terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Angústia (Gacriliano Ramos, 1936) & Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski, 1866)

Vou postar esses livros juntos, pois percebi uma grande influência de Dóstoiévski em Angústia, do Graciliano Ramos. Ambos os livros tratam de um crime - com naturezas distintas é bem verdade -, mas descrevem com verdadeira maestria os devaneios sombrios que sofrem as almas torturadas dos personagens depois de cometerem o crime de assassinato. As duas obras também apresentam uma detalhada narrativa dos processos emocionais e racionais pelos quais os personagens passam até chegar no extremo dos crimes.
Dóstoiévski nos traz de maneira mais contundente um debate ético e moral - quase filosófico - sobre o crime. Graciliano, por outro lado - não que também não o faça - , mas trata da ânsia assassina por um viés mais passional. 
As duas obras nós dão muito o que pensar e reavaliar.

RAMOS, Graciliano. Angústia. RJ; SP: Editora Record. 239 P.


[...] a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado. p. 13

Tenho-me esforçado por tornar-me criança - e em conseqüência misturo coisas atuais a coisas antigas. p. 17

Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo. p. 20

Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas. p. 22

E eu acredito em Moisés, que não escora as suas opiniões com a palavra do Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta. Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios de folhetos incendiários. De repente cala-se: foi o doutor chefe de polícia que apareceu e começou a cochichar com os políticos. O dedo de Moisés some-se entre as folhas do jornal, o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inexpressivo. Covardia. Mas afasto este pensamento severo. Moisés não tem jeito de herói: é apenas um sujeito bom e inteligente. p. 25

A noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum. p. 43

E divergi dele, porque o achei horrivelmente antipático. Ouviu-me atento e mostrou desejo de saber o quem eu era. Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada.
- Luís da Silva, Rua do Macena, número tanto. Prazer em conhecê-lo. p. 44

- Que diabo vem fazer este sujeito? Murmurei com raiva no dia em que Julião Tavares atravessou o corredor sem pedir licença e entrou na sala de jantar, vermelho e com modos de camarada. Soltei a pena, Moisés dobrou o jornal, Pimentel roeu as unhas. E assim ficamos seis meses, roendo as unhas, o jornal dobrado, a pena suspensa, ouvindo opiniões muito diferentes das nossas. As de Moisés são francamente revolucionárias; as minhas são fragmentadas, instáveis e numerosas; Pimentel às vezes está comigo, outras vezes inclina-se para Moisés. Raramente discutíamos. O judeu cansava-se em dissertações longas, que eu aprovava ou desaprovava com a cabeça. Acontecia aprovar agora e reprovar depois. Quando bebia, tornava-me loquaz e discordava de tudo só por espírito de contradição:
- História? Esta porcaria não endireita. Revolução,o no Brasil! Conversa! Quem vai fazer revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem. E os camponeses votam com o governo, gostam do vigário. O que eu queria era convencer-me de que não tinha razão. Desejava que Moisés estirasse argumentos e seu Ivo se revoltasse.
- Números. Nada de tapeação. Estatística.
O judeu falava em milhões de desempregados, em consciência de classe, voltava-se para seu Ivo, que não compreendia a língua dele:
- Não entendo. Vosmecês são brancos, lá se arrumem. p. 47
  
Se me tivesse encomendado e pago um artigo de elogio à firma Tavares & Cia., eu teria escrito o artigo. E isto. Pratiquei neste mundo muita safadeza. Para que dizer que não pratiquei safadezas? Se eu as pratiquei! É melhor botar a trouxa abaixo e contar a história direito. Teria escrito o artigo e recebido o dinheiro. p. 50

Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira, admirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social. p. 78

As aparências mentem. A terra não é redonda? p. 83

Absurdo pretender que uma pessoa passe a vida com os olhos fechados e vá abri-los exatamente na hora em que aparecemos diante dela. p. 102

Hábitos diferentes, necessidades novas. p. 104

Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Freqüentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me.
- "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono. Penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que se passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direito nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama. p. 129

Medo da opinião pública? Não existe opinião pública. O leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo atrapalha-se e não sabe para que banda vai. p. 156

Teria dito e repetido outra palavra que insistisse em vir-me à boca, dessas coisas que a gente diz à toa e conserva porque vieram espontaneamente e são insubstituíveis e absurdas. p. 176

O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa. p. 202
  

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2007. 590 P.


 - Dá-me licença que te faça uma pergunta a sério? - disse o estudante, ainda um pouco exaltado. - É claro que eu, há pouco, falava de brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que não dá proveito a ninguém, e que até, pelo contrário, a todos prejudica; que nem ela própria sabe para que vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente... Compreendes? Compreendes? [...]Do outro lado energias jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isto aos milhares e em toda parte. Mil obras e boas iniciativas se poderiam fazer com o dinheiro que esta velha deixa ao mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos... E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida... mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas... É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. Ela se alimenta da vida alheia, é má. p. 79

- Oh, que desmancha-prazeres! Os princípios! Tu te moves por princípios, como se fossem molas; não te atreves a atuar livremente; para mim, o fundamental é que o homem seja bom. E, francamente, reparando bem, em todas as classes não há muitas pessoas boas. p. 150

- Isso é mentira, esse sentido prático não existe - interveio Razumíkhin. - O sentido prático é difícil de criar, e não cai do céu aos trambolhões. E há quase duzentos anos que nós temos as costas voltadas a tudo quanto é prático... Idéias, sim, pululam - e encarou Piotr Pietróvitch -; o desejo do bem existe, embora sob uma forma pueril, e honestidade também se encontra, apesar de que, visíveis ou encobertos, abundam os velhacos; mas, pelo quanto ao sentido prático, não existe de maneira nenhuma. Quanto a senso prático, nada! p. 166

- Não, não é um lugar-comum! Se a mim, por exemplo, em outro tempo, me tivessem dito: "Ama o teu próximo", e eu o tivesse amado, que teria resultado disso? - continuou a dizer Piotr Pietróvitch, talvez com demasiada pressa. - O resultado seria eu ter rasgado o meu cafetã em dois, ter repartido com próximo, e ficaríamos os dois remediados, como diz o ditado russo: "Persegue várias lebres ao mesmo tempo e ficarás sem nenhuma". Mas a ciência diz: "Antes de mais ama-te a ti próprio, porque tudo no mundo está baseado no interesse pessoal. Se te amares a ti próprio farás os teus negócios como devem ser, e o teu cafetã permanecerá inteiro". O direito econômico diz-nos que quanto mais negócios particulares existem na sociedade e, por assim dizer, mais cafetãs inteiros, tanto melhor para a firmeza dos seus fundamentos e tanto melhor para a gestão do negócio coletivo. Por isso, cuidar única e exclusivamente de mim é precisamente a maneira de também cuidar dos outros e fazer com que o meu próximo receba algo mais do que um cafetã partido em dois, e isso sem ser devido a mercês particulares e únicas, mas como conseqüência do progresso geral. Idéia simplicíssima, mas que, por infelicidade, foi concebida muito tarde e acabou por ser suplantada pelos entusiasmos e pelos sonhos; apesar de que, segundo parece, não é preciso muita esperteza para compreender... p. 167
E por que me meti em discussões com aqueles malvados? Eu tinha jurado que não voltaria a discutir com eles! Mas eles dizem tantos absurdos! É impossível não discutir com eles! p. 223
Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? p. 224

Que hei de eu dizer-lhes? Já há meio ano que convivo com Rodka: áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Generoso e bom ele é. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso, às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que beira a desumanidade; é assim mesmo, como se nele alternassem dois caracteres desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Não se interessa por uma coisa que em outra época o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso. [Perfil de Rodka segundo seu amigo Razumíkhin]p. 238

- Imagina, Rodka, o que chegaram a discutir: se o crime existe ou não. Fartaram-se de disparatar.
- Que tem isso de extraordinário? É uma questão social vulgar – respondeu Raskólhnikov com ar distraído.
- Não foi assim que eles puseram a questão - observou Porfíri.
 - É verdade - concordou logo Razumíkhin, atrapalhando-se e exaltando-se, conforme o seu costume. - Olha, Rodka, primeiro escuta, e depois dá a tua opinião. Gostava que o fizesses. Eu, ontem, estava numa ansiedade, à tua espera, tinha-lhes prometido que tu irias... A coisa começou pelo ponto de vista dos socialistas. Já se sabe qual é: o crime é um protesto contra a anormalidade do regime social... isso e só isso, e é escusado procurar-lhe outras causas... Acabou-se!
- Mentira! - exclamou Porfíri Pietróvitch. Era notório que se entusiasmava, e sorria a cada instante, olhando para Razumíkhin.
- Qual mentira! Hei de mostrar-te livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente deletério, e nada mais. Magnífica frase! De onde se deduz, diretamente, que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam imediatamente todos os crimes, visto que já não haveria contra que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes. Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspeita; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará... E chegam ao resultado de idealizar um simples amontoado de tijolos, sim, a distribuição de corredores e quartos do falanstério. O falanstério está pronto; mas a vossa natureza ainda não o está para o falanstério; anseia pela vida, o processo vital ainda não terminou, ainda é cedo para a cova. É impossível saltar com a lógica apenas por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, ao passo que há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa é a solução mais fácil do enigma. Duma clareza sedutora, e evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem compendiar-se em duas folhas de papel impresso.
- Ei-lo no seu elemento! É preciso ter mão dele! - gracejou Porfíri. - Imagine seis pessoas metidas num quarto e, além disso, previamente encharcadas em álcool... Já pode fazer uma idéia! Não, meu amigo, tu mentes: o meio significa muito na criminalidade, isso afirmo-te eu.
- Eu também sei que influi muito; mas dize-me: um quarentão desonra uma menina de dez anos; foi o meio que o induziu a isso?
- Pois sim; no estrito sentido da palavra, pode dizer-se que foi o meio – observou Porfíri com uma grave firmeza -; pode explicar-se o crime, em grande parte, pela menina, e, em grande parte também, pelo meio. Razumíkhin ficou furioso. p. 281-282
Que vem a ser isso de fugir? Isso é pura fórmula; o essencial não é isso; não só ele não me escapa por não ter para onde fugir, como também não me escapa por razões psicológicas, he... he! Esta frasezinha, hein? Não me escapa pela lei da natureza, ainda que tivesse para onde fugir. Já reparou numa borboleta à volta da luz? Bem, pois da mesma maneira se porá ele a dar voltas e voltas em meu redor, como em torno de uma vela; a liberdade deixará de ser-lhe agradável, começará a matutar, a viver numa inquietação, a ficar preso nas suas próprias redes e a sofrer angústias mortais... E isso ainda não é tudo: ele próprio, espontaneamente, me proporcionará alguma prova matemática, do gênero de dois e dois são quatro... assim que eu lhe consinta um intervalo mais longo... E não fará mais do que traçar círculos e mais círculos cada vez mais apertados à minha volta, até que... pumba! Num desses vôos me virá cair na boca e eu engoli-lo-ei com todo o gosto, he... he! Não lhe parece? p. 371

Também pode ser que, em grande parte, tivesse obedecido a esse orgulho especial que faz com que em algumas cerimônias sociais, obrigatórias para todos, dentro dos nossos costumes de vida, muitos pobres esgotem as suas últimas forças e até o último copeque apenas com o fim de não fazerem pior do que os outros e de que os outros não façam má opinião acerca deles. p. 410
Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. p. 452
Eu cheguei até lá pelo raciocínio e foi isso que me perdeu. Imaginas tu, por acaso, que eu não sabia que, por exemplo, se começasse a perguntar a mim próprio e a examinar: "Tenho ou não o direito de possuir o poder?", era porque então, provavelmente, não tinha esse direito? Ou que, se fizesse a pergunta: "É um piolho ou um ser humano?", então, com certeza que o ser humano já não seria para mim um piolho, mas só para aquele a quem isso não tivesse passado pela imaginação e que fosse direito até lá, sem fazer essas perguntas? Quando eu levei tantos dias neste tormento: "Napoleão faria isto ou não?", já eu compreendia claramente que não era um Napoleão... Todo, todo o suplício desse palavreado o sofri; eu queria matar sem casuística, matar para mim, para mim só. Não queria mentir nisto, nem a mim próprio! Não foi para ajudar a minha mãe que eu matei... Que absurdo! Também não foi para me tornar um benfeitor da humanidade, uma vez que dispusesse já de meios e poder, que eu matei. Que absurdo! Matei, simplesmente; matei só para mim, para mim apenas, e, se em conseqüência disso eu me tivesse podido tornar um benfeitor, ou tivesse passado toda a vida, como a aranha, apanhando presas na teia e alimentando-me dos seus sucos vitais, para mim tudo isso teria sido indiferente... E também não precisava de dinheiro, nem isso era o principal; quando matei, precisava mais de outra coisa do que de dinheiro... Tudo isso o sei eu agora... Vê se me compreendes; pode ser que, se tivesse de percorrer as mesmas pegadas, já não tornasse a repetir o crime. Eu precisava de conhecer outra coisa, outra coisa me puxava pelo braço: então, eu precisava de saber, e de saber o mais depressa possível, se eu também era um piolho, como todos, ou um homem. Estava capacitado para transgredir a lei ou não estava? Tinha ousadia para ultrapassar os limites, para tomar este poder, ou não? Era eu uma criatura trêmula ou tinha o direito? p. 453-454

Eu estou convencido de que isso é uma doença como tudo o que ultrapassa os limites, e aí ultrapassa-se infalivelmente. Mas repare: em primeiro lugar, cada um tem os seus limites, este tem um, aquele outro, e, além disso, em tudo é preciso ter comedimento, embora isto seja um cálculo reles; mas que se há de fazer? Se procedermos de outra maneira, não nos resta mais nada senão darmos um tiro na cabeça. p. 508
[...] nunca ponha as mãos no fogo quando se trata de coisas entre marido e mulher ou entre apaixonados. Há sempre aí um cantinho, que permanece ignorado para toda a gente, e que só eles, os dois, conhecem. p. 516
No fracasso tudo parece estúpido. p. 559
Será a falta de coragem e o medo da morte pudessem obrigá-lo a viver? p. 562
Eu me conduzo para com o senhor como para um homem enobrecido pela ilustração. Olhe, as parteiras diplomadas multiplicaram-se excessivamente... - Refiro-me a essas mulheres de cabelo cortado - continuou o tagarela do Iliá Pietróvitch. - Eu lhes pus o nome de parteiras e acho que é uma denominação muito apropriada. He, he! Introduzem-se na Academia, estudam anatomia; ora vamos lá a ver, diga-me: se eu adoecer, chamarei uma moça para que me trate? He, he! - Iliá Pietróvitch pôs-se a rir, muito satisfeito da sua esperteza. - Suponhamos que se trata de uma ânsia intensa de se instruírem; mas que se instruam e pronto. Para que abusar? Por que ofender as pessoas decentes? p. 570
"Em que, em que", pensava, "era a minha idéia mais estúpida que outras idéias e teorias que correm e se entrechocam pelo mundo, e assim farão, enquanto o mundo existir? O que é preciso é encarar o caso com olhos completamente independentes, amplos e livres de influências cotidianas, para que a minha idéia não pareça já tão... absurda. Oh, negadores e sábios do valor de meia tigela! Por que parais a meio do caminho? Ora vejamos: por que é que a minha conduta vos parece tão ignominiosa? Por que fui um... criminoso? Que significa a vossa criminalidade? A minha consciência está tranqüila. É certo que se consumou um crime de pena capital; é certo que se infringiu a letra da lei e se derramou o sangue; pois bem... Tomem a minha cabeça pela letra da lei... e basta! É certo que, nesse caso, até muitos benfeitores da humanidade, que não receberam o poder por herança, mas o conquistaram, teriam merecido castigo desde os seus primeiros passos. Mas esses indivíduos seguiram para diante e depois tiveram razão, ao passo que eu não resisti e, portanto, não tinha direito a dar esse passo." Era unicamente nisto que ele se reconhecia culpado: em não ter persistido e em ter ido denunciar-se.
Sofria também perante esta idéia: "Por que não se suicidara então? Por que estivera ali, à beira da água, e optara por ir denunciar-se? Dar-se-ia o caso de que o desejo de viver fosse tão forte e fosse tão difícil vencê-lo? Preferia ver nisso simplesmente o peso cego do instinto, do qual não pudera desprender-se, e que também não tinha forças para rebaixar (devido à sua fraqueza e insignificância). Olhava para os seus companheiros de presídio e ficava espantado. Como todos eles amavam a vida, como a apreciavam! Parecia-lhe até que no presídio ainda a amavam e estimavam mais do que quando estavam livres. Quantos sofrimentos terríveis e mortificações não suportavam alguns deles, por exemplo, os vagabundos! Mas significaria assim tanto, para eles, um pequeno raio de sol, um bosque calmo, uma fonte fresca, além, na espessura, vislumbrada três anos atrás, e com a visita da qual o vagabundo sonha como com um encontro com a sua amada, e a vê em sonhos com a erva verde à volta e um passarinho cantando numa árvore! p. 583


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O resto é silêncio - Érico Veríssimo, 1943

Já faz algum tempo que li esse livro, mas lembro como fiquei encantada com ele. Não é uma das obras mais conhecidas do Veríssimo, mas sem dúvida ganha lugar entre as melhores. O eixo central da história parte de um suposto suicídio de uma moça, que cai de cima de um prédio. Uma das coisas mais legais de ler Veríssimo, nesse caso principalmente, é que o espaço onde acontece a história é a cidade de Porto Alegre, nas redondezas da Praça da Alfândega. O prédio em questão é o Edifício Imperial, onde foi o antigo Cinema Imperial. Lembro-me que à época da leitura, eu passava lá em frente e ficava olhando pro alto do prédio, realizando a história. Também sempre fico olhando pra praça e imaginando que ela foi um importante espaço de reflexão do autor, me sinto comovida com isso. Mas enfim, a história é multidimensional, na medida em que parte de um fato específico e vai mostrando vários núcleos de personagens e como cada um teve contato com o acontecido e a impressão que tiveram. E, claro, a história é cercada de um realismo singelo e tocante, com passagens imensamente filosóficas, daquela filosofia verdadeira, de todo dia, e não daquela plástica, teórica e puramente ideológica.
Segue fichamento:



-“Olha o mundo com uma curiosidade temperada de indolência e com uma malícia misturada de ternura. É tolerante e tem horror à violência. Nutre um respeito sagrado  pela liberdade de pensamento e expressão do próximo. Prefere a contemplação à ação e quase  sempre está ausente do lugar em que seu corpo se encontra. Vê e interpreta a vida mais como poeta que como profeta. Ama a limpidez e a simplicidade de expressão. Não gosta de palavras grandes e dos gestos dramáticos. Exteriormente parece um homem frio, reservado e calculista; por dentro... um sentimental e um romântico que tem pudor tanto da lágrima como da risada aberta. Como romancista, preocupa-se principalmente com seres e problemas humanos. É muito ignorante e não me parece forte em matéria de idéias gerais. Acho-o, no entanto, dotado duma intuição quase milagrosa e duma imaginação colorida. Diante do problema da morte, sua atitude é de perplexidade. Reconhece o mistério, sim, mas concorda em que não nos é lícito quebrar o Grande Silêncio para dizer uma puerilidade.” (pág. 61)

“Tônio agora olhava o crepúsculo. O horizonte passava do ouro novo para o ouro velho que pouco a pouco ia tomando tonalidades de cobre.” (pág. 59)

“No momento em que o drama da guerra deixa pequenos e apagados todos os dramas da literatura, que interesse poderá oferecer a história dum homem ou grupo de homens? Será lícito repisar os velhos e melancólicos problemas da vida quotidiana? Por outro lado, era o seu próprio espírito que produzia o contraveneno: Acima dos ditadores, de toda violência, de todas as guerras, existe algo de mais forte, algo de eterno: É a vontade que o povo tem de sobreviver, de acreditar, de renovar-se. Há ainda o drama essencial do homem, que pertence a todas as épocas, que mora na alma de cada criatura, que está presente em cada simples minuto da vida. Acontece ainda – refletia Tônio – que nossas almas têm estranhas veredas. Podemos ouvir ou ler, chocados em maior ou menos grau, a notícia dum massacre de crianças, e esquecer o fato no instante seguinte, continuando a viver como se nada tivesse acontecido. No entanto, se na rua um amigo estimado nos nega o cumprimento, voltamos para casa abalados e passamos uma noite insone a nos revolver na cama e a pensar no ‘fato’, com uma impressão de catástrofe.” (pág. 55)

“Arte pelo amor da vida. Pinta-se, compõe-se música, escreve-se romance ou poesia, faz-se escultura, enfim, praticam-se todas as formas de arte, parece-me, num desejo de imitar a vida, corrigi-la, compreendê-la, ampliá-la ou fruí-la da maneira mais sensualmente larga. E não devemos esquecer que nisso, como em tudo mais, há sempre a presença do mistério.” (pág. 62)
-“Penso que as criaturas humanas querem antes de mais nada durar e ser felizes, principalmente durar. Para a maioria não se trata apenas de durar aqui na terra, mas de continuar na ‘outra vida’, passar do plano do tempo para o da eternidade. Creio que a função principal do romancista é contar a história do homem na sua luta em prol da sobrevivência e da felicidade...” (pág. 63)
-“Se um escritor tem uma história para narrar – disse – não vejo razão para que não a conte em termos claros, a fim de que o maior número possível de pessoas a leia e compreenda. Não participo desse desejo orgulhoso e aristocrático de hermetismo... Acho desonesto o truque de turvar as águas para dar a impressão de profundidade. Não, Nora, a vida já é suficientemente complexa... a gente não deve inventar complicações artísticas.” (pág. 71)

“Aqueles efebos pareciam os ‘donos da música’. Sentavam-se quase sempre no chão, as pernas dobradas à maneira oriental, as mãos enlaçando os joelhos. Gostavam de Debussy, de Ravel e tinham delíquios quando falavam em Serge Lifar ou em Nijinsky. Aquelas reuniões eram uma feira de vaidades, de sensibilidades assanhadas. Notava-se naquela gente um desejo de parecer boêmia e original, de fugir a tudo quanto fosse burguês. Havia também as modas. A época de Bach, por exemplo. De repente como que descobriam o homem e cada qual tentava classificá-lo, explicá-lo. Cantarolavam trechos de tocatas, fugas e prelúdios. Alguém ia para o piano. Havia orgias de Bach. Depois Bach passava a ser um velho maníaco, um matemático frio e  lá surgia uma onda de Prokofief. Como podiam aquelas criaturas ser tão artificiais? Contemplando-as, em cada gesto, em cada testa, em cada olhar, Marina via escrita em berrantes maiúsculas a palavra EU. Por todos os lados – EU. Vaidades superexitadas, desejos de fama, malícia e maldade ali se misturavam desconcertantemente com ingenuidades inacreditáveis. Teriam esses ‘artistas’ vergonha de serem humanos? Seria que durante as vinte e quatro horas de cada dia nunca tiravam as máscaras, não faziam gestos humildes, não diziam ou pensavam coisas simples, quotidianas? Marina sabia que sim. No fundo não passavam de pobres diabos que andavam atrás do dinheiros para o fim do mês e dum alimento para as suas vaidades.” (pág. 112/113)

“Quisera ter fé religiosa ou acreditar firmemente em alguma doutrina política... Mas tinha uma incapacidade absoluta para se enquadrar em partidos ou seitas. Reconhecia, com certa má vontade, que era indispensável uma fé firme para realizar grandes coisas. Se ele tivesse essa fé num deus ou numa idéia, haveria de orientar seus livros no sentido dessa fé política ou religiosa, não porque achasse que a arte deve ter uma coloração sectária, mas porque reconhecia estar o mundo vivendo um momento excepcional em que a ninguém é lícito ficar indiferente. O mundo estava doente. Era necessário curá-lo para que depois as criaturas humanas pudessem entregar-se à bela e simples tarefa de viver, de prosseguir na sua busca de beleza e de bondade. Mas... e se não houvesse cura possível? Se o homem, por uma lei inelutável, tivesse de ser sempre o lobo do homem?” (pág.169)

“D. Herta parecia resolvida a levar adiante a palestra.
- E a guerra doutor, cada vez mais braba, não?
Ximeno Lustosa depôs a xícara, tirou os óculos, limpou as lentes no guardanapo e disse, com voz dogmática:
- A guerra é uma barbárie.
E continuou a mastigar o seu pão-cabrito, com ar de quem havia resolvido o magno problema, dizendo sobre ele a palavra definitiva.” (pág.207)

“- Nunca nos livramos por completo das cinzas do borralho – prosseguiu o escritor. – É por essa razão que não podemos gozar a festa de maneira completa. Pensamos nas pobres criaturas que ficaram na cozinha, ou que estão olhando o baile do lado de fora. E temos pena. Pena e medo... não sei. Talvez remorso.
Rita arregalou os olhos:
- Remorso de quê? Dançar não é nenhum crime.
- Quando não se dança pisando nos outros – disse Nora.
- Temos ainda a história dos sapatinhos que Cinderela deixou na escada – continuou Tônio. – E as pobres criaturas que torturam os próprios pés, que são capazes até de cortá-los a faca, para que eles consigam entrar nos sapatos encantados. Todos querem ser a ‘eleita’ do príncipe.” (pág. 222)

“O liberalismo redundou no capitalismo e foi o capitalismo que deu origem ao socialismo. Levar o socialismo a sério é o mesmo... o mesmo que, por exemplo, adorar a sulfanilamida como uma divindade só porque ela pode combater uma infecção.” (Fala de Marcelo, pág. 292)

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda... e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou... Por acaso você sabe?” (pág. 299)


“Tônio viu uma expressão dolorosa no rosto do filho. Adivinhou-lhe os pensamentos e os sentimentos. Na alma de Gil havia um menino morto. De resto todos traziam um morto na memória. Cada ser humano tinha a sua princesa morta. Tônio descobria uma acentuada tendência necrófila na maioria das pessoas. Apegadas a coisas e seres defuntos. Em vez de imaginar que os seus mortos continuavam a viver em alguma parte do universo, como um espírito, uma idéia, uma árvore, uma flor, um fruto, um talo de relva ou uma pedra, ficavam-se a idolatrar e arrastar ao longo de toda a vida um cadáver, um corpo em processo de dissolução, um esqueleto, uma imagem macabra”. (pág. 385)

“Quantos milhares de homens tinham lutado, sofrido e morrido para manter as fronteiras da pátria? Que soma de sacrifício, de fé, esperança e coragem havia sido necessária para que o Brasil continuasse como território e como nação?
Sim, ele não devia esquecer os homens que tinham construído cidades e desbravado sertões, repelido o invasor e criado ou consolidado uma tradição.
A essas reflexões o espírito de Tônio se enchia de quadros e cenas, vultos e clamores. Ele via o primeiro trigal e a primeira charqueada. Pensava na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados, nas mulheres de olhos tristes a esperar os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo. Imagina os invernos de minuano, as madrugadas de geada, as soalheiras do verão e glória das primaveras. As lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas, nos sovacões da  terra, nos aldeamentos dos índios e nas missões. As povoações novas que surgiam e as antigas que cresciam, transformando-se em cidade. Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convidavam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude monotonia da rotina campeira – parar rodeio, laçar, domar, carnear, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar, colher. Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pragas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, os horizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão, o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tristes e pacientes, esperando, vendo o tempo passar com o vento, e o vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distâncias.
Havia ainda mulheres de luto pelos homens mortos na última guerra quando chegaram os primeiros colonos da Alemanha e mais tarde da Itália. De novo processaram-se misturas. Vieram novas revoluções. Cresceram as cidades e os cemitérios. Os primeiros trilhos da estrada de ferro foram deitados no solo do Rio Grande. Ergueram-se os primeiros postes telegráficos. E o vento eterno levou para as nuvens a fumaça das locomotivas.
Os olhos do escritor tornaram a pousar na platéia. Para quantas daquelas criaturas a sinfonia possuía um sentido, dizia alguma coisa? Ele via ali no teatro muitos netos, bisnetos e trinetos dos colonos alemães e italianos. Eram industriais, negociantes, médicos, advogados, engenheiros, jornalistas. O sangue alemão e italiano cruzara-se com o da gente da terra. O resultado fora aquela diversidade de tipos, nomes e feições.
A guerra – refletiu Tônio – como os cataclismas pré-históricos que revolveram a crosta terrestre, misturando as camadas geológicas, para maior confusão dos arqueólogos, tinha agora de tal modo sacudido o mundo, que ali no São Pedro se viam refugiados poloneses, judeus, alemães, checoslovacos e austríacos ombro a ombro com descendentes de heróis e caudilhos, bugres e contrabandistas, tropeiros, peões e estância e soldados. E toda aquela gente escutava a mensagem que um homem feio e atribulado escrevera numa terra distante, havia quase cento e cinqüenta anos.
E desse estofo – concluía Tônio – era feito o Brasil. Ele acreditava no futuro de sua terra e de sua gente. Estava serenamente certo de que algo de belo e grandioso se encontrava ainda pela frente...
A orquestra nesses instante rompeu num compasso marcial. (402/403)

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