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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que o Tio Sam realmente quer - Noam Chomsky, 1999.


Li esse livro como demanda da faculdade, e posso dizer que foi um soco no estômago. É um estudo revelador sobre as ações norte-americanas no período do pós-guerra (2ªGM), sobre as intervenções destes no mundo todo, sobre o apoio clandestino a uma série de ditaduras e conflitos como nos casos da Nicarágua, El Salvador, Panamá, Guatemala, Sudeste Asiático, enfim, pelo mundo todo; intervenções que contaram com verdadeiras atrocidades ao ser humano.

Dentre tantos, deparei-me com o absurdo que sucede. É um trecho do Estudo de Planejamento Político 23 [EPP 23], elaborado em 1948, pelo Departamento de Estado dos EUA, redigido pelo então encarregado George Kennan. Na verdade é absurdo, mas nem tanto. Nem tanto, porque a gente já sabe bem como funcionam as coisas por trás dos panos, e ficar chocado não é exatamente a reação.

Esse documento foi concebido como ultra secreto, mais como um diálogo entre os estrategistas americanos do pós-guerra, que objetivavam claramente a hegemonia e monopólio da economia mundial. Essa história dos EUA dominar o mundo parece meio clichê já, mas é interessante perceber como eles realmente estavam articulados no sentido de elaboração de metas e estratégias de dominação, no sentido de ações concretas, para que a gente saia um pouco daquele plano de idéias vagas de conspiração.


Segue um trecho:

Precisamos parar de falar de vagos e irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor. 

"Seguindo essas mesmas linhas, numa reunião de embaixadores americanos na América Latina, em 1950, Kennan observou que a maior preocupação da política externa norte-americana devia ser 'a proteção das nossas (isto é, da América Latina) matérias-primas. Devemos combater a perigosa heresia que, segundo informava a Inteligência americana, estava se espalhando pela América Latina: “A idéia de que o governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo'. Os estrategistas americanos chamam esta idéia de comunismo. [...] se elas apóiam tal heresia, elas são comunistas."




Ficha de leitura completa:



Os objetivos principais da política externa dos EUA

>> A proteção do nosso território.


A relação entre os EUA e os outros países remonta às origens da história da América, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de águas, comecemos então por aí. Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos rivais industriais, aos EUA ela propiciava enormes benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que triplicou. p. 9

Aqueles que determinam a política norte-americana sabiam muito bem que os EUA sairiam da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que, durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo do pós-guerra. p. 9-10

>> A “Grande Área”


[...] grupos de estudos do Departamento de Estado e do Conselho de Relações Exteriores desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que eles denominaram a “Grande Área” [se possível o mundo inteiro], para que esta fosse subordinada às necessidades da economia norte-americana.  A divisão das funções e setores específicos da nova ordem mundial seria a seguinte:

- Países industrializados: grandes oficinas, trabalhando sob a supervisão norte-americana.

- Terceiro Mundo: fonte de matérias-primas e mercado consumidor para as sociedades industriais capitalistas.

 p. 15-16

A Guerra do Vietnã emergiu da necessidade de garantir esse papel de serviçal. Os vietnamitas nacionalistas não quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaça não era a de que eles iriam conquistar alguém, mas que eles poderiam dar um exemplo perigoso de independência nacional, que inspiraria outros países na região. p. 16

>> A restauração da ordem tradicional


Os estrategistas do mundo pós-guerra logo perceberam que ia ser imprescindível, para o bem das empresas americanas, que as outras sociedades ocidentais se refizessem dos prejuízos da guerra, para que pudessem importar mercadorias manufaturadas dos EUA, e assim fornecerem oportunidades de investimentos. p. 18

A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominação das empresas, com a divisão e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da reconstrução sendo colocado inteiramente nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres. p. 18

[...] isso requeria extrema violência, mas, entre outras, isso era feito por meio de medidas mais suaves, como subverter eleições ou esconder alimentos extremamente necessários. p. 18

Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a “ameaça” na Europa não era a agressão soviética, mas a resistência anti-fascista operária e camponesa com seus ideais democráticos radicais, o poder político e a atração dos partidos comunistas locais. p. 19

Outro aspecto da repressão à resistência anti-fascista foi o recrutamento de criminosos de guerra, como Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na França. Lá, ele recebeu o apelido de “açougueiro de Lyon”. Embora ele tivesse sido responsável por crimes hediondos, o Exército dos EUA encarregou-o da espionagem na França. p. 23

Mais tarde, quando se tornou difícil, ou impossível, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles esconderam-se nos EUA ou na América Latina, muitas vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas. Lá, eles se tornaram conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos EUA, [...] traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores - ensinando a camponeses latino-americanos técnicas de tortura inventadas pela Gestapo. p. 23-24

>> Nosso compromisso com a democracia


[...] a principal ameaça à nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo do Terceiro mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os “regimes nacionalistas” que atendem às “exigências populares de elevação imediata dos baixos padrões de vida das massas” e produção de bens que satisfaçam às suas necessidades básicas. p. 24

As metas: evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um golpe de sorte eles chegassem ao poder, retirá-los e instalar ali governos que favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produção para exportação e o direito de remessa de lucros para fora do país. p. 24-25

Os EUA esperam contar com a força e fazer alianças com os militares, de modo que se pode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do controle. p. 25

Outro problema apontado nesses documentos secretos, é o excessivo liberalismo dos países do Terceiro Mundo [...], onde os governos não estão suficientemente comprometidos com o controle de idéias, restrições de viagens e onde o sistema judicial é tão deficiente que exige prova para acusação de crimes. 25-26

[...] ligeira e superficial encenação de interesse humano em relação aos trabalhadores → efeito psicológico. [...] para manter as massas da América Latina na linha, “há que adulá-las um pouco, para fazê-las pensar que você gosta delas”. p. 26

Somos radicalmente opostos à democracia se seus resultados não podem ser controlados. O problema com as democracias verdadeiras é que elas podem fazer seus governantes caírem na heresia de responderem às necessidades de sua própria população, em vez das dos investidores norte-americanos. p. 26-27

[...] enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro é com a “empresa capitalista privada”. p. 27

>> A ameaça do bom exemplo


Desde a Revolução Bolchevique de 1917, até a queda dos governos comunistas do Leste Europeu, no final da década de 1980, era possível justificar qualquer ataque norte-americano como defesa contra a ameaça soviética. p. 29

Os estrategistas norte-americanos, desde fins dos anos 1940, até os dias de hoje, têm advertido que “uma maçã podre pode estragar todo o lote”. p. 31

[...] o que os EUA querem é “estabilidade”, segurança para “as classes dominantes e liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos democráticos formais, ok. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. p. 32

A menos que você entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro Mundo, a política externa norte-americana parece ser uma série de erros ocasionais, inconsistentes e confusos. Na verdade, nossos líderes têm sido mais que bem-sucedidos, dentro dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a eles atribuídas. p. 36

Devastação no exterior

>> Nossa política de boa vizinhança


Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos inteiramente de lado a preocupação com os “objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização?” p. 37

“a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos latino-americanos que torturam seus cidadãos”. Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio. p. 37

[...] há estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana, ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. p. 37

A Aliança para o Progresso fortificou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, [...] a produção de carne aumentou, enquanto o consumo de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo produz um “milagre econômico” onde o PNB sobe enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular inevitavelmente aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. p. 38

O primeiro passo é o uso da polícia [...]. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército, é tempo de derrubar o governo. p. 39

Os países que tentaram inverter as regras tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos EUA. p. 39

Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. p. 39-40

Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra. p. 40-41

Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos, em geral para a maior parte da população, etc. p. 41

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas. p. 42

>> O bandido de aluguel do mundo


Nós devemos ser “mercenários bem dispostos”, pagos pelos nossos rivais por nossos amplos serviços prestados, usando nosso “monopólio de poder” no “mercado de segurança” para manter “nosso controle sobre o sistema econômico mundial”. Deveríamos administrar um plano de proteção global, vendendo “proteção” para outras potências ricas, que nos pagariam uma “recompensa de guerra”. p. 97

Quando o Estado está comprometido com tais políticas, deve de alguma forma buscar uma maneira de distrair a população, para impedi-la de ver o que está acontecendo ao seu redor. Não há muitas maneiras de fazer isso. As mais comuns são inspirar medo a inimigos terríveis que estão prestes a nos subjugar e reverenciar nossos grandes líderes, que nos salvam a tempo do desastre. p. 98

Essas não são leis da natureza. Os processos e as instituições que as engendram podem ser mudados. Mas isso exigiria profundas mudanças culturais, sociais e institucionais que não aconteceriam a curto prazo, inclusive mudanças nas estruturas democráticas, que vão além da seleção periódica de representantes do mundo empresarial para dirigir os negócios nacionais e internacionais. p. 99

Lavagem cerebral interna

>> Como funcionava a Guerra Fria


Naturalmente, tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de gerenciamento global, chamado Guerra Fria, foi estabelecido. p. 102

No lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções na Europa Oriental (...). No lado americano, as intervenções eram no mundo inteiro, refletindo o status alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da história. p. 103

Cada superpotência controlava seu inimigo principal - sua própria população - aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. p. 103

Numa avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito entre a URSS e os EUA, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência em seu próprio domínio. p. 104

Entretanto, se esta fase singular terminou, os conflitos Norte-Sul continuam. Um dos lados pode ter se retirado do jogo, mas os EUA procedem como antes - na realidade mais livremente - com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. p. 105

>> A guerra contra certas drogas

Um dos substitutos do extinto Império do Mal tem sido a ameaça representada pelos traficantes de drogas da América Latina. p. 106

Assim como a ameaça soviética, tais inimigos fornecem uma boa desculpa para a presença militar americana onde haja atividade rebelde ou outros distúrbios.
Assim, internacionalmente, “a guerra às drogas” fornece um pretexto para intervenções. Internamente tem pouco a ver com as drogas, mas muito a ver com a distração da população, aumentando a repressão nos centros urbanos e apoiando o ataque às liberdades civis. p. 107

A estreita correlação entre o comércio de drogas e o terrorismo internacional não é nenhuma surpresa. As operações clandestinas necessitam de muito dinheiro, que deve ser lavado. E elas (as operações) precisam de criminosos eficientes. E por aí vai. p. 112

>> Socialismo, o falso e o verdadeiro

Pode-se questionar o significado do termo “socialismo”, mas se ele tem algum significado, este é, antes de tudo, o controle de produção pelos próprios trabalhadores, não pelos donos e dirigentes que os comandam e tomam decisões, seja em empresas capitalistas ou em Estados totalitários. p. 118

Em qualquer significado mais profundo do termo socialismo, os bolcheviques apressaram-se, mais uma vez, em destruir os componentes socialistas nele existentes. Desde então, nenhuma divergência socialista foi permitida. p. 118

Os bolcheviques chamaram seu sistema de socialista para explorar o prestígio moral do socialismo.
O Ocidente adotou a mesma prática por uma razão oposta: difamar ideais libertários, associando-os com os calabouços bolcheviques para minar a crença popular de que seria possível o progresso em direção a uma sociedade mais justa (...). p. 120


>> A mídia

Sejam chamadas de “liberais” ou de “conservadoras”, as principais mídias são grandes empresas pertencentes e interligadas a conglomerados maiores ainda. p. 120

(...) “vazamento de informações”, por exemplo, são amiúde maquinações produzidas enganosamente por autoridades, em cooperação com a mídia, que finge nada saber. p. 121

Para servir aos interesses dos poderosos, a mídia deve apresentar um quadro toleravelmente realista do mundo. p. 121-122

A mídia é apenas uma parte de um sistema doutrinário maior: as outras partes são os jornais de opinião, as escolas e as universidades, as pesquisas acadêmicas, e assim por diante. p. 122

Esses setores do sistema doutrinário servem para distrair a grande massa e reforçar os valores sociais básicos: a passividade, a submissão às autoridades, as predominantes virtudes da avareza e da ganância pessoal, a falta de consideração com os outros, o medo de inimigos reais e imaginários. p. 123

O futuro

>> As coisas mudaram

É importante reconhecer o quanto o cenário mudou nestes últimos trinta anos em conseqüência dos movimentos populares, que se organizaram de forma solta e caótica em torno de certas questões como os direitos civis, a paz, o feminismo, o meio ambiente e outros temas de interesse humano. p. 125

Atualmente, a intervenção clássica não é mais considerada uma opção. Os métodos limitam-se ao terror clandestino, mantido oculto da população interna, ou à demolição “rápida e fulminante” de “inimigos muito mais fracos”, após uma enorme campanha de propaganda, expondo-os como monstros de poder indescritível. p. 126

Em outras áreas também há mais abertura e entendimento, mais ceticismo e questionamento da autoridade. Logicamente, as últimas tendências são uma faca de dois gumes. Elas podem levar ao pensamento independente, à organização popular e a pressões mais que necessárias por transformações institucionais. Ou podem fornecer uma base popular de pessoas amedrontadas para novos líderes autoritários. p. 127

>> O que se pode fazer

(...) uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incomoda é não ser passivo e aquiescente. (...) Manifestar-se, escrever cartas e votar podem ser ações bastante significativas, dependendo da situação. Mas o ponto principal é ser persistente e organizado. p. 127-128

Pode-se também fazer sua própria pesquisa. Não confie apenas na história convencional dos livros e textos de ciência política. p. 129



Referência:

CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. 

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Cultura do medo - Barry Glassner, 1999

Esse livro inspirou o documentário do Michael Moore, Tiros em Columbine, vencedor do Oscar de 2003. 
Eu iria além a respeito de ter "inspirado", porque me parece que a obra do Moore é o livro na forma de documentário, com mais ênfase em alguns dos aspectos de que o livro trata.
Enfim, o autor é um sociólogo, e sua obra vem acompanhada de extensas notas referenciais, com todas as fontes que utilizou em sua pesquisa.
O tema central do livro são os medos que se arraigaram em nossa sociedade, medos que na maioria das vezes são pouco ou nada refletidos e quase sempre infundados, plantados pelos diversos tipos de mídia na forma de alarmismos que fazem com que nós nos sintamos cada vez mais ameaçados, vulneráveis e inseguros.
Obra fundamental para nos ajudar no entendimento e compreensão do nosso contexto sócio-cultural, faz com que afinemos nossa crítica em relação as informações externas que nos chegam.

GLASSNER, Barry. Cultura do medo : por que tememos cada vez mais o que deveríamos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003. 342 p.


Tão importante quanto o que se diz na mídia são os silêncios, o que não se diz. p. 17

Os telejornais sobrevivem com base em manchetes alarmistas. Nos noticiários locais, onde os produtores vivem à custa da máxima “se tem sangue, não tem pra ninguém”, histórias sobre drogas, crimes e desastres constituem a maioria das notícias levadas ao ar. p. 31

A resposta sucinta a por que os americanos cultivam tantos medos ilegítimos é a seguinte: muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças emocionais e nos fornecem substitutos simbólicos. Este livro fornece uma resposta mais extensa, identificando os verdadeiros vendilhões dos nossos medos, seus métodos de marketing e os incentivos que o nosso saldo precisa adquirir. p. 40

Grandes porcentagens não têm necessariamente grandes números por trás delas. p. 51

Relativamente a quase todos os temores americanos atuais, em vez de se enfrentar problemas sociais perturbadores, a discussão pública concentra-se em indivíduos perturbados. p. 53

Veja uma quantidade suficiente de brutalidade na TV e você começará a acreditar que está vivendo em um mundo cruel e sombrio, em que você se sente vulnerável e inseguro. p. 100

O medo cresce, acredito, proporcionalmente à culpa inconfessa. Ao se cortar gastos com programas educacionais, médicos e antipobreza para os jovens, comete-se grande violência contra eles. Porém, em vez de se enfrentar a responsabilidade coletiva, projeta-se a violência contra os próprios jovens e contra estranhos que se imagina que irão atacá-los. p. 137

Esse tipo de asserção ratifica uma observação atribuída a Harry Truman: “Não há nada novo no mundo exceto a história que não se conhece”. p. 140

As crianças podem apresentar uma variação biológica em seus níveis de atividade. No entanto, se for para considerar um alto nível de atividade como distúrbio de déficit de atenção, isso dependerá da nossa concepção em relação à sala de aula ideal. [Kenneth Gergen, 1997]
A nossa consideração também depende da prática médica ideal, como sugerem outros cientistas sociais e especialistas em ética médica. Do ponto de vista dos convênios de saúde da década de 1990, esse ideal às vezes resume-se a gastar o mínimo possível para eliminar os sintomas de um paciente. Por que proporcionar longas terapias individuais ou familiares para tratar de problemas de crescimento ou emocionais da criança ou problemas da família quando, com uma simples receita, é possível se livrar de comportamentos que perturbam os pais e professores? p. 144

Provavelmente a dependência dos políticos em relação à indústria farmacêutica para o levantamento de fundos para as campanhas eleitorais e a dependência da imprensa em relação à mesma indústria para receitas publicitárias têm algo a ver com aquelas formas de consumo abusivo que eles deploram. p. 243

Não deveria haver mistério sobre onde grande parte do dinheiro e força de trabalho pode ser encontrada - na própria cultura do medo. Desperdiçamos dezenas de bilhões de dólares e horas de trabalho todos os anos com perigos basicamente míticos, como fúria no trânsito, em celas de prisão ocupadas por pessoas que representam pouco ou nenhum perigo para os outros, em programas idealizados para proteger jovens de perigos que poucos deles jamais enfrentam, em indenizações para vítimas de doenças metafóricas e em tecnologias para fazer com que as viagens aéreas - que já são mais seguras do que outros meios de transporte - fiquem ainda mais seguras.
Podemos optar por redirecionar alguns desses recursos para combater perigos sérios que ameaçam grande número de pessoas. Na época das eleições, podemos escolher candidatos que apresentam programas em vez de alarmismos.
Ou podemos continuar a acreditar em invasores marcianos. p. 331

terça-feira, 17 de maio de 2011

O novo século - Eric Hobsbawm, 1999

Esse livro é uma entrevista de Eric Hobsbawm concedida ao jornalista italiano Antonio Polito. A entrevista é dividida em alguns blocos principais que abordam questões sobre guerra, política, capitalismo, globalização e até mesmo meio ambiente. A entrevista busca, principalmente, a opinião do historiador sobre os possíveis e prováveis rumos da humanidade no novo século  XXI. Para quem não conhece, Eric Hobsbawm é um renomado historiador, autor de obras fundamentais que constam na bibliografia obrigatória dos currículos de História. Atualmente, Hobsbawm está com 93 anos [tinha em torno de 80 quando foi entrevistado], o que o dota de experiência e autoridade incríveis, aliadas ainda a uma intelectualidade invulgar, uma combinação de elementos que, como não poderia deixar de ser, resulta em perspectivas ampliadas e reflexivas que fazem com que nós, leitores, mudemos não só os rumos de nossos pensamentos, mas também o ponto de onde observamos o mundo. Segue a ficha de leitura.

HOBSBAWM, E. J. O novo século: entrevista a antonio polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 196 p.



Mas a previsão do futuro deve necessariamente basear-se no conhecimento do passado. Os acontecimentos futuros precisam ter alguma relação com os do passado, e é nesse ponto que intervém o historiador. Ele não está em busca de lucros, no sentido de que não explora seus conhecimentos para assegurar ganhos. O historiador pode tentar identificar os elementos relevantes do passado, as tendências e os problemas. Por isso, é preciso que nos arrisquemos a fazer previsões, mas tomando certos cuidados. Entre os quais, tendo sempre a consciência do perigo de macaquear o cartomante. Precisamos entender que, na prática e por princípio, grande parte do futuro é inteiramente inacessível. Creio que são imprevisíveis os acontecimentos únicos e específicos, ao passo que o verdadeiro problema para os historiadores é entender o quão importantes eles são ou podem vir a ser. Às vezes, podem se mostrar significativos do ponto de vista da análise, mas nem sempre é assim. p. 8

            Eu fiz uma escolha ao definir 1991 como o final do Século Breve (de certo modo, foi bem mais fácil estabelecer seu início em 1914), mas esta não era a única possibilidade quando escrevi meu livro em 1994. Eu escolhi essa data por ser mais conveniente. As datas exatas sempre são questões de conveniência histórica, didática ou jornalística. p. 9

           Só é possível saber com exatidão o fim de um período quando este já terminou há muito tempo. p. 10


Em última análise, em que consiste a lição do marxismo?

            Acima de tudo, o fato de ter compreendido que determinada etapa histórica não é permanente, que a sociedade humana é uma estrutura bem-sucedida porque é capaz de mudança e, assim, o presente não é seu destino final. Segundo, ter estudado o modus operandi, a maneira de funcionamento de um sistema social específico e, por que motivo ele gera ou deixa de gerar as forças de mudança. [...] Por esse motivo, a história que mais me interessa é a analítica, ou seja, aquela que procura analisar o que ocorreu em vez de simplesmente descobrir o que aconteceu. Isto não siginifica que possa ser usada para se compreender exatamente de que modo o mundo desenvolveu-se de certa maneira, mas ela pode nos dizer de que modo os vários elementos reunidos no interior de uma sociedade contribuem para a criação de um dinamismo histórico, ou inversamente, não conseguem provocar tal dinâmica.  p. 13


E existem diferenças na maneira como a guerra é travada?

            Existem e são diferenças enormes. Algumas eram previsíveis, outras nem tanto. A primeira é a transformação da guerra ocasionada pelos avanços tecnológicos. No início, nosso temos é que estes levassem a conflitos mais sanguinolentos e devastadores. No entanto, desde a Guerra do Golfo, sabemos que a tecnologia avançada permite um poder de destruição muito mais preciso e seletivo. As bombas inteligentes são capazes de escolher determinados objetivos e evitar outros. Colocando de lado os incidentes operacionais e os riscos de “fogo amigo”, essa nova realidade é importante porque restaura a distinção entre combatentes e não-combatentes, distinção que havia desaparecido no século XX quando as guerras envolveram cada vez mais as populações civis.
            Do outro lado, porém, isto possibilita o recurso cada vez mais freqüente e caprichoso aos meios de destruição. Para que acredita ser tão poderoso a ponto de escolher exatamente o que destruir, torna-se mais fácil sucumbir à tentação de resolver problemas com bombardeios, como ocorreu no Iraque. Neste sentido, os avanços tecnológicos aumentam o risco de conflitos armados, ao menos por parte das nações com acesso às novas armas. Ao mesmo tempo, eles levam a uma subestimação dos riscos do que se costuma chamar de “danos colaterais”. Não estou me referindo apenas a pessoas mortas por engano, mas aos enormes danos causados à infra-estrutura que permite a uma determinada comunidade sobreviver e produzir. O fato de que não há risco de matar seres humanos em demasia poderia nos levar a considerar esta uma maneira bastante civilizada de conduzir uma guerra.
            Por fim, em um plano mais baixo surgiu um enorme hiato, o dos povos que não têm acesso à tecnologia de ponta; entre as guerras conduzidas por aviões voando a 15 mil metros de altitude e lançando bombas extremamente sofisticadas, e as guerras no solo, com combates corpo a corpo, no quais as pessoas se matam até mesmo com machados ou facões, como ocorreu na África central.
            No passado, os “guerrilheiros” estavam equipados com fuzis e metralhadoras; hoje possuem lançadores de foguetes e armas antiaéreas. Esta é outra conseqüência da Guerra Fria, que inundou o mundo com armamentos sofisticados. Ainda que no período não tenha havido guerras entre as potências, as indústrias continuaram produzindo armamentos, como se estivesse em curso uma mobilização geral. É evidente que, com o fim da Guerra Fria, este imenso arsenal tornou-se imediatamente disponível. [...] Atualmente o mundo está repleto de armas, possibilitando a proliferação de grupos armados independentes. Eles não estão necessariamente vinculados a nenhum governo, mas encontram-se prontos para entrar em combate. p. 19


Não me parece que os governos entrem em guerra porque esta é justa ou injusta. Claro, eles costumam justificar suas ações militares alegando que são legítimas de modo a conseguirem o apoio da opinião pública. É essencial que esta seja convencida. É decisivo apresentar a guerra de tal maneira que as pessoas a vejam como algo legítimo e justo. Porém, não é fácil citar exemplos históricos de governos que foram à guerra por outros motivos que não seus interesses nacionais. p. 24


            Atualmente, os EUA consideram-se uma potência com a missão de estabilizar o mundo e, portanto, obrigada a recorrer, sempre que necessário, a operações policiais internacionais. Por isso, precisam demonstrar que, se necessário, suas forças podem intervir em qualquer parte do globo, de modo a convencer potenciais inimigos fora da área da OTAN. p. 28

           
            O mundo não será viável se uma nação pode dizer simplesmente: “Sou poderosa o suficiente para fazer o que quiser, e por isso farei o que bem entender”. p. 30

            Precisamos distinguir entre os dois significados do termo “Estado nacional”. No sentido tradicional, refere-se a um Estado territorial sobre o qual o povo que nele vive, a Nação, tem um poder soberano. Este é o sentido do Estado nacional que surgiu com a Revolução Francesa e, em parte, com a Revolução Americana. Trata-se de uma definição política, e não étnica ou lingüística, do Estado: é um povo que escolhe seu governo e decide viver sob determinada Constituição e determinadas leis.
            Em comparação, o outro significado do termo é muito mais recente e consiste na idéia de que todo Estado territorial pertence a um povo específico, definido por determinadas características étnicas, lingüísticas e culturais - e que isso constitui a Nação. Segundo essa idéia, apenas a Nação pertence ao Estado nacional, e todos os outros não passam de minorias que, embora vivam no mesmo local, não fazem parte da Nação. p. 30-31


            Os mitos nacionais são um outro campo no qual precisamos distinguir entre o que vem de baixo e o que é imposto de cima. Esses mitos não surgem espontaneamente das experiências efetivas da população. Trata-se de algo transmitido por outros: por livros, pelos historiadores, pelos filmes e, atualmente, pelos produtores dos programas de televisão. Em geral, os mitos nacionais não fazem parte da memória histórica ou de uma tradição viva, com exceção daqueles casos nos quais o que se tornou um mito nacional era um produto da religião. p. 32

            Por algum motivo, considera-se uma vantagem, do ponto de vista da psicologia social, ser capaz de orgulhar-se de uma longa história. É por isso que o nacionalismo, a despeito de ser um fenômeno recente, invariavelmente alega ser muito antigo.O motivo é que uma velhice venerável satisfaz a necessidade de permanência e o direito de precedência em relação aos outros. Trata-se, portanto, de um fenômeno extremamente complexo, o qual podemos explicar apenas por aproximações, pois não há nenhuma interpretação isolada convincente. p. 37


            Essa tendência dos Estados territoriais para ampliar a capacidade de exatidão, conhecimento, tecnologia, poder e ambição prosseguiu de modo quase ininterrupto, mesmo através do período da política de liberalismo mercantil, até o final da década de 1960. Dois exemplos me ocorrem.
            Um deles é o extraordinário êxito, no século XIX, de todos os principais Estados no sentido de desarmar suas populações. Em outras palavras, eles conseguiram transferir para seus próprios órgãos o monopólio dos meios de coerção. Antes disso, era mais fácil desarmar os camponeses do que os nobres. O próprio Maquiavel discute exaustivamente esse problema. No século XIX, é de fato notável como a maioria dos Estados consegue impedir que seus habitantes andem armados. Uma das raras exceções foram os EUA que, mesmo tendo condições para tal, preferiram não fazer isso. Mas no Canadá houve o desarmamento.
            O outro exemplo é a ordem pública, que é parte do mesmo fenômeno. O nível de ordem pública alcançado nos países europeus mais desenvolvidos é um fenômeno histórico extraordinário.
            Há ainda outro elemento, devido não tanto ao estabelecimento da democracia, e sim à participação das pessoas comuns no processo político: trata-se da lealdade e da subordinação voluntárias dos cidadãos ao seu governo. Esta não era uma lealdade às elites, mas ao Estado e à nação. As guerras baseadas no alistamento obrigatório não teriam sido possíveis sem isto. Cabe lembrar aqui o que Thomas Hobbes escreveu no século XVII: a única coisa que nenhum Estado, nem mesmo o Leviatã, pode fazer é obrigar as pessoas a matarem ou estarem dispostas a ser mortas. No entanto, os Estados modernos conseguiram fazer exatamente isso, e não poucas vezes. Embora muitas vezes tenham conseguido isso por meio do alistamento compulsório, também o fizeram apelando a cada cidadão e convencendo-o de que, se ele se identificasse com a coletividade, devia estar pronto para o ato supremo de abdicar de sua liberdade e de sua vida. A obediência voluntária ao Estado foi um elemento essencial na capacidade de mobilizar as populações, e também na de democratização.
            Esse processo desenrolou-se ao longo de séculos e alcançou seu ápice na década de 1960, quando todos os países do mundo, até mesmo os de capitalismo mais vançado, estruturaram-se sob a forma de Estados dotados dos mais amplos poderes. E isto vale sobretudo para os EUA. p. 41

            O poderio do Estado moderno alcançou seu ápice quando o protesto social foi de algum modo institucionalizado como parte do processo político normal, quase como um ritual. p. 42

            Uma das grandes questões que serão colocadas pelo século XXI é a da interação entre o mundo onde o Estado existe e aquele onde ele deixou de existir.
            Não podemos dizer se o mundo irá se tornar um local ainda mais difícil de ser administrado, por esse motivo ou pelo problema que mencionei antes, isto é, o fim da obediência das populações a seus governos. Durante a maior parte da história, sempre houve uma suposição generalizada de que os cidadãos obedeceriam a um governo efetivo, qualquer que fosse ele, e contasse ou não com a aprovação geral. Claro que, muitas vezes, o governo era respeitado por ser forte, mas, em outras, esse respeito baseava-se em uma idéia expressa por Hobbes, a de que qualquer governo eficaz é melhor que nenhum governo. p. 45


Em suma, o que gostaria de ressaltar é que a grande maioria dos povos no mundo aceitou a idéia de serem governados. p. 46

            Porém, de modo a explicar a distinção entre aparência e realidade, creio que precisamos reavaliar o que entendemos por “globalização”, e o que ela pode ou pretende alcançar. Vamos imaginar por um instante o estágio mais avançado de globalização: uma situação na qual todos os habitantes do planeta teriam, em qualquer local, acesso aos mesmos bens e serviços, supondo que tivessem os mesmos recursos e o mesmo dinheiro para gastar. Em outras palavras, viver na Antártida não seria mais problemático que viver em Roma ou Nova York. Se admitirmos que esses bens e serviços poderiam ser produzidos em volume suficiente para satisfazer toda a demanda, as pessoas não seriam afetadas por sua localização geográfica. Bem, ainda falta muito para chegarmos a esse ponto. Sobretudo por motivos práticos, pois as pessoas não dispõem dos mesmos recursos, algumas são ricas, outras são pobres, ou então o poder de que dispõem é desigual, ou, ainda, algumas são livres e outras estão em prisões. Isto, porém, nada tem a ver com a dimensão global: poderia ocorrer mesmo em uma cidade ou um país isolados e, portanto, não interessa aqui para os objetivos de nossa hipótese teórica.
            O problema é que, no caso de alguns produtos ou serviços, essa disponibilidade absoluta é impossível, mesmo em uma situação de total globalização. Os economistas estudaram esses “bens de prestígio” (positional goods) que, por sua própria natureza, existem em quantidades limitadas ou mesmo são coisas únicas. É possível assegurar que todos tenham o mesmo acesso à Coca-Cola, mas não a um ingresso para uma ópera no La Scala. Pela sua própria natureza, os ingressos para o La Scala são limitados, e não há maneira de produzir um número maior deles. Evidentemente, na prática poderíamos resolver o problema de outro modo: por exemplo, facilitando o acesso de todos por meio de discos com gravações das óperas montadas no La Scala. Mas não é a mesma coisa, tanto em termos teóricos como na realidade.
            Assim, em certo sentido, a globalização implica um acesso mais amplo, mas não equivalente para todos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avançada. Do mesmo modo, os recursos naturais são distribuídos de forma desigual. Por tudo isso, acho que o problema da globalização está em sua aspiração a garantir um acesso tendencialmente igualitário aos produtos em um mundo naturalmente marcado pela desigualdade e pela diversidade. Há uma tensão entre esses dois conceitos abstratos. Tentamos encontrar um denominador comum acessível a todas as pessoas do mundo, a fim de que possam obter coisas que naturalmente não são acessíveis a todos. O denominador comum é o dinheiro, isto é, outro conceito abstrato.
            Ao mesmo tempo, o processo técnico da globalização requer um elevado grau de padronização e homogeneização. Um dos grandes problemas do século XXI será definir qual o nível máximo de homogeneidade, além do qual haveria uma reação aversiva, e em que medida esse processo pode ser compatibilizado com a diversidade presente no mundo. p. 74-75

            Minha impressão é que, daqui a meio século, quando se debruçarem sobre a nossa época, os historiadores provavelmente irão dizer que a última parte do breve século XX terminou com duas coisas: o colapso da URSS e a bancarrota do fundamentalismo neoliberal, que dominou as políticas governamentais a partir do final da Época de Ouro. A crise global de 1997-98 pode muito bem ser considerada o momento decisivo dessa virada. p. 80

            Não há nada mais natural que uma economia baseada na competição tenda para o monopólio. A competição capitalista leva a uma concentração de capital. p. 86

            Mas, de maneira geral, hoje a população mundial é três vezes maior do que no início do século XIX, e todas essas pessoas são fisicamente mais fortes, mais altas, mais saudáveis e vivem por mais tempo. Sofrem menos fome e necessidades, desfrutam de uma renda maior e têm um acesso incomparavelmente maior a bens e serviços, inclusive aqueles que garantem maiores oportunidades na vida, como a educação. Isto vale até mesmo para os países mais pobres. Afinal, não houve uma situação de fome na índia desde 1943. Em quase todo o mundo, afora algumas raras exceções, a fome deixou de ser algo com que os seres humanos são obrigados a conviver.
            Isto significa que, pela primeira vez, a produção pode ser posta em sintonia com as demandas da massa da população. Nos países desenvolvidos, os seres humanos já não vivem sob o signo da carência, e podem escolher entre as coisas que desejam, em vez de terem de escolher entre não ter o suficiente para comer e não ter um teto para se abrigar. Elas não precisam mais se preocupar com o pão de cada dia, e têm apenas de decidir se querem seus sanduíches com pão italiano ou croissant, presunto cru ou cozido e tomates secos ou frescos.
            Com isso, houve uma transformação da economia. Não só em termos dos bens materiais, mas também dos serviços. Basta considerar o acesso à cultura, a quantidade de livros e discos lançados, o número de pessoas que podem consumir entretenimento e informação a qualquer hora do dia. É a primeira vez que isso ocorre na história da humanidade.
            Nos países desenvolvidos, até os mais pobres e miseráveis vivem incomparavelmente melhor que seus antepassados. Eis aí uma das razões pelas quais o neoliberalismo do “livre-mercado” obteve tanto sucesso, ainda que temporário. Seu objetivo não era eliminar a pobreza ou promover a redistribuição da riqueza ou a difusão da justiça social, mas, apesar de toda a injustiça existente, os pobres tendem a aceitar a situação, pois até mesmo eles dispõem de mais recursos.
            Em suma, é imenso o crescimento da produção e da disponibilidade de riqueza, e a maior parte da humanidade acabou sendo beneficiada. Esta é uma característica do século XX que deve ser levada em conta quando se faz uma avaliação daquele que foi, ao mesmo tempo, o melhor e o pior de todos os séculos. Nele morreram mais pessoas do que em qualquer outro século, mas no seu final existem mais pessoas vivendo melhor, com esperanças e oportunidades maiores. p.96-97

            A grande novidade é que, de todos os fatores de produção, os seres humanos são cada vez menos necessários. E o motivo é que, em termos relativos, eles não produzem tanto quanto custam. Os seres humanos não foram criados para o capitalismo. E isso ocasiona efeitos negativos sobre a produção. O que, na minha opinião, temos de buscar é uma outra maneira de distribuir a riqueza produzida por uma quantidade cada vez menos de pessoas, que no futuro pode chegar a ser na verdade uma quantidade ínfima. p. 98

           
           O volume de riqueza hoje em mãos de alguns indivíduos é simplesmente assombroso. Em termos globais, a riqueza do 1% mais abastado do mundo é imensa. Como isso irá afetar a política? É difícil dizer. Nos EUA, já vimos que indivíduos particulares podem, com seus próprios meios, tanto financiar suas próprias campanhas à presidência como influir decisivamente na campanha de outros candidatos. Hoje, os ricos podem fazer aquilo que antes estava ao alcance apenas de grandes organizações coletivas. Não tenho certeza de que entendemos plenamente todas as implicações desse fenômeno. p. 100


            Evidentemente, houve várias fases na maneira pela qual a esquerda se distingui em relação à direita. No início, a esquerda lutou contra os governos monárquicos, absolutistas e aristocráticos, e em favor de instituições burguesas como o governos liberal e constitucional. Tratava-se, portanto, de uma esquerda moderada, mas que sempre esteve disposta a mobilizar as massas para seus objetivos políticos. Desde o começo de sua história, a esquerda estava pronta para se tornar revolucionária. [...]
            Durante grande parte do século XIX, portanto, a divisão era entre o partido da mudança e o da estabilidade, ou, em termos mais específicos, entre o partido do progresso e o partido da ordem. A esquerda estava do lado da mudança, e era favorável às transformações políticas e sociais. Na verdade, ainda usamos essa terminologia: até hoje as pessoas de esquerda continuam a se definir como “progressistas”.
            Essa unidade de intenções foi aos poucos erodida pelas mudanças na estrutura de classes da sociedade. A antiga aristocracia dirigente foi substituída ou dividiu o poder com a nova burguesia dominante, que não se opunha a certo grau de mudanças radicais. Assim, no século XX, e de maneira mais clara em sua segunda metade, alterou-se a natureza do conservadorismo. Ele deixou de ser apenas o partido da ordem e da estabilidade, e passou a apresentar aspectos novos.
            [...] Por isso, a tradicional diferença entre a direita e a esquerda, entre um partido da ordem e da estabilidade, e outro da mudança e do progresso, tornou-se inútil em termos conceituais. p. 102-104

            Desde a década de 1960, surgiu uma nova esquerda. O problema é que ela não possui base sólida em uma classe, tal como a esquerda operária, nem base eleitoral significativa. Ela nem sequer possui mais um projeto único. Vários dos movimentos que se consideram parte da esquerda tendem a se concentrar em questões muito específicas. p. 110


            Há outro aspecto na crise da esquerda: o declínio da política como instrumento confiável de transformação social. Tanto nos EUA como na Europa, as massas demonstram uma apatia cada vez maior em relação à política, não só em termos de participação ativa, mas até de mera disposição para votar. Elas parecem estar muito mais interessadas em seu extrato bancário, em suas férias e em seus jardins. A esquerda, por outro lado, é a própria encarnação da experiência coletiva da política e tem horror ao individualismo.

            Há outro fator ainda mais profundo que debilitou muito a esquerda. Em termos econômicos, trata-se da sociedade de consumi. Em termos intelectuais, é a identificação de liberdade e escolha individual, sem qualquer referência às conseqüências sociais. [...] O processo de privatização condiciona até mesmo o senso comum das pessoas e isto provocou um grande abalo na esquerda, que luta em favor de objetivos e persegue a justiça social. [...]
            A política democrática só existe em função e na mediada em que é possível organizar os indivíduos e fazer com que atuem coletivamente. Mas torna-se cada vez mais difícil mobilizar as pessoas; e isto vale para todos os movimentos políticos, não só para os partidos socialistas. p. 111


            Retrospectivamente, poderíamos dizer que o socialismo era um sonho utópico ou pouco mais que uma palavra de ordem, pois até a Revolução Russa nem mesmo a esquerda socialista havia considerado seriamente o que faria caso chegasse ao poder. Não havia nem sequer um debate sério sobre a maneira de socializar uma economia. Em geral supunha-se que ela poderia ser administrada pelo Estado com base no modelo proporcionado pelo capitalismo da época, no qual as atividades econômicas mais abrangentes já se encontravam nas mãos de organizações públicas. Em suma, a teoria socialista era uma crítica da realidade capitalista, e não um projeto efetivo para a construção de uma outra sociedade. p. 107


            A insegurança do emprego é uma nova estratégia para aumentar os lucros, reduzindo a dependência da empresa em relação à mão-de-obra humana ou pagando menos aos empregados. Na economia capitalista moderna, o único fator cuja produtividade não pode ser facilmente ampliada e cujos custos não podem ser facilmente reduzidos é o relativo aos seres humanos. Daí a enorme pressão para eliminá-los da produção [...]. p. 138



Não o assusta o poder da ciência? A possibilidade de clonar um ser humano, introduzir genes animais ou vegetais em um tomate; ou então a possibilidade de matar em uma guerra apenas acionando as teclas de um computador?

            Claro que me assusta. Não só pelo poder imenso que ela confere, mas também porque quase sempre os aprendizes de feiticeiros não sabem como usar esse poder. Se houvesse uma garantia de que as pessoas que tornam possível esse progresso também soubessem o que fazer com ele, como usá-lo em benefício da humanidade ou quando não usá-lo, então eu ficaria mais tranqüilo. Mas essa garantia não existe. Forças naturais imensas estão sendo manipuladas e nem sempre elas são perfeitamente conhecidas. E não há nenhuma regra ou instituição que diga o que fazer e o que não fazer. A única regra proporcionada pelo livre mercado, a otimização do crescimento econômico e do lucro, quase certamente irá produzir efeitos negativos. p. 151


            Claro que existem bons motivos econômicos para esse tipo de desenvolvimento. O turismo, por exemplo, Pode-se explicar aos povos africanos que seria melhor que não matassem os rinocerontes e os gorilas pois poderiam obter mais dinheiro com os turistas que viriam fotografá-los. Desse modo, alguns tentarão transformar certas partes do mundo em gigantescos parques temáticos. Mas será que isso é de fato possível em âmbito global? Será isso feito também para certos povos que de outro modo não sobreviveriam, tal como os animais? Não estou exagerando, essa é a discussão que vem ocorrendo em relação às tribos indígenas da floresta amazônica. A questão de como administrar o meio ambiente está cada vez mais deixando de ser um problema teórico e se tornando algo prático, exigindo respostas específicas. [...]
            Creio que, no século XXI, precisamos aprender a ver grandes partes do mundo tal como de fato são: ambientes semi-artificiais.[...]
            Em suma, devemos meter na cabeça que alterar a face da Terra não é algo que necessariamente leva a um desastre total. O meio ambiente pode ser modificado horizontalmente, e não apenas por drásticas oscilações verticais entre o bom e o ruim. p. 182-183


Devo admitir que qualquer compromisso político ou religioso, sempre que verdadeiro e intenso, tende a impor - não diria obrigações - mas uma predileção ou um preconceito favorável ao avanço da causa pela qual lutamos. Você percebe isso quando vê a própria relutância em criticá-la, quando reluta em aplicar a ela a mesma inteligência crítica com que costuma julgar outras causas. p. 189


[...] se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída.

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quinta-feira, 10 de março de 2011

As portas da percepção / Céu e Inferno - Aldous Huxley, 1954 - 1956


Esse livro, à grosso modo, trata da experiência no uso da mescalina, substância alucinógena extraída de um cacto. O autor, Huxley, fez uso dessa substância a fim de estudar o estado mental ao qual somos levados sob efeito da mescalina. Mas o livro traz uma proposta que vai além de um simples relatório de resultados e análises.  A obra tematiza o papel de todos os modificadores de consciência - sejam eles naturais ou químicos - na vida do homem, ao longo da história. Faz conexões com as religiões, e com os variados aspectos da vida em sociedade. Coloca questões interessantíssimas, sobre o que ele chama de céu e inferno, ou seja, um estado de transcendência mental e espiritual ao qual o usurário é levado por via do uso de alteradores / ampliadores dos sentidos. Huxley faz uma ligação entre o estado alterado de consciência e uma espécie de onisciência universal, um contato com a verdade absoluta do universo. Do mesmo modo, problematiza o conflito que tal estado encerra em si, na medida em que impõe ao homem um estado permanente de contemplação, o que impossibilitaria as ações fundamentais demandadas pela vida em sociedade. É curtinho, vale a leitura.



HUXLEY, Aldous. As portas da percepção; Céu e Inferno. Trad. Osvaldo de Araújo Souza. São Paulo: Globo, 2002. 169 p.

Quando cheguei à maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre0pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ – haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. [...] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos gnósticos da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.
[Henry Huxley – biólogo; inventor do termo agnóstico em meados do século XIX; avô de Aldous Huxley – Citado por Manuel da Costa Pinto no prefácio, p. 13]

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. p. 24


Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, Dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu – beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está ao nosso alcance; e isso subverte nosso senso de realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contado não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. p. 32-33

[...] importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. p. 41

E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? p. 47

[Em relação ao estado contemplativo que a mescalina proporcionar em contraposição ao estado ativo, da sobriedade]

Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. [...] seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais – por exemplo, quando se esforça em demais, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro -, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. p. 57

Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E na vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos serem humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais de percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos – o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos. 
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados. 
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida. A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalismo utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça. p. 66-67

O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atitude intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião – o álcool e as “pílulas inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”. 
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto mesmo as mais tolerantes jamais procuram converter a bebida ao cristianismo – isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de cerveja, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo. p. 72

Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta da Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender. p. 80



Céu e Inferno

A natureza primitiva guarda uma estranha similitude com esse mundo interior onde nossos desejos pessoais não são levados em conta nem são consideradas as preocupações constantes do homem em geral. p. 120

[...] Algo de natureza semelhante pode suceder após a morte. Depois de ter sido contemplado, de relance, o ofuscante esplendor da Realidade derradeira, e após ter vagado, de uma para outro lado, entre o céu e o inferno, a maioria das almas acabará por conseguir recolher-se àquela região mais tranqüila da mente onde lhe seja possível fazer uso dos seus e dos alheios desejos, recordações e predileções para construir um mundo bem semelhante ao que teve na Terra. p. 128

A pompa é uma arte visionária que tem sido usada, desde tempos imemoriais, como instrumento político. As suntuosas roupagens usadas por reis, papas e seus respectivos séquitos, militares e eclesiásticos, tinham uma finalidade bastante objetiva – impressionar as classes inferiores com um sentimento vívido da grandeza sobre-humana de seus senhores. Com o auxílio de belas roupas e de cerimônias solenes, a dominação de facto era transformada em reinado, não só de jure, mas até mesmo de jure divino. As coroas e tiaras; as variegadas jóias, cetins, sedas e veludos; os faustosos uniformes e vestimentas; as cruzes e medalhas; os punhos das espadas e os báculos; as plumas nos amplos chapéus e seus equivalentes clericais; aqueles enormes leques de penas que fazem com que qualquer audiência papal se pareça com um quadro da Aída – tudo isso são artifícios propiciadores de êxtase, destinados a transformar humaníssimos cavalheiros e damas em heróis, semideuses e serafins, proporcionando dessa forma uma boa dose de prazer inocente a todos, sem distinção: atores e espectadores. p. 148

O passado não é coisa fixa e inalterável. Suas realidades vão sendo redescobertas a cada geração, seus valores sofrem reavaliações, seus significados recebem novas definições, de acordo com as tendências e preocupações da época. Baseando-se nos mesmos documentos – bibliográficos, arquitetônicos e artísticos -, cada época concebe sua própria Idade Média, uma China a seu sabor, uma Hélade patenteada e com direitos de reprodução reservados. p. 155