, sendo eternamente jovem e eternamente velho, sem possuir ilusões, vivendo cada momento de um modo que me fazia pensar num relógio de prata tiquetaqueando no vazio: o painel pintado, os ponteiros delicadamente esculpidos por mãos jamais vistas por alguém, sem olhar para ninguém, iluminado por uma luz que não era luz, como aquela sob a qual Deus fez o mundo antes de criar a luz. Funcionando, funcionando, funcionando, com a precisão de um relógio, em uma sala tão vasta quanto o universo. P. 135

- Minha memória é nítida demais, aguçada demais. As coisas deviam ficar guardadas e o que não se resolvesse deveria se desvanescer. Mas as imagens ficam próximas de meu coração como retratos em medalhões, ainda que sejam retratados tão monstruosos que nenhum artista ou câmera jamais poderiam registrar [...]. P. 192

- Então não somos... – cheguei para a frente. - ...os filhos de Satã?
- Como poderíamos ser filhos de Satã? – perguntou. – Acredita que Satã criou este mundo que nos cerca?
- Não, creio que Deus o criou, se é que alguém o fez. Mas Ele também fez Satã, e quero saber se somos seus filhos!
- Exatamente. Se você acredita que Deus criou Satã, deve compreender que todos os poderes de Satã provêm de Deus, que Satã é simplesmente filho de Deus, e que nós também o somos. Na verdade não há filhos de Satã. P. 216

[...] Não há gradações de perversidade? Será o mal um imenso e perigoso poço onde se cai ao primeiro pecado, mergulhando até o fundo? P. 217

- Este mal, este conceito, ele nasce da decepção, da amargura. Vê? Filhos de Satã! Filhos de Deus! Esta é a única pergunta que me faz, este é o único poder que o obceca. Por que precisa nos transformar em deuses e diabos, quando o único poder que existe está dentro de nós mesmos? Como pode acreditar nessas mentiras fantásticas, nesses mitos, nessas caricaturas do sobrenatural? P. 220

[...] Para os vampiros, o amor físico culmina e se satisfaz em uma coisa: a morte. P. 234

[...] Quantos vampiros você pensa que têm condições para a imortalidade? Para começar, têm uma visão completamente distorcida de imortalidade. Ao se tornarem imortais, querem que todas as características de suas vidas permaneçam imutáveis: carruagens seguindo sempre a mesma moda, roupas com cortes a seu gosto, homens se comportando e falando do mundo que sempre compreenderam e apreciaram. Quando, na verdade, tudo muda, exceto o próprio vampiro. Tudo, a não ser o vampiro, está sujeito a corrupções e distorções constantes. Em pouco tempo, com uma mente inflexível, e geralmente mesmo para as mentalidades mais flexíveis, esta imortalidade torna-se uma sentença a ser cumprida num asilo de vultos e formas inexoravelmente incompreensíveis e sem valor. Numa noite o vampiro acorda e percebe aquilo que há décadas temia: que simplesmente não quer mais viver, a qualquer preço. O estilo, moda ou forma de existência que tornaram a imortalidade tão atraente foram varridos da face da terra. E não há mais nada para aliviar o desespero, a não ser o ato de matar. E este vampiro sai para morrer. Ninguém encontrará seus restos. Ninguém saberá para onde foi. E geralmente ninguém a sua volta – pudesse ele ainda procurar a companhia de outros vampiros – ninguém saberá que ele está desesperado. Há muito tempo terá parado de falar de si mesmo ou de qualquer outra coisa. Ele desaparecerá. P. 259 – 260

- Costumava acreditar que superaria isto. Que quando a dor por tudo que aconteceu o deixasse, voltaria a ter calor e se encheria de amor, e se encheria daquela curiosidade feroz e insaciável que demonstrou em nosso primeiro encontro, aquela consciência inveterada e aquela sede de saber que o levou à Paris e à minha cela. Pensei que fizessem parte de você e não pudessem morrer. [...] E acreditei que o atrairia e o prenderia a mim. E teríamos muito tempo, seríamos professor um do outro. Todas as coisas que lhe trouxessem felicidade também me trariam, e eu seria o guardião de sua dor. Meu poder seria o seu poder. Minha força também. Mas você está morto por dentro, é frio e está fora de meu alcance! É como se eu não estivesse aqui, a seu lado. E sem estar com você, tenho a terrível sensação de que simplesmente não existo. E você é tão insensível e distante quanto estas estranhas pinturas modernas de linhas e formas brutas que não posso amar ou compreender, tão enigmático quanto as esculturas mecânicas atuais, que não têm forma humana. Tremo quando estou próximo de você. Olho em seus olhos e não encontro meu reflexo... P. 304


Filme: Entrevista com o Vampiro
Direção: Neil Jordan
Ano: 1994
Origem: Estados Unidos








sexta-feira, 2 de julho de 2010

As veias abertas da América Latina - Eduardo Galeano, 1971

Comentava com um amigo sobre esse livro e ele me disse que estava um pouco defasado. Bem, sem dúvida, algumas informações núméricas, estatísticas e porcentagens podem ter mudado ao longo destes quase 40 anos. Mas o fato é que esta obra é imprescindível para entender o mundo em que vivemos nos dias de hoje, entender como viemos parar nesta altura da estrada, principalmente para nós, latino-americanos. Uma dos melhores aspectos do livro é que o Galeano consegue dar uma cadência de romance para uma obra que é, em si mesma, extremamente densa. Essencial! Um livro que com certeza mudará suas perspectivas e concepções sobre muitas coisas!



GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 365 p.


Temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez...
(Proclamação insurrecional da Junta Tuitiva na cidade de La Paz, em 16 de julho de 1809)


Vivemos num mundo que trata melhor os mortos do que os vivos. Nós, os vivos, somos fazedores de perguntas e fornecedores de respostas, alem de termos outros defeitos graves, imperdoáveis aos olhos de um sistema em que a morte, como o dinheiro, aperfeiçoa as pessoas. P. 9

Vale a pena morrer por uma coisa sem a qual não vale a pena viver. P. 12                                                       

Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um conceito medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos dominados. “Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-americano Woodrow Wilson. Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido”. E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa identificação. P. 17

Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. P. 18

O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza, que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso.
Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento - São Paulo, Buenos Aires, a cidade do México -, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças; obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam. P. 20

A economia colonial latino-americana dispôs da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para possibilitar a maior concentração de riqueza que jamais possuiu qualquer civilização na história mundial. P. 58

Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis para as consciências culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de carga, porque resistiam a um peso maior do que o que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem comprovava-se que, na realidade, os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar “a maldade natural” dos indígenas. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os “homens degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa. P. 61

A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores conseqüências do que o sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas exigiam grandes deslocamentos da população e desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só extinguiam incontáveis vidas através do trabalho forçado, como abatiam indiretamente o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos socavãos, submetidos à servidão dos encomenderos e obrigados a entregarem por nada as terras que obrigatoriamente deixavam ou descuidavam. Na costa do Pacífico, os espanhóis destruíram ou deixaram extinguir enormes cultivos de milho, mandioca, feijão, amendoim, batata doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões de terra que tinham sido trabalhadas pela rede incaica de irrigação. Quatro séculos e meio depois da conquista, só restam pedras e capim bravo em lugar da maioria dos caminhos que unia o império. Embora as gigantescas obras públicas dos incas fossem, em sua maior parte, arrasadas pelo tempo ou pela mão dos usurpadores, sobram ainda, desenhadas na cordilheira dos Andes, os intermináveis terraços que permitiam e ainda permitem cultivar as ladeiras das montanhas. P.64

Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o contato com a morte.(...)
Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do extinto Serviço de Proteção aos Índios, designado pelo presidente Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968. P. 71

Portugal não se limitou a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos teares e fiadores brasileiros. P. 78

Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e um dos fatores primordiais da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas. P. 84

E é preciso levar em conta que, neste sentido, em uma sociedade socialista, ao contrário da sociedade capitalista, os trabalhadores já não atuam tangidos pelo medo ao desemprego nem pela cobiça. Outros motores - a solidariedade, a responsabilidade coletiva, a tomada de consciência dos deveres e direitos que colocam os homens além do egoísmo - devem ser colocados em funcionamento. E não se muda a consciência de um povo inteiro num instante. Quando a Revolução conquistou o poder, segundo Fidel Castro, a maioria dos cubanos não era sequer antimperialista. P. 104

O açúcar arrasou o Nordeste. A faixa úmida do litoral, bem regada por chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto por matas tropicais da Bahia até o Ceará. Esta região de matas tropicais converteu-se, como diz Josué de Castro, em região de savanas5. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo germinava com exuberante vigor, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados, terras erodidas.
Fizeram-se, a princípio, plantações de laranjas e mangas, que foram abandonadas e se reduziram a pequenas hortas que rodeavam a casa do dono do engenho, exclusivamente reservadas para a família do plantador branco. Os incêndios que abriam terras aos canaviais devastaram a floresta e com ela a fauna; desapareceram os cervos, os javalis, as toupeiras, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a flora e a fauna foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos. P. 87

O açúcar do trópico latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de política e também de moral”, dizia Augusto Cochin. P. 106

No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas inglesas os escravos acusados de crimes morriam esmagados entre os tambores dos trapiches de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenhos no Brasil, para evitar semelhantes excessos: “Aos administradores não se lhes deve consentir de nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que andam grávidas nem pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e podem ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus chicotes de couro ou cânhamo sobre as costas das escravas grávidas que houvessem cometido qualquer falta, porém não sem antes deitá-las de boca para baixo, com o ventre num pequeno buraco, para não estropiar a “peça”; P. 114

Do Nordeste vieram, transportados como gado, os homens nus que da noite para o dia levantaram a cidade de Brasília no centro do deserto. Esta cidade, a mais moderna do mundo, está hoje cercada por um vasto cinturão de miséria: terminado o trabalho, os candangos foram expulsos para as cidades satélites e, sempre prontos para qualquer serviço, vivem dos desperdícios da resplandecente capital. P. 117

Já agonizava o século quando os cafeicultores, convertidos na nova elite social do Brasil, apontaram o lápis e fizeram as contas: eram mais baratos os salários de subsistência do que a compra e a manutenção dos escassos escravos. Aboliu-se a escravidão em 1888, e ficaram assim inauguradas as formas combinadas de servidão feudal e trabalho assalariado que persistem em nossos dias. P. 129

(...) é lícito confundir prosperidade de uma classe com o bem-estar do país? P. 135

(...) o horror da violência não fez mais do que pôr em evidência o horror do sistema. P. 137


O gaúcho dos postais folclóricos, tema de quadros e poemas, tem pouco a ver com o peão que trabalha, na realidade, terras grandes e estranhas. As alpargatas ocupam o lugar das botas de couro; um cinturão comum, ou às vezes um simples barbante, substitui os largos cinturões com adornos de ouro e prata. Aqueles que produzem a carne perderam o direito de comê-la: os criollos raras vezes têm acesso ao churrasco criollo, a carne suculenta e tenra, dourada nas brasas. Embora as estatísticas internacionais sorriam, exibindo rendas médias enganosas, a verdade é que o “ensopado”, guisado de macarrões e tripas de capão, constitui a dieta básica, carente de proteínas, dos camponeses no Uruguai. P. 156

A reforma agrária já não é um tema maldito: os políticos aprenderam que a melhor maneira de não fazê-la consiste em invocá-la continuamente. P. 166

Os laboratórios científicos do governo, das universidades e das grandes corporações envergonham a imaginação com o ritmo febril de suas invenções e descobertas, mas a nova tecnologia não encontrou a maneira de prescindir dos materiais básicos que a natureza, e só ela, proporciona. P. 176

A imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescindíveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia brasileira. Na década de 60, numerosas empresas norte-americanas, conduzidas pela mão de aventureiros e contrabandistas profissionais, se lançaram num rush febril sobre esta selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipamentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de ondas de luz de intensidade variável, electromagnetrômetros, para radiografar o subsolo rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os informes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas, interessadas no assunto, graças aos bons serviços do Geological Survey do governo dos Estados Unidos. P. 179

Sempre entregam os recursos ao imperialismo em nome da falta de recursos. P. 179

(...) é sempre efêmero o sopro de glórias e o peso das catástrofes é sempre perdurável. P.182
Curiosa inversão das “leis do mercado”: o preço do petróleo cai, embora a demanda mundial não deixe de aumentar, à medida que se multiplicam as fábricas, os automóveis e as usinas geradoras de energia. E outro paradoxo: embora o preço do petróleo baixe, sobe em todos os lugares o preço dos combustíveis que os consumidores pagam. Há uma desproporção descomunal entre os preços do cru e dos derivados. Toda esta cadeia de absurdos é perfeitamente racional; não é necessário recorrer às forças sobrenaturais para encontrar uma explicação. Porque o negócio do petróleo no mundo capitalista está, como vimos, em mãos de um cartel todo-poderoso. P. 205

O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nasceram juntos para negar, aos países subdesenvolvidos, o direito de proteger suas indústrias nacionais, e para desalentar neles a ação do Estado. Atribuir-se-ão propriedades curativas infalíveis à iniciativa privada. Todavia, os Estados Unidos não abandonarão nunca uma política econômica que continua sendo, na atualidade, rigorosamente protecionista, e que certamente tem bons ouvidos às vozes da própria história: no norte, nunca confundiram a doença com o remédio. P. 265

A embaixada norte-americana participara diretamente no golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. A queda de Goulart, herdeiro de Vargas no estilo e nas intenções, assinalou a liquidação do populismo e da política de massas. P. 275

A terapêutica piora o doente para melhor impor-lhe a droga dos empréstimos e das inversões. O FMI proporciona empréstimos ou dá a imprescindível luz verde para que outros os proporcionem. Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional, sem cujo visto o sistema bancário norte-americano não afrouxa os cordões da bolsa; o Banco Mundial, a Agência para o Desenvolvimento Internacional e outros organismos filantrópicos de alcance universal também condicionam seus créditos à assinatura e cumprimento das Cartas de Intenções dos governos ante o onipotente organismo. Todos os países latino-americanos reunidos não chegam a somar a metade dos votos de que dispõem os Estados Unidos para orientar a política deste supremo fazedor do equilíbrio monetário mundial; o FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. P. 286

A propósito do dumping de preços, é ilustrativa a história da conquista de uma fábrica brasileira de fitas adesivas, a Adesite, por parte da poderosa Union Carbide. A Scotch, conhecida empresa com sede em Minnesota e tentáculos universais, começou a vender a preço cada vez mais baixos suas próprias fitas adesivas no mercado brasileiro. As vendas da Adesite iam descendo. Os bancos lhe cortaram os créditos. A Scotch continuava baixando seus preços: caíram em 30%, depois em 40%. E entrou, então, a Union Carbide em cena: comprou a fábrica brasileira a preço de desespero. Posteriormente, a Union Carbide e a Scotch se entenderam para repartir o mercado nacional em duas partes: dividiram o Brasil, a metade para cada uma. E, de comum acordo, elevaram os preços das fitas adesivas em 50%. Era a digestão. A lei antitruste, dos velhos tempos de Vargas, tinha sido derrogada anos atrás. P. 288

Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens. P.337

Mas provoca-me engulhos, confesso, ler alguns trabalhos valiosos de certos sociólogos, politicólogos, economistas ou historiadores que escrevem em código. A linguagem hermética nem sempre é o preço inevitável da profundidade. Em alguns casos pode estar simplesmente escondendo uma incapacidade de comunicação, elevando-a à categoria de virtude intelectual. Suspeito que o fastio serve, dessa forma, para bendizer a ordem estabelecida: confirma que o conhecimento é um privilégio das elites. P. 340

A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus? Culpa da natureza? Do clima modorrendo? Das raças inferiores? A religião e os costumes? Não será a desgraça um produto da história, feita por homens, e que, portanto, pelos homens pode ser desfeita?
A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita escolhe o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus privilégios pela herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e esta coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível. P. 341

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