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sábado, 26 de abril de 2025

(nem tão) Grande inventário de sensações

 

Que calor...
Saí do banho e fiquei de toalha, deitada na cama, pensando em nada... Experimentando essa quase nudez, a liberdade, a pele, minha materialidade física. A refrescância. A não urgência de nada. 
A simples urgência da vida que pulsa neste corpo mortal. 

Sentei, assim simplesmente, só para ouvir as músicas que tocam o meu coração tomando uma cerveja gelada. Sentindo a brisa do final da tarde. Observando a dança e o farfalhar das folhas das árvores.

Dancei aquela canção, de pés descalços no piso da sala. Senti meu corpo se movendo ao som de uma música que me toca inteira. Senti a vida fluindo em mim.
Transitei pela casa toda sentindo o chão sob os meus pés. 

Senti o cheiro de chuva, a gota da chuva na pele. 

Me senti apaixonada, beijei apaixonadamente. Me flagrei num sorriso bobo.

Estive com os meus, rindo muito, rindo alto.

E que tantas outras boas sensações eu sinto e sentirei, Incontáveis. 
E que tantas outras angústias também sentirei.
Mas o que vale de viver não é mesmo o sentir que se vive?





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domingo, 9 de março de 2025

TESÃO

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O tesão que eu sinto não está nas formas geométricas do corpo

A matemática é objetiva 

O tesão que sinto vem de dentro

Do núcleo que arde da falta

O tesão que sinto é subjetivo 

Ele está na dança cotidiana do afeto e da atenção

Ele vem das curvas secretas das palavras

Dos movimentos dos olhos 

Ele vem do som da voz

Do hálito quente perto, muito perto 

Ele vem do encontro de átomos amigos 

Ele vem da quentura do coração

Da pulsação 

Da respiração 

Da saliva 

Do cheiro

Ele vem do aconchego

Ele vem da beleza que extravasa as linhas do mundo físico 

Ele vem de dentro de mim, ele vem de dentro de ti. 

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sábado, 23 de janeiro de 2021

Antropologia I

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Há em mim uma batalha permanente e oscilante entre um instinto de autopreservação e um impulso autodestrutivo.

A vida é autodestrutiva, porque da destruição vem a renovação da vida, e dessa renovação vem a eternidade da força da vida. A vida que transcende o indivíduo, o cosmos.

Me pergunto se o instinto e o impulso estão conectados de alguma forma com o mistério do cosmos. Ou serão frutos da dimensão do indivíduo em sociedade? Ou uma mistura híbrida dos dois? Afinal... a civilização também é filha do cosmos... 

O impulso autodestrutivo acelera o processo inevitável da destruição. Será um manifestação inconsciente de autopunição? Ainda que muitos atos autodestrutivos estejam a princípio na categoria de prazeres e deleites, como o consumo de álcool, cigarros e drogas, eles são, em última análise, atos autodestrutivos.

Será que é uma troca consciente? Estou destruindo um pouco de mim em troca de um prazer, e é isso, nada mais justo? Será simples assim? A vida me consome, por isso vou consumi-la também?

Seremos nós totalmente reduzíveis à antropologia?


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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Narcisismo social

Às vezes - quase sempre nos últimos tempos deste país, e deste mundo - bate um desalento ao ver tanto ódio. Tantas neuroses mal resolvidas virando política de estado. A imensa deficiência na habilidade de interpretação de texto é exatamente proporcional ao ódio que se quer destilar, colocar para fora, no mundo. Quase num ímpeto inconsciente de vingança e rancor por uma frustração que não se quer assumir, e que serve de combustível para um sentimento de cólera errante, não identificado, camuflado como uma aberrante postura ideológica. 

Ou talvez o ódio cegue, como o clichê fala. Mais do que isso, talvez esse sentimento potente de raiva não apenas cegue, mas distorça, deforme, desfigure, sufoque o sentido real daquilo que o raivoso quer atacar. A distorção alimenta o ciclo de raiva e ressentimento. 

O ressentido vê tudo através de um filtro rancoroso. Rancor que nasce da inabilidade de olhar para si mesmo e de refletir sobre si mesmo, e que projeta no mundo a sua incapacidade de lidar com o abismo dentro de si, com as contradições humanas, com os infinitos graus de cinza da realidade. Pretende uma visão reducionista da vida, negando a sua complexidade. Arrogantemente, acredita que a sua perspectiva limitada é a única chave de leitura possível do mundo. Aplica seus padrões viciados e limitados para julgar o intrincado e indissolúvel tecido da vida. 

O analfabetismo emocional talvez seja o pior dos nossos males. Contamina tudo, deturpa, corrompe. Atribui as cores que eu quero à tudo que me cerca. Mas isso por si mesmo é natural. Vermos o mundo através dos nossos filtros. O analfabetismo mesmo, começa quando brigo e imponho que o meu filtro é o único filtro, menosprezando e desconsiderando cinicamente a pluralidade de perspectivas, negando a riqueza da vida.

O analfabetismo começa quando me fecho no meu mundo de interesse individual e não vejo os outros. Quando o bem comum se transmuta no meu bem pessoal apenas. Quando não pratico a empatia. Quando eu não consigo entender que o mundo é mais do que posso ver. 

"O mundo é mais do que conhecemos..."


domingo, 26 de maio de 2019

Notas sobre o casamento, ou sobre o fim de um.


   



     Depois de quase 9 anos num relacionamento, recentemente passei - ainda estou passando? - pelo processo dolorido de uma separação. Ainda mais porque com um filho de 5 anos envolvido. Não vou mentir dizendo que foi, ou que está sendo, fácil, mas aos poucos as coisas vão se ajeitando e vamos nos adaptando à uma nova circunstância. 
    Para o bem e para o mal, uma separação, depois de um relacionamento de tantos anos, nos arranca daquela poltroninha quentinha e aconchegante da famosa zona de conforto e nos posiciona milimetricamente em frente a um espelho existencial. Cara a cara consigo mesma, muitas vezes o abismo que surge parece quase intransponível. Você está tão acostumada a se ver dentro daquela composição, daquele todo, que quando de repente se vê fora se sente um pouco perdida. Todas as supostas verdades foram sendo desmembradas, não resistiram ao escrutínio da realidade dos anos. Você atravessou o túnel do casamento e saiu do outro lado. A perspectiva agora é totalmente diferente, seja no tocante à relacionamentos amorosos, ou sobre o próprio casamento. As belas ilusões se desvaneceram, e eu não quero que isso soe melodramático, mas é mais ou menos por aí. 
     Combinação de alívio e angústia, uma separação é, sobretudo, um momento de autorreflexão e uma nova jornada de autoconhecimento. E, além de lidar com esse diálogo interno constante, cheio de medos e inseguranças, você ainda tem que lidar com o diálogo com o mundo externo, a sociedade, os parentes, os amigos, que sempre querem o seu melhor, claro, mas que de vez em quando conseguem colocar aquela pulguinha atrás da sua orelha que traz tantas e tantas dúvidas que você já julgava sanadas e resolvidas. Volte duas casas e reflita mais um pouco. 
     E, como numa montanha russa, você vai oscilar entre momentos de absoluto bem estar e de desânimo profundo. Entre momentos de esperança e momentos de ceticismo. Entre momentos de certezas e momentos de dúvidas. Você vai olhar para o seu filho e vai chorar se perguntado se está fazendo as coisas da melhor forma. Você vai se sentir sozinha naquele domingo a noite e vai se sentir carente. Vai fazer coisas estúpidas e que não correspondem a quem você é e ao que acredita. Mas, você também já não está tão certa sobre quem é e sobre o que acredita. Terão dias em que você vai deitar a cabeça no travesseiro e vai dormir instantânea e profundamente, e também haverão dias em que você vai rolar na cama por horas a fio em ansiedade. Vai olhar para o chão do banheiro de forma catatônica pensando em coisas que foram, que poderiam ser e que não serão.  
      Mas você também vai receber amigos e vai rir muito, se divertir muito. Vai sair e conhecer pessoas novas. Quem sabe sentir aquelas borboletas no estômago novamente e que você achava que nunca mais fosse sentir. Vai ter novas expectativas pro futuro e para os finais de semana. Vai descobrir novos sorrisos seus, novas vontades, vai se permitir e redescobrir as formas do sentir. Vai olhar o mundo com o filtro da maturidade que, se não é um filtro assim tão cor de rosa, tem a vantagem de ser mais honesto e menos ilusório. 
     E afinal de contas, não é exatamente sobre isso que trata-se a vida, de enfrentar a passagem do tempo de frente, com coragem e também com medo? Com sorrisos e também com lágrimas? A vida é sobre ciclos, sobre aprender e, principalmente, sobre sofrer, que é de onde tiramos nossas melhores lições. Todo significado da vida é extraído da dinâmica entre sofrer e ser feliz, entre fazer sofrer e fazer feliz. Todo o resto não passa de presunções não confirmadas...

Enfim, eu acredito muito na sincronicidade da vida. Logo que me separei, me caiu nas mãos, totalmente por acaso, o livro Coisas da Vida, da escritora gaúcha Martha Medeiros.  Que grata surpresa essa leitura me foi. Aquietou muitas ansiedades minhas e deu pílulas de nanicolina para muitos monstros que me assombravam. Como ela mesma disse em uma de suas crônicas "O tempo  ajustou  minhas  retinas e deu proporção às minhas ilusões. O  tempo  altera  o  tamanho  das  coisas."
     Esse texto nasceu sobretudo da reflexão sobre muitas das passagens desta obra, principalmente sobre aquelas que tratavam de forma leve e descontraída de questões densas e profundas sobre o casamento e relacionamentos, sobre maternidade e feminilidade. Selecionei alguns trechos que vem ao encontro da minha reflexão e que me marcaram para compartilhar, seguem:


"Não há nada de errado em curtir a mansidão de um relacionamento  que  já  não  é  apaixonante,  mas  que  oferece  em  troca  a  benção  da  intimidade e do silêncio compartilhado, sem ninguém mais precisar  se  preocupar  em  mentir  ou  dizer  a  verdade.  Quando  se  está  há  muitos anos com a mesma pessoa, há grande chance de ela conhecer  bem  você,  já  não  é  preciso  ficar  explicando  a  todo  instante  suas  contradições, motivos, desejos. Economiza-se muito em palavras, os  gestos falam por si. Quer coisa melhor do que poder ficar quieto ao  lado de alguém, sem que nenhum dos dois se atrapalhe com isso?  Longas  relações  conseguem  atravessar  a  fronteira  do  estranhamento,  um  vira  pátria  do  outro.  Amizade  com  sexo  também é um jeito legítimo de se relacionar, mesmo não sendo bem  encarado pelos caçadores de emoções. Não é pela ansiedade que se  mede  a  grandeza  de  um  sentimento.  Sentar,  ambos,  de  frente  pra  lua,  havendo  lua, ou  de frente pra chuva,  havendo chuva, e juntos  fazerem  um  brinde  com  as  taças,  contenham  elas  vinho  ou  café,  a  isso  se  chama  trégua."


"Quantas  vezes  fazemos  exatamente  isso:  em  vez  de  assumir  que  estamos  cansados,  frustrados,  derrubados  por  uma  desilusão,  optamos por fingir que está tudo na mais perfeita ordem e, para não  passar  pelo  estresse  de  romper  um  casamento/pedir  demissão/trocar  de  cidade/ou  o  que  for,  a  gente  simplifica:  se  divorcia do que está sentindo - ou seja, de nós mesmos. E botamos  um farsante pra existir no nosso lugar.  Romper  -  o  que  quer  que  seja  -  não  é  fácil.  E  tampouco  é  um  ato  solitário.  Ao  se  divorciar  de  sua  mulher  ou  marido,  você  inevitavelmente envolverá os sentimentos dos seus filhos e de seus  familiares, pra citar apenas os mais chegados.  Sua  decisão  vai  interferir  na  rotina  dos  outros.  Fará  com  que  eles  sofram  junto  com  você. Assim é: todos os  laços que  desejamos cortar repercutem  nas pessoas que amamos, o  que  torna  tudo  mais  difícil."

"No livro  Monogamia,  do psicanalista Adam Philips, há um trecho em  que  ele  diz  que  o  esconderijo  mais  aconchegante  é  aquele  em  que  conseguimos  esquecer  do  que  estamos  nos  escondendo.  Mais:  é  aquele  em  que  até  esquecemos  que  estamos  escondidos.  E  conclui:  "Formamos casais porque é impossível se esconder sozinho".  O casamento como esconderijo. Eu nunca havia pensado nisso.  Uma  pessoa  avulsa  é  uma  pessoa  com  sua  solidão  escancarada,  é  uma  pessoa  que  necessita  fazer  contatos  e  explicar  quem  é,  o  que  faz,  do  que  gosta.  Uma  pessoa  sozinha  é  visada,  está  exposta,  julgam  que  ela  tem  mais  tempo,  está  mais  disponível,  uma  pessoa  sozinha  não  tem  onde  se  esconder.  Já  duas  pessoas  juntas  escondem-se  das fantasias e  do julgamento alheio, se escondem  de  sua  própria  vulnerabilidade  e  dos  seus  próprios  segredos,  duas  pessoas  juntas  protegem-se  oficialmente,  mesmo  sem  ter  a  consciência de que sua união também é isso, um esconderijo."

"A  sociedade  costuma  cobrar  relações  amorosas  daqueles  que  escolheram  viver sozinhos, ou que estão sozinhos por contingência  do destino. Os solitários, os ermitãos, os donos da própria vida são  tratados  como  se  estivessem  à  margem,  mas  são  os  casados  os  verdadeiros  excluídos,  porque  uma  vez  cumpridores  de  uma  expectativa  social,  perdem  seu  potencial  para  surpreender,  não  chamam mais a atenção, passam a ser apenas fazedores de  filhos e  de  dívidas,  consumidores  de  imóveis  de  três  dormitórios  e  carros  utilitários, viram alvo apenas das corretoras de seguro e dos agentes  de viagem. Dentro de  um casamento, julga-se que há  duas pessoas  realizadas,  completamente  a  salvo  da  angústia  existencial,  da  carência afetiva, dos traumas de infância, da insanidade, do vício e  dos  ímpetos  -  imagine,  ímpetos:  casais  jamais  ousariam  fazer  algo  sem pensar, sem conversar muitas vezes antes, durante e depois do  jantar.  A solidão, que sempre pareceu nos proteger, na verdade nos coloca  no  centro  das  atenções,  permite  que  coloquem  o  dedo  nas  nossas  feridas.  Já  o  casamento  nos  tira  da  prateleira,  nos  resguarda,  nos  esconde tão bem e tão sem alarde que a gente nem percebe que está  escondido. Que ironia: o casamento é que é underground." 


"...o que o terceiro milênio tem a nos oferecer: um  amplo  leque  de  opções  sexuais  e  descompromisso  total  com  a  eternidade  -  nada  foi  feito  pra  durar."




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sexta-feira, 12 de abril de 2019

"Envergonhado, o Diabo parou e sentiu que a bondade era terrível..."



Sempre fui uma fã inveterada do gênero "Terror/Horror/Thriller", tanto no cinema quanto na literatura. Meu interesse esteve sempre ligado às tramas psicológicas ou fantásticas, à exposição e autópsia dos terrores e possibilidades do subconsciente humano. Nunca gostei de violência gratuita e de festivais sanguinolentos, com toda sinceridade, me sinto entediada com esse tipo de terror. O conteúdo dramático do mundo da fantasia e do terror sempre me fascinou muito mais do que a estética da violência em si. Evidente que também me sinto atraída por alguns elementos estéticos do universo do terror, mas, via de regra, é pelos elementos menos óbvios e mais alegóricos e simbólicos. 
Em alguns momentos dos últimos anos, e falo aqui do mainstreamvimos uma escalada nervosa do gênero no sentido de intensificar e, consequentemente, banalizar a violência. Cenas ou tramas que chocavam há 30 anos atrás, hoje já não chocam tanto. Os padrões da arte cinematográfica, e mesmo literária, sempre refletem em boa medida o contexto sociocultural em que são produzidos. Por isso, é indiscutível que essa escalada se relaciona com o aumento de nossa tolerância para com a violência, principalmente devido à exposição constante a ela. O avanço nos recursos tecnológicos também favoreceu muito a exploração da estética da violência em prejuízo do conteúdo dramático. Temos uma quantidade absurda de filmes que são, em última análise, um pretexto para um amontoado de cenas grotescas de violência com sinopses que não encheriam duas linhas. Isso acontece também nos filmes de ação. 
Contudo, também vemos um movimento do gênero em retorno a um terror psicológico. Exemplos disso são os recentes Quiet Place (2018)  e o controverso Bird Box (2018), onde o terror exige um pouco mais da nossa imaginação. A tensão psicológica é a tônica constante nos dois casos, e uma das principais críticas, principalmente à Bird Box, é a de não trazer a explicação sobre as criaturas, nem mostrá-las. Porventura, as pessoas fiquem realmente apavoradas quando confrontadas com sua falta de imaginação. Precisam de tudo explicadinho, nos mínimos detalhes. Quando, onde e porquê. 






Nessa semana assisti à dois filmes que, de certa forma, se conectaram na minha cabeça. O sinistro "The House That Jack Built (2018), escrito e dirigido pelo sempre intenso Lars von Trier, e o, quiçá último, Halloween (2018)
     O Lars von Trier, como de costume, consegue entrelaçar - por meio de uma dinâmica que resulta numa desconcertante morbidez -, o caráter estético da violência com uma profundidade existencial crua e perturbadora. 
      O Halloween, sinceramente, não achei de todo ruim, talvez pouco explorado. Problematizou o trauma da heroína Laurie Strode de uma maneira sincera, mas um pouco superficial. Falou, uma vez mais, do impasse psiquiátrico que a figura de Michael Myers encarna, mas chegou no mesmo denominador comum de sempre, ou seja, nosso psicopata é pure evil (o mal puro), nada mais, sem escrúpulos ou padrões, com aquela pitada de obsessão e ideia fixa pela Laurie. Foi uma espécie de "confronto final". A trama come por várias beiradas, mas não se aprofunda realmente em nada. Perseguição, carnificina, violência gratuita, fim. Olhei mais em consideração à histórica franquia e à Jamie Lee Curtis,  mas, convenhamos, não tenho mais muita paciência nem tempo pra perder com esse tipo de filme que não acrescenta nada à nossa existência.   


Minha conexão pessoal entre esses dois filmes, apesar de tão diferentes, foi a violência explícita à criança. Em Halloween, há uma cena bastante desnecessária em que Myers esgana um menino de aproximadamente 10-12 anos. Um pouco mais tarde, quando ele está vagando pela vizinhança e matando despropositadamente, há uma cena muito tensa em que ele passa por um berço no qual um bebê chora. Tive a nítida impressão de que ele iria simplesmente estocar a faca naquele berço, e acho que a intenção da direção foi exatamente essa. Lembro que eu pensei "será que eles vão cruzar essa linha?" E acho também que o assassinato anterior, daquele menino, teve justamente esse propósito de efeito no espectador. 
Em The House That Jack Built, foram cruzadas todas as linhas e a coisa foi bem mais bizarra, apesar de inserida num contexto dramático melhor construído. O serial killer Jack leva uma mãe e seus dois filhos (8 e 10 anos, talvez) para um piquenique numa região de caça. Em fim de contas eles é que se tornam a caça do megalomaníaco que chama o evento de sua "obra-prima". Não apenas mata os dois meninos, do alto da sua torre de tiro, como os mata, um de cada vez, na frente da mãe desesperada. Depois, na sequência desses eventos com um nível de crueldade poucas vezes atingido no cinema, Jack faz a mãe simular que os filhos estão vivos, encenando um piquenique grotesco em que ela é obrigada a dar de comer para o cadáver de um deles. O estômago revira sim. É horrível. Mas piora, depois Jack ainda vai mutilar o cadáver de um dos meninos para deixá-lo com um aspecto sorridente. Mas a filmagem do Lars colocou uma luz um pouco diferente sobre o serial killer, essa figura, tantas e tantas vezes endeusada e romantizada pelo cinema. Lars realmente consegue despertar nosso desprezo e nosso ódio por esse cara. Ele não é um cara fodão, inteligente e sofisticado. Sarcasticamente, o personagem de Lars se autoproclama Mr. Sophistication, mas não passa de um lunático que pretende atribuir um significado transcendental ao que não passa de uma perversidade doentia, e que nasce, sobretudo, de sua profunda incompetência social.


Crianças são sempre um assunto sensível, porque toca num lugar muito delicado da psique humana. Um lugar compassivo e frágil, de amor incondicional e de autopreservação. Existem exemplos no cinema no sentido de crianças perversas, o que por si, já é agressivo e desagradável aos nossos pensamentos. Alguns exemplos disso são o The Boy (2015) e o macabro Ich seh ich seh (2014). Podemos citar até mesmo Pet Sematary (1989) ou o Exorcista (1973), pois, por mais que existam elementos sobrenaturais, também lidam com figuras infantis que despertam em nós um nível diferente de terror.  
Contudo, creio que a violência contra a criança está no topo das coisas mais horríveis e inconcebíveis, dentro e fora do cinema. É uma das coisas mais assustadoras que existem. E é um dos tabus no cinema, uma linha que poucos cruzam, e não à toa. Suscita dentro de nós um horror impactante, paralisante, uma repulsa e uma revolta. É uma espécie de último recurso que funciona como algo do tipo "olha, esse é o nível de maldade desse assassino". Na obra de Lars funcionou bastante bem, a despeito do choque que provoca, também provoca uma percepção mais crua e menos romantizada da figura do psicopata.  


Mas talvez à violência contra uma criança no mundo do cinema não seja o que realmente nos cause choque. Talvez o que realmente mexe com as nossas entranhas seja a relação entre a arte e a realidade. A arte imita a vida, reflete ela e sobre ela. Tudo aquilo que está na arte, de alguma forma, encontra correspondência na realidade e, nesse caso em particular, isso é mais perturbador do que qualquer outra coisa.
Stephen King fala que o terror é sobre os medos. Sobre um medo, acima de todos, o medo da morte. As histórias de terror são ensaios de nossas próprias mortes. Porém, trazem uma enorme vantagem. Se por um lado, nos lembram ostensivamente de que somos mortais e de que vamos morrer um dia, por outro, também nos lembram de que estamos vivos e isso nos causa um enorme alívio. E é esse alívio a substância viciante do terror. 



"Isso não aconteceu porque os roteiristas e produtores e diretores desses filmes queriam que acontecesse; aconteceu porque as histórias de terror ficam mais à vontade naquele ponto de conexão entre o consciente e o subconsciente, o lugar onde tanto a imagem como a alegoria ocorrem mais naturalmente e com efeito mais devastador. " (Stephen King, 1977)




sábado, 20 de janeiro de 2018

Ninguém é de ninguém. 01 de Outubro de 2009.




Esses tempos vi uma mulher no trem que lia um livro intitulado “Ninguém é de ninguém”, nem vi o autor, mas fiquei refletindo sobre o que realmente poderia querer dizer essa sentença.

Ninguém é de ninguém, fato. Cada um é livre e essencialmente independente, nem todos sabem disso, é verdade. Mas o que significa isso num relacionamento tradicional entre duas pessoas? Significa que ambas têm seus gostos, suas vidas, seus pensamentos, suas tristezas e alegrias, seus momentos, suas vivências, experiências. Ambas têm tudo aquilo que podem levar consigo pra onde forem, quando forem, com quem forem. Sinto que muitos confundem lé com cré. O mundo tá muito pirado, demais pro meu gosto. Existe um frenesi animalesco de querer vingar todos os anos de “repressão” moral/sexual/intelectual que me assusta. Eu tenho atolado meus pés nessa merda nos últimos tempos, num ceticismo sobre mim mesma. Durante algum tempo tentei fingir ausência de sentimentos, fingir uma indiferença falsa, e hoje ainda carrego isso comigo, mas estou tentando ser mais fiel aos meus sentimentos e ideias. Ideias mudam! E que bom que mudam, do contrário eu ainda andaria com uma camiseta do Sex Pistols pregando o anarquismo. Ideias vêm de algum lugar trazendo muitas bagagens. Que bom! Sim, eu sou influenciada por muitas coisas e pessoas, quem não é? Eu sou um conjunto de um monte de coisas, de um monte de gente. Que ótimo!
Estamos numa curva ascendente de superficialismo, de banalidades, futilidades, achando que isso é progresso, que isso é liberdade. Constantemente presos numa corrente de nada! De nada!





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Lugar comum. 25 de Julho de 2009.

Era um domingo daqueles em que você acorda subitamente iluminado sobre o “profundo e verdadeiro significado da vida”. Só quer saber das coisas superiores. Se irrita com as ninharias do cotidiano turbulento. Pensa até em deletar o seu Facebook, esquecer o whatsapp, afastar a si próprio de todo e qualquer aparelho eletrônico, artificial, símbolo de toda decadência espiritual do ser humano. Degradante. Tá. O celular e os fones de ouvido não! Mas nada de Deftones, Chevelle ou Godsmack berrando raivoso no seu ouvido. Coisas alegres e plásticas demais também não servem para esse dia. Você quer é escutar Maria Creuza, mergulhado para sempre num estado de contemplação, descobrindo todos os sentidos de todas as letras fantásticas e perfeitas do poetinha vagabundo. Você quer saber das palavras grandes, tudo, todas, todos, mundo, universo, sentido. Num frenesi literário quer ler todos os livros, todos os autores, conhecer todos os títulos e falar com propriedade de todos os assuntos. Nesse momento, sua mente arde em chamas, você olha tudo e todos com olhos de profeta, cumprindo um roteiro messiânico, você é o escolhido. Fica aliviado, extasiado, excitado, tranquilamente ansioso. Passeia pelas ruas com ares de sabedoria, com vistas poéticas. Percebe tudo de outra maneira, uma maneira perturbadoramente deliciosa. A noite cai, como você ainda não virou imortal, nem rico, vai pra casa. Se aquieta sob suas cobertas, vai lendo o segundo título da maratona literária do dia, pode ser qualquer um, todos querem dizer alguma coisa entre o mágico e transcendente. Vai adormecendo, com aquela leve sensação de mudança de rumo. Feliz, quase pleno... vai adormecendo... DESPERTADOR... som agudo, frenético, frêmitos debaixo do travesseiro... Acorda. Meio tonto se dá conta do que está acontecendo. Merda! Segunda. Mau humor matinal, natural. Atraso. Remelas, pasta de dente, escova de dente, escova de cabelo, roupa, sapato, pressa. Café mal passado, mal tomado. Ônibus, sacolejos, sorrisos afetados, cumprimentos tacitamente impostos. E naquele circunlóquio forçado do trabalho nas manhãs de segunda alguém lhe pergunta “e você, o que fez ontem?”, você silencia por alguns instantes... “nada demais, nada demais não”.
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Aquele dos vampiros - 02 de Junho de 2009.


Ele falava de algo entre a vida e a morte. Transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Acontecia numa dessas rodas de pequenos intelectuais galãs e com estilos todos próprios. Pretensos intelectuais de merda que, boêmios, serviam muito mais pra bêbados do que pra intelectuais, mesmo de merda. O fato é que hoje essas coisas se confundem mesmo. Enfim, reuniam-se eles, em torno de uma mesa, num boteco qualquer, imersos pela fumaça dos seus cigarros ordinários. Todos famintos de atenção, todos anêmicos de importância. Foi então, numa súbita iluminação, que percebeu, durante seu discorrer longo e arrastado, todos aqueles sorrisos egoístas e gestos afetados por demais. Enxergou a si próprio numa fila onde todos esperavam sua vez de falar. Não queriam escutar, talvez nem mesmo quisessem ou esperassem ser escutados. Queriam encenar uma combinação frenética de gestos e palavras sobre transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Assim, como quem realmente está ocupado, profundamente envolvido dramaticamente.
Por ocasião de sua súbita e oportuna iluminação, ele simplesmente pegou seu copo, deu fim à sua dose de vodka, apagou seu toco de cigarro ordinário no cinzeiro abarrotado e levantou-se. Suspenso ma confusão de vozes da competição. Virou-se e seguiu embora sem que ninguém desse pelo seu movimento. Amarelos em suas febris expressões de si, continuavam a fingir uns aos outros, e assim todas as noites, indefinidamente.
Em seu quarto abre um livro, daqueles bons, de se devorar em algumas poucas horas. Acende um cigarro, serve uma dose de vodka e se aventura pelas páginas, páginas que querem apenas sua leitura... e terão...

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* Esta pode ser uma obra de ficção, ou não. Qualquer semelhança com fatos, lugares ou pessoas pode ser real, ou não.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Mais um pouco sobre ser mãe.

A mãe chega em casa e, antes de tudo, dá uns bons grudes e agarrões no seu pequeno, que é pra recarregar as energias. Depois oferece água, e então dá um "gute". Dá mais uns grudes, e oferece mais água, tira o copinho de água da mão do pequeno porque ele começa a atirar água pelo chão e na televisão, não está com sede não. A mãe então prepara o banho, e prepara a roupa calculando se vai esfriar durante a madrugada, porque o pequeno não dorme tapado, nem pensar! É temperamental. Dá o banho, seca, passa creminho, veste, passa colônia, penteia o cabelinho, tudo isso fazendo muitas palhaçadas pra segurar a atenção do mocinho, assim ele não sai correndo nu pela casa antes que ela termine todo o processo. 
Depois, arruma a janta. Dá remedinho, dá a janta. Tira o pequeno da cadeirinha e o libera pra olhar seu desenho. Só então é que a mãe vai se lembrar que ela existe, que ela tem fome e que está morrendo de sede. 

Muita gente que não tem filhos se assusta com a rotina de ter um filho. Tudo isso soa como sacrifício, como uma espécie de heroísmo materno. Mas o que muitos não sabem é que não é sacrifício nenhum. É prazer, é felicidade, é alegria, é satisfação, é amor. 

Não quero dizer com isso que a maternidade é um mar de rosas, e que todas as mulheres deveriam ser mães. Não estou pleiteando a maternidade, mas narrando minha experiência como mãe. É cansativo? Sim, muito! Às vezes ficamos estressadas, desanimadas? Sim. Mas e o que mais na vida não nos cansa vez por outra? O que na vida não nos estressa ou desamina de vez em quando? A maternidade não é nenhum mérito supremo, nenhuma habilidade perfeita que nos exija sabedoria plena sobre o que estamos fazendo. Ser mãe é algo incrível, e antes de tudo é algo que nos dá tanta felicidade, nos fornece tamanha energia. E nada disso é porque somos mães, mas é porque temos filhos. Parece confuso, mas as mães vão entender exatamente o que quero dizer. Assistimos ao crescimento desses pequenos e frágeis seres, ao seu desenvolvimento enquanto seres humanos. Provocamos sorrisos fantasticamente sinceros, e recebemos um amor totalmente altruísta.

Escrito em 07.12.2015

sábado, 30 de julho de 2016

O paradoxo do machismo


O machismo é nocivo tanto às mulheres quanto aos homens. Às mulheres pelos mesmos motivos óbvios e tristes de sempre: violência e abuso domésticos, sobrecarga de responsabilidades, desigualdade salarial, desigualdades sociais as mais variadas, acúmulo exaustivo de jornadas, etc.

Aos homens o machismo inflinge a inutilidade e a acefalia. Temos gerações seguidas de gerações de homens que simplesmente não sabem viver sozinhos, não sabem lavar suas próprias roupas, não sabem preparar sua comida, não sabem cuidar da sua própria casa. Não sabem, sobretudo, administrar as questões da vida doméstica. Não sabem, enfim, administrar a própria vida com independência. Passam da tutela de mães/empregadas, às mãos das esposas, que ingenuamente herdam a hercúlea tarefa de fazer tudo pelo marido. Em relação aos filhos, quando os tem, o mesmo se passa. Ainda que amem genuinamente sua prole, a esmagadora maioria das tarefas e responsabilidades sobre a vida e saúde do filho recaem sobre a mãe. "Ah, mas eu ajudo", alguns gritarão aí na platéia. Qualquer ajuda é sempre bem vinda quando falamos de um parente ou amigo próximo. Quando estamos falando do pai "ajuda" é muito pouco, ajuda é uma migalha, é uma esmola, ajuda é nada! 

    É verdade e fundamental dizer que os principais agentes de manutenção dessa situação somos nós, pais e mães, que criamos esses homens reforçando esses maus hábitos, reproduzindo e naturalizando os "papéis" feminino e masculino. As mães, com o consentimento mudo dos maridos, o fazem pegando as camisas dos filhinhos - já com trinta anos - para lavar, limpando seus quartos e a casa onde moram sem nunca fazê-los perceber que isso deveria ser tarefa de todos. 


Sinto que essa mentalidade vem mudando. Já existem homens prontos à pegar em vassouras, baldes e fraldas sujas. E isso me deixa feliz. Contudo, ainda vejo e escuto situações as mais absurdas!!  Nós mulheres devemos sacudir o mundo! Nós estamos criando esses futuros homens! E já está mais do que na hora de quebrar esse ciclo vicioso e danoso. 

  
 Por isso, pergunto a vocês mulheres, mães, tias, avós e madrinhas: Que tipo de homem você quer criar para o mundo?? Aliás, que tipo de ser humano você quer criar para o mundo??
O machismo é mesmo paradoxal. Reside sobre o pilar da superioridade masculina, mas sua principal e mais imediata consequência é a total dependência do homem à mulher nas situações mais cotidianas e banais da existência. Vá lá entender!




Escrito em 07/01/2016

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Pesadelo em Macondo

Nessa noite tive um sonho. Um sonho muito ruim. Horrível. Mas que me fez renovar meus sentimentos de gratidão pela vida maravilhosa que tenho.

Morávamos na nossa antiga casa, e começou a chover muito. Muitas goteiras surgiram e o teto de gesso começou a ceder, chovia muito dentro de casa. Corri, peguei bacias e mais bacias, mas não eram suficientes, chovia quase como na rua.
Chovia sobre os móveis, apodrecendo-os, chovia sobre os eletrônicos, estragando-os. A água escorria pelas paredes, derretendo-as. Um cenário digno da Macondo de Márquez . A fiação elétrica começou a ficar exposta, e nós, expostos aos choques. Minha vó, tentando se equilibrar numa água que já subia até seu joelho, levou um choque terrível que deu um clarão na casa inteira. Fui em seu socorro e, aliviada, vi ela dizendo que estava bem, ao mesmo tempo que me empurrava para fugirmos dali, dos choques. Os fios elétricos dançavam ao embalo do vento que invadiu nossa casa, já com as paredes desmoronadas. E nós tentávamos fugir daqueles fios de morte dançantes, mas era como se estivéssemos presas ali.
O sentimento todo foi de muito desamparo, de angústia aguda, de desespero. Muito triste.
Acordei de sobressalto naquela angústia dos sonhos, e o alívio que senti quando percebi que estava protegida debaixo das minhas cobertas quentes, sob o teto aconchegante da minha casa, foi indescritível.
Sempre sou muito grata por tudo que tenho na vida. Para aqueles que não me conhecem, meu maior medo na vida é virar mendiga. É bobo, é estranho, sei, e não sei o por quê. É algo que vem comigo desde a adolescência quando consegui meu primeiro emprego e achava que se perdesse aquele emprego nunca mais encontraria outro e acabaria na sarjeta como mendiga. E talvez Freud poderia dizer que é algo que vem comigo desde muito antes.

Por isso, valorizo muito uma coberta, uma boa refeição, um teto sobre minha cabeça, a saúde, minha e dos meus familiares amados. Não apenas me satisfaço, mas me regozijo com o que muitos dizem ser pouco, mas que eu considero ser tudo. E para alguns, talvez, isso soe como conformismo. Pra mim, soa como felicidade: sentir-se feliz exatamente com aquilo que se tem e não sofrer na ânsia por mais nada, exceto o desejo que esse sentimento se mantenha.  

Fonte: http://excahm.deviantart.com/art/Mugen-Stage-Rainy-Ruins-473004606