segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O vampiro Lestat: Anne Rice, 1984

Bem, me demorei em novo post porque realmente minhas últimas leituras não foram dignas de indicação. Não que fossem ruins, mas reservo esse espaço para leituras que tenho certeza que vão fazer a diferença para os bons leitores.
Esse livro é o segundo da série "As crônicas vampirescas" da escritora Anne Rice. Já li alguns dela, meio aleatoriamente, e de uns tempos para cá estou empenhada não apenas em ler todos todos os seus títulos, mas também em tê-los a todos. Como o $ ainda não dá em árvore, e eu ainda não dedico meu dinheiro à compra compulsiva de livros, estou comprando vagarosamente. Já tenho quatro. E também gosto de comprar livros usados, não somente por serem baratos, mas porque é quase um sentimento de adoção que me acomete, rs rs, verdade seja dita. Na compra desse livro dei a sorte grande, consegui a primeira edição em português por uma verdadeira pechincha.
Sinceramente, achei esse livro bem melhor do que o Entrevista com o Vampiro, apesar de evidentemente ser menos famoso. Ele é uma das peças fundamentais para se conseguir compreender as crônicas na sua integridade. O livro não apenas conta detalhadamente a história de Lestat, como também revela em totalidade as histórias dos vampiros Armand, Marius e Gabrielle. Sem mencionar a história dos poderosos progenitores Akasha e Enkil, a história da origem dos vampiros, da perspectiva da própria Akasha. 
A escritora faz uma viagem completa por todos os cenários históricos onde as histórias dos diferentes personagens se passam, e mostra como os vampiros estiveram relacionados com as crenças e com a religiosidade ao longo dos séculos.
Como é de seu costume, Rice impregna sua narrativa com passagens filosóficas e questionamentos metafísicos, característica da autora que transforma sua leitura em muito mais do que um simples entretenimento, num verdadeiro instrumento de reflexão.



RICE, Anne. O Vampiro Lestat. 1ª edição. São Paulo: Marco Zero, 1989.


E havia também alguma coisa de vampiresca na música de rock. Ela certamente soava como sobrenatural. Estou me referindo à maneira como a eletricidade pode sustentar para sempre uma única nota; ao modo como as harmonias são superpostas até você sentir-se dissolvido no som. Terrivelmente eloqüente esta música. O mundo não tinha visto nada semelhante antes. p. 11


[...] as pessoas mais simples desta época se orientavam por uma vigorosa moralidade secular tão forte quanto qualquer moralidade religiosa que eu já conhecera. Os intelectuais carregavam as bandeiras. Mas pessoas inteiramente comuns em toda a América se preocupavam apaixonadamente com a “paz”, os “pobres” e “o planeta”, como se estivessem possuídas por um zelo místico.
Tencionavam acabar com a fome neste século. Erradicariam as doenças a qualquer preço. Questionavam ferozmente a pena de morte e o aborto. E combatiam as ameaças da “poluição ambiental” e da “guerra de holocausto”, com tanta violência quanto em épocas passadas combateram a bruxaria e a heresia.
Quanto à sexualidade, já não era mais uma questão de superstição e medo. Ela estava sendo despojada dos últimos traços de religiosidade. Era por isso que as pessoas andavam meio nuas. Era por isso que se beijavam e se abraçavam nas ruas. Agora conversavam sobre ética, responsabilidade e beleza do corpo. A procriação e as doenças venéreas estavam sob controle.
Ah, o século XX. Ah, o giro da grande roda. Superara os sonhos mais desvairados este futuro. Transformara em tolos os profetas sinistros de épocas passadas.
Eu pensava muito nessa inocente moralidade secular, nesse otimismo. Neste mundo brilhantemente iluminado onde o valor da vida humana era maior do que havia sido antes. p. 13-14
           

E conhecerei pessoas como você, pessoas que tenham alguma coisa na cabeça e que saibam conversar, e nos sentaremos nos cafés, beberemos juntos, discutiremos com ardor e passaremos o resto de nossas vidas em uma excitação divina. p. 44

            
Até o mais convicto dos ateus provavelmente acredita que a morte lhe trará alguma resposta. p. 49

            
Não sei. Chegou como uma coisa que veio de fora e se instalou em mim. Num minuto era uma idéia, no outro era real. Creio que se pode atrair esse tipo de coisa, mas não se pode fazê-la vir. p. 51


Naturalmente, tudo que esses jovens burgueses realmente desejavam era tornarem-se aristocratas. Compravam títulos e ligavam-se pelo matrimônio a famílias nobres sempre que podiam. E é uma das pequenas ironias da História que eles tenham participado da Revolução e ajudado a destruir a classe à qual, de fato, gostariam de ter se juntado. p.57


[...] eu posso viver sem Deus. Posso até viver com a idéia de que não existe vida depois da morte. Mas não creio que pudesse continuar se não acreditasse na possibilidade da bondade. p.61


Então, deitei prostrado sobre as pedras, não mais murmurando orações, mas sim aquelas súplicas desarticuladas que fazemos diante de tudo que é poderoso, de tudo que é sagrado, de tudo que possa ou não existir com que nome for. p. 80


Quero saber, por exemplo, por que a beleza existe, por que a natureza continua a criá-la, e qual é a ligação entre a vida de uma tempestade de relâmpagos com os sentimentos que ela desperta dentro de cada um de nós? Se Deus não existe, se essas coisas não estão unificadas em um sistema metafórico, então por que exercem tamanho poder simbólico sobre nós? p. 226-7

            
Teria sido este o perigo que senti o tempo todo, o gatilho do meu medo? Mesmo enquanto admitia isto, eu já estava me rendendo, e me pareceu que as grandes lições da minha vida foram todas elas aprendidas através da renúncia ao medo. p. 228


- Quando o mundo dos homens cair em ruínas, a beleza tomará conta de tudo. As árvores crescerão novamente onde havia apenas ruas; as flores recobrirão os campos que são agora um pantanal de choupanas. Este será o propósito do mestre satânico, ver a relva selvagem e as densas florestas cobrirem todos os vestígios das grandes cidades até que nada permaneça delas.
- E por que chama tudo isto de satânico? Por que não chamar de caos? Pois é isto o que seria.
- Porque este é o nome que os homens dariam. Eles inventaram Satã, não foi? Satânico é apenas o nome que eles dão ao comportamento daqueles que tentam perturbar o ordenado mundo no qual desejam viver. [...] É claro que Deus não é necessariamente antropomórfico. Nem tampouco, o que, em nosso colossal egocentrismo e sentimentalismo, poderíamos chamar de “uma pessoa decente”. Mas pode existir um Deus. Satã, contudo, foi uma invenção humana, um nome dado às forças que procuram aniquilar a ordem civilizada das coisas. O primeiro homem a estabelecer as leis - seja ele Moisés ou algum antigo rei egípcio como Osíris - foi também o criador do diabo. O diabo é aquele que tenta alguém a quebrar as leis. E nós somos verdadeiramente satânicos porque não obedecemos a nenhuma lei que proteja o homem. Então por que não fazer a subversão total? Por que não fazer uma fogueira do mal para consumir todas as civilizações da terra? p. 261-2

            
Não sei por que continuo. Eu não busco a verdade. Não acredito nela. Não espero que você me revele nenhum antigo segredo, qualquer que seja ele. Mas acredito em alguma coisa. Talvez simplesmente na beleza do mundo onde vivo ou na própria vontade de viver. p. 264


[...] toda a velha poesia fazia sentido quando se olhava para alguém a quem se amou. p. 275


Que é bom, que faz algum bem, que contém alguma bondade! Meu Deus, mesmo se este mundo fosse inteiramente desprovido de sentido, certamente ainda haveria lugar para a bondade. É bom comer, beber, rir... estar junto... p. 279


Pouquíssimos seres neste mundo realmente buscam o conhecimento. Mortais ou imortais, poucos realmente questionam. Ao contrário, eles geralmente tentam extrair do desconhecimento as respostas que já modelaram em suas próprias mentes - justificativas, confirmações, fórmulas reconfortantes sem as quais não poderiam continuar vivendo. Questionar realmente é abrir a porta para um furacão. A resposta pode destruir a indagação e o questionador. p.294


Fala-se muito neste século sobre a nobreza do selvagem, sobre a força corruptora da civilização, sobre o modo como devemos encontrar nosso caminho de volta para a inocência perdida. Bem, isto na verdade é bobagem. Povos verdadeiramente primitivos podem se revelar monstruosos nas suas crenças e expectativas. Eles não podem entender a inocência assim como as crianças. Mas a civilização finalmente produziu homens que se comportam inocentemente. Pela primeira vez eles olham ao redor de si mesmo e dizem: “Mas que diabo é tudo isto aqui?” p. 294

            
Ser ateu é provavelmente o primeiro passo para a inocência, libertar-se da sensação de pecado e subordinação, do falso pesar pelas coisas destinadas a serem perdidas. p. 295


Mas, aos quarenta, já vivera o bastante para saber que a maioria das pessoas que encontramos pelas tabernas podem parecer interessantes no início, mas depois tornam-se insuportavelmente aborrecidas. p. 309


E eu sabia apenas o que todos os homens sabem, que o ciclo do inverno e da primavera, de todas as coisas que crescem, contém no seu próprio interior alguma sublime verdade que restaura sem necessidade de mitos ou linguagem. p. 316

            
Enquanto o Império Romano aproximava-se do seu fim, todos os antigos deuses do mundo pagão passaram a ser vistos como demônios pelos cristãos em ascensão. Era inútil dizer a eles, enquanto os séculos passavam, que seu Cristo nada mais era do que um outro Deus da Floresta, morrendo e ressuscitando, assim como Dionísio ou Osíris tinham feito antes dele, e que a Virgem Maria era na verdade a Boa Mãe novamente entronizada. Era deles uma nova era de crença e convicção, e nela nós nos tornamos os demônios, afastados do que eles acreditavam, enquanto o antigo conhecimento era esquecido ou mal compreendido. p. 355


E no mundo de hoje o vampiro é apenas um Deus Maligno. Ele é um Filho das Trevas. Ele não pode ser outra coisa além disso. Se ele exerce algum poder de atração sobre a mente dos homens é apenas porque a imaginação humana é um lugar secreto povoado de memórias primitivas de desejos inconfessáveis. A mente de cada homem é um Jardim Selvagem, no qual florescem e morrem todos os tipos de criaturas, onde cânticos são entoados e coisas imaginadas, para serem depois todos rejeitados e condenados. p.356

            
Velhas verdades e antigas magias, revolução e invenção, tudo conspira para desviar nossa atenção da paixão que, de uma maneira ou de outra, termina por nos derrotar a todos. p. 377


Os cientistas de hoje são médicos-feiticeiros eternamente em guerra um contra o outro. Nunca estão de acordo, mesmo nas questões mais elementares. Você teria de espalhar este pedacinho de pele sobrenatural para todos os microscópios do mundo e mesmo assim provavelmente o público não acreditaria em uma só palavra. p. 407


Agora eu sabia tudo aquilo que não encontrara nas páginas dos livros que lera sobre os músicos de rock - este louco casamento entre o primitivo e o científico, este frenesi religioso. Nós, sem dúvida, estávamos no antigo bosque. Todos nós estávamos com os deuses. p. 414

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