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sábado, 26 de abril de 2025

(nem tão) Grande inventário de sensações

 

Que calor...
Saí do banho e fiquei de toalha, deitada na cama, pensando em nada... Experimentando essa quase nudez, a liberdade, a pele, minha materialidade física. A refrescância. A não urgência de nada. 
A simples urgência da vida que pulsa neste corpo mortal. 

Sentei, assim simplesmente, só para ouvir as músicas que tocam o meu coração tomando uma cerveja gelada. Sentindo a brisa do final da tarde. Observando a dança e o farfalhar das folhas das árvores.

Dancei aquela canção, de pés descalços no piso da sala. Senti meu corpo se movendo ao som de uma música que me toca inteira. Senti a vida fluindo em mim.
Transitei pela casa toda sentindo o chão sob os meus pés. 

Senti o cheiro de chuva, a gota da chuva na pele. 

Me senti apaixonada, beijei apaixonadamente. Me flagrei num sorriso bobo.

Estive com os meus, rindo muito, rindo alto.

E que tantas outras boas sensações eu sinto e sentirei, Incontáveis. 
E que tantas outras angústias também sentirei.
Mas o que vale de viver não é mesmo o sentir que se vive?





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domingo, 9 de março de 2025

TESÃO

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O tesão que eu sinto não está nas formas geométricas do corpo

A matemática é objetiva 

O tesão que sinto vem de dentro

Do núcleo que arde da falta

O tesão que sinto é subjetivo 

Ele está na dança cotidiana do afeto e da atenção

Ele vem das curvas secretas das palavras

Dos movimentos dos olhos 

Ele vem do som da voz

Do hálito quente perto, muito perto 

Ele vem do encontro de átomos amigos 

Ele vem da quentura do coração

Da pulsação 

Da respiração 

Da saliva 

Do cheiro

Ele vem do aconchego

Ele vem da beleza que extravasa as linhas do mundo físico 

Ele vem de dentro de mim, ele vem de dentro de ti. 

...

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Dexter New blood: Um final inesperado, desconfortável e coerente.

Obs.: Esse texto contém spoilers e é dedicado, principalmente, mas não somente, àqueles que já assistiram o final da nona temporada. 



Enquanto fãs, nós esperamos ansiosamente pelo tema animado e clássico da abertura de Dexter. Decepcionados, de início nos escapa o porquê da sua ausência. Com o tempo percebemos que essa temporada tem um timbre muito mais sombrio, incompatível com o cinismo alegre da abertura original...

 




Ao longo das oito temporadas anteriores, nós assistimos incansavelmente o serial killer Dexter Morgan se safando de seus crimes das formas mais inacreditáveis, e às custas de muitas vidas e de personagens chaves da trama do seriado. Lembremo-nos, pois, do trágico desfecho da oitava e última temporada, com a morte de sua irmã Debra Morgan. Uma personagem extremamente carismática e importante na vida de Dexter.

Com certeza, não é à toa que essa lembrança nos é provocada pela presença dela, já no início de Dexter New Blood. Porém, na nova trama ela assume o papel de contrapeso psicológico, que até então fora desempenhado pelo pai dos dois, Harry. Dessa feita, ela é quem está na mente de Dexter o tempo inteiro contra-argumentado os seus impulsos mais espontâneos de serial killer. A dinâmica entre Debra e Dexter pode ser entendida simbolicamente como o conflito permanente entre o sentimento de culpa e a autojustificativa do dark passenger, e isso é fundamental para entendermos o desfecho da nona temporada. Porque essa última temporada na verdade não é sobre o Dexter, e sim sobre o seu filho, Harrison.

Então, o que vemos é a triste jornada de um adolescente, que depois de sofrer uma situação dolorosa de abandonos sucessivos, voluntários ou involuntários, segue em busca de um pai que – ele descobriu - forjou a própria morte e o abandonou. Tudo se torna ainda mais doloroso se lembrarmos o amor que Dexter dedica ao Harrison até o final fatídico da temporada oito, quando ele é levado a forjar a própria morte e desaparecer, deixando Harrison com Hannah, que anos depois morre de câncer, deixando Harrison para o sistema de adoção, onde o menino vai sofrer novos traumas e abandonos. O abandono aqui é uma chave muito importante de leitura.

Harrison e Dexter compartilham um fato importante: ambos nasceram em sangue. Ambos presenciaram a morte violenta de suas mães. Rita, mãe de Harrison, sendo uma das mortes na conta de Dexter, como consequência de sua irresponsabilidade no trato com o serial killer Trinity. Logo, o trauma de Harrison também pode ser colocado na conta do nosso carismático serial killer. Portanto, Dexter tem dois fantasmas em relação ao filho: Seria possível ter passado seu dark passenger geneticamente para o filho? & Presenciar a morte de Rita, ainda que muito jovem, poderia ter feito nascer em Harrison um dark passenger, como ele acredita que tenha acontecido com ele próprio?

O que logo percebemos em Harrison é uma raiva mal controlada e mal direcionada. Um comportamento errático, agressivo e violento, fruto direto de uma incapacidade de se conectar com o seu pai que, a despeito de todo o esforço, mantém um abismo de segredos intransponível entre os dois. O adolescente busca de alguma forma uma justificativa plausível do abandono cruel que sofrera por parte do pai, ao mesmo tempo em que busca uma conexão de pai e filho.

Dexter – e nós também enquanto telespectadores – é levado a ler o comportamento de Harrison como a possível presença de um dark passenger. O dilema que ele vive então é o de se abrir ou não com o filho. Baseado, finalmente, na crença de que Harrison é como ele, e na reivindicação da responsabilidade em passar “o código” ao filho, Dexter resolve revelar a verdade irrestritamente ao jovem.

Nesse momento nós vemos uma virada tocante na dinâmica entre pai e filho. Quando o mistério do motivo do abandono é finalmente exposto e explicado, Harrison tem uma espécie de libertação da raiva. Isso fica muito claro nas cenas subsequentes à revelação de Dexter ao seu filho, principalmente, após o assassinato de Kurt, do qual o adolescente participa como expectador e ouvinte. Até esse momento ainda somos levados a pensar que Harrison pode ser um psicopata como o pai. Porém, logo somos instados a questionar essa ideia, pois o personagem dele muda de acordo com a evolução da dinâmica com seu pai.

A aceitação e o acolhimento, por parte de Harrison, da condição monstruosa de seu pai, residem muito mais na possibilidade de conexão do que na identificação com este. O caminho que ele encontra para chegar até o pai não é a partir de um dark passenger compartilhado, mas sim pelo pai real que ele finalmente vê revelado diante de si. Toda a raiva dá lugar a um menino carinhoso e atencioso. Portanto, a fonte da raiva de Harrison não era um suposto dark passenger, que ele teria herdado de Dexter, mas algo muito mais óbvio, o abandono incompreendido que sofrera pelo pai.

A frase final de Harrison para seu pai é por demais dolorosa, e traz à tona aquilo que penso ser a essência do New Blood, a expiação e a desconstrução de Dexter como um suposto anti-herói: 

- Eu não tenho raiva porque sou como você, eu tenho raiva por causa de você.

Um final bastante doloroso, e inesperado, pois talvez esperássemos que pai e filho, se reconectando e sendo iguais, matassem juntos e felizes para sempre, combatendo criminosos por meio do “código”, algo deveras cínico, e que nos leva para uma outra reflexão desconfortável que o seriado propõe, pois aponta de forma afiada o dedo para o telespectador questionando finalmente sua torcida irrefletida pelo mal. Buscamos argumentos, assim como Dexter luta e sofre por buscar durante as nove temporadas inteiras, de que o quê ele faz é certo e um bem para a sociedade. “Ele limpa o lixo e torna o mundo um lugar melhor”. Afinal, “Quantas vidas ele salvou tirando a vida das suas vítimas?”

                Mas, no fim de contas, o que o desfecho do seriado nos faz lembrar de forma pungente é que Dexter é um psicopata frio e perigoso, com apenas uma leve sombra de humanidade naquilo que se refere ao seu filho, a única forma de amor que reconhece ter sentido, como ele mesmo fala em suas últimas palavras. Em que pese essa sombra de amor ao filho, todas as suas escolhas levaram inexoravelmente ao sofrimento incalculável não só deste, como de todos em torno de Dexter, palavras do próprio filho nos momentos dramáticos finais.

                Harrison matar seu pai é simbólico em grande medida, mas também é um ato de misericórdia, e porque não dizer também de libertação, já que é exatamente esse o sentimento que a fantástica atuação final de Michael C. Hall nos inspira. Um sentimento de libertação final e de alívio.

                O jovem finalmente compreende a atitude do pai, e percebe que ele esteve certo em se afastar, em ter fingido a própria morte. Mas também compreende que ele próprio precisava dessa jornada para entender o porquê do abandono paterno e superar o sentimento de rejeição, que era a fonte de toda sua raiva. 

                A reflexão amarga que nos fica é: existe alguma justificativa plausível para o mal? O mal causado àquele que é mau é de alguma forma justificável? E a cadeia de acontecimentos que essa pretensa justiça engendra em si não pode causar ainda mais mal no mundo?

sábado, 23 de janeiro de 2021

Antropologia I

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Há em mim uma batalha permanente e oscilante entre um instinto de autopreservação e um impulso autodestrutivo.

A vida é autodestrutiva, porque da destruição vem a renovação da vida, e dessa renovação vem a eternidade da força da vida. A vida que transcende o indivíduo, o cosmos.

Me pergunto se o instinto e o impulso estão conectados de alguma forma com o mistério do cosmos. Ou serão frutos da dimensão do indivíduo em sociedade? Ou uma mistura híbrida dos dois? Afinal... a civilização também é filha do cosmos... 

O impulso autodestrutivo acelera o processo inevitável da destruição. Será um manifestação inconsciente de autopunição? Ainda que muitos atos autodestrutivos estejam a princípio na categoria de prazeres e deleites, como o consumo de álcool, cigarros e drogas, eles são, em última análise, atos autodestrutivos.

Será que é uma troca consciente? Estou destruindo um pouco de mim em troca de um prazer, e é isso, nada mais justo? Será simples assim? A vida me consome, por isso vou consumi-la também?

Seremos nós totalmente reduzíveis à antropologia?


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domingo, 20 de maio de 2018

Excesso de juízes.

Demorei uma jornada para perceber julgamentos muito sutis que eu fazia - como todos nós, inclusive - o tempo todo. E vou dizer, continua sendo um exercício diário e cotidiano pra mim. Quase todo dia me enxergo fazendo algum julgamentozinho, por mínimo que seja, e sinto que todas as vezes minha autopercepção se alarga um pouco mais e me atento pra mudar um pouquinho, também, por mínimo que seja.Todo dia tento enxergar ao avesso tantas e tantas coisas que sempre pareceram tão prontas e definitivas. Coisas que, percebi, estão, sim, prontas, pois foram construídas, mas não são definitivas porque podem e devem ser desconstruídas.
Demorei algum tempo, por exemplo, para perceber que gostar da artista/mulher Rihanna não implica que eu seja uma mulher como ela. Muito menos, implica que eu tenha que ter algum julgamento moral sobre ela que atribua juízo de valor sobre o seu comportamento. Riahnna é uma mulher/artista despudorada - pois não tem pudor - que traz a liberdade sexual feminina como a tônica da sua arte, e a arte é sempre um exagero do sentir, no melhor dos sentidos. Não há nada errado em ser como ela, ou em ser como eu. Somos diferentes, nem melhor, nem pior. Também venho desconstruindo uma visão carola e PUDORástica do sexo, herança de um catolicismo neurótico que demoniza a sexualidade de uma jeito que está mais entranhado em nossa cultura do que podemos sequer imaginar.
Existem matrizes de pensamento e percepção. Mesmo quando pensamos sobre temas diferentes, ou com abordagens diferentes, estamos, via de regra, submetidos à essas matrizes. São essas matrizes que devem ser percebidas, examinadas e alteradas, e isso é muito difícil. Requer exercício mental, reflexão, empatia, humildade, bondade e conhecimento.
Todavia, tudo isso posto, nada disso me impede de problematizar e refletir, a nível pessoal e aberto, sobre o impacto de artistas "sex symbols", para o feminismo. Afinal, quais as consequências e o papel da objetificação sexual de mulheres artistas na cultura contemporânea. E se, por ventura, eu achar que pode haver algum aspecto negativo, isso não implica nenhuma culpabilização pessoal da Riahnna.
Da mesma forma, comecei a entender que minha posição sobre o aborto não implica que eu seja menos feminista ou que eu seja contra a sua descriminalização e, o mais importante, não implica que eu seja contra as mulheres que viveram ou viverão um aborto. Muito em contrário. Meu pensamento reside justamente na cicatriz emocional que, quero crer – talvez com alguma ingenuidade – as mulheres carregam pro resto das suas vidas quando passam por isso. Se é um evento traumático, por que não problematizá-lo, por que não refletir sobre? Isso não implica, de forma alguma, o julgamento de ninguém.
A vida está carente de debates que tenham por objetivo unir. O debate solidário, o debate que promove a empatia e a reflexão sobre a perspectiva do outro. Em todo lado as pessoas estão de digladiando, se odiando, se xingando, ridicularizando umas as outras, e isso é muito triste de se ver.
É difícil ter esperança por esses dias...

Fiquem agora com a musa Rihanna


domingo, 21 de janeiro de 2018

Sobre ser feliz não basta.

A esta altura você já deve ter percebido que ser feliz não basta, não é mesmo? Você está terminantemente proibido de ser feliz por ser feliz! Blasfêmia! Heresia!!Você precisa de títulos e muito agito para isso. Mesmo que com esses títulos e com esse agito sua vida se torne miserável e você não tenha tempo nem para respirar com tranquilidade - no meu caso, asmática, isso alcança um pouco mais de literalidade do que eu gostaria, acreditem! A premissa para ser feliz é: não ser feliz, mas parecer ser feliz através de 'objetivos alcançados'. As redes sociais estão aí para cumprir esse fantástico papel de mostrar aos outros o quão feliz e maravilhoso você e sua vida parecem ser. [Até ter um cachorro ou gato, hoje, faz parte do protocolo para parecer ser feliz!! 
Tantas e tantas vezes que tive momentos maravilhosos de carinho com meu filho, em que pensei em tirar um foto para postar, mas isso arruinaria o momento, e não tirei, pois percebi a asneira que seria deixar de viver uma felicidade inteira, para mostrar uma felicidade incompleta.] 


Afinal, que tipo de pessoa se sente feliz podendo passar mais tempo com seu filho, ou com seu amado? Que tipo de pessoa se sente feliz podendo tomar um chimarrão ao fim do dia, sem ter mil coisas na cabeça esperando que você as faça? Que tipo de pessoa se sente feliz lendo um livro despretensiosamente, apenas pelo prazer de ler, ou vendo um filme bacana? Que tipo de pessoa ordinária e cretina pode se sentir feliz vivendo bem o tempo presente? Pois eu digo que só pode ser um doido varrido alguém que é feliz assim!

Ora pois!!! Já disse, está terminantemente proibido ser feliz, genuinamente feliz. O protocolo só vem aceitando o plasticamente feliz, ok? Não se esqueça disso.

E quando você esbarra por aí, na rua, no trem, no ônibus, enfim, com aquele antigo colega que era um dos seus melhores amigos e vocês se divertiam às fartas?!! A frase mais dita nessas horas é: "Tô na correria, mas vamos marcar um dia!" E, é lógico, esse dia nunca é marcado. Não sei, mas me parece que essa frase "tô na correria" está envolta numa falsa aura de status quo superior. De alguma forma que ainda não compreendi, a vida dessas pessoas que estão sempre na correria valem mais, não pra elas, claro, que estão constantemente hipotecando seu agora, mas pra alguém. Também não descobri pra quem ainda, mas vá lá, ainda estou no começo das minhas obervações antropológicas.

Quando muito, a vida tem se convertido em finais de semana, quando muito. Quando os finais de semana também não são usados para mostrar como se tem tantas coisas super legais para fazer.

Mas, saindo do modo sarcasmo ácido agora.


Eu não estou dizendo que todos devem se acomodar com uma casinha no campo. Veja bem, não é isso. Estou dizendo que a grande maioria está correndo como ratinhos dentro de um labirinto sem realmente perceber o que está fazendo, sem se dar conta de que estão perdendo suas vidas, seus pequenos momentos que nunca mais voltarão. O verdadeiro valor da vida, e das relações está se perdendo, se transformando numa valorização descabida de "objetivos alcançados" que nem sequer são verdadeiramente nossos.

É como se as pessoas estivessem sempre esperando o amanhã para serem realmente felizes. Hipotecar o hoje, acreditando que a felicidade está sempre depois de algo, não gera outra coisa senão pessoas frustradas, amargas, arrependidas e invejosas. E, ao que me parece, estamos presos num ciclo cada vez mais intenso disto.


Por isso, tenho cada vez mais orgulho e tranquilidade em perceber que me encaixo na categoria de doidos varridos.

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20 de Setembro de 2015.

Parecer nenhum sobre nada. 04 de Abril de 2012.

A dúvida. Nada tem ela que ver com um tal de deus, ou deuses. Não, não se trata disto. Quanto a ele - ou eles -, meus pareceres permanecem bem certos, ou seja, continuam sem certeza alguma, em absoluto. Porém, sempre acompanhados de um tanto de olhar enviesado, e outro tanto de desconfiança. A esperança, se existe, é esmagada todos os dias pelo quadro social ao qual somos tortuosamente obrigados a assistir.

Contudo, e por isso mesmo - não podendo ser em nada diferente por condição obrigatória de natureza -, nós, românticos eternos, românticos eternos e etéreos, necessitamos fundamentalmente da crença na existência de um outro mundo dentro desse mesmo mundo de onde falo agora. Um outro mundo nesse mesmo mundo, onde existam coisas tremendamente misteriosas e fascinantes, segredos perpetuamente inescrutáveis. Nós, românticos eternos e etéreos, mais do que necessitar, queremos esse mundo outro, esse outro mundo. Esse mundo dos vivos do qual se gabam com tanta pompa não nos satisfaz.

E ainda que nossa razão racional, dura de pedra e sensata, ainda que toda essa mobília garbosa que carregamos em nossas mentes, nomeada de conhecimento científico, mesmo que tudo isso nos atrase as ilusões coloridas, desmentindo-as acertadamente, mesmo assim  nós as invocamos diariamente, sagradamente e irrevogavelmente, todos os dias. "Graduamos a imaginação em consciência", porque somos os românticos eternos e etéreos.

"Além desta terra e além da espécie humana há um mundo invisível e um reino de espíritos; esse mundo está à nossa volta, pois está por toda parte." (Charlotte Brontë em Jane Eyre)

"Pareceu-me - que os céus nos ajudem, como sabemos pouco sobre tudo! - que uma cena daquele tipo seria capaz de deixar a sua marca no cerne oculto da natureza." (Margaret Oliphant em A porta aberta)


Adendo Lovecraftiano. 

Fonte: https://lovecraftianscience.files.wordpress.com/2015/01/the_picture_in_the_house_by_mercvtio-d6uyq7i.jpg


"Não éramos, como já disse, de maneira alguma infantilmente supersticiosos, mas o estudo científico e a reflexão nos haviam ensinado que o universo conhecido de três dimensões abarca uma fração ínfima de todo o cosmos de substância e energia. Naquela casa, um grande número de indícios, proveniente de numerosas fontes autênticas, apontava para a existência tenaz de certas forças de grande poder e, no que tange ao ponto de vista humano, excepcional malignidade. Declarar que verdadeiramente acreditávamos em vampiros ou lobisomens seria uma assertiva levianamente genérica. Mais correto seria dizer que não estávamos dispostos a negar a possibilidade de certas modificações desconhecidas e ainda não classificadas de força vital e matéria atenuada. Tais modificações se dariam com certa raridade no espaço tridimensional devido à ligação mais estreita desse espaço com outras unidades espaciais, mas ocorreriam suficientemente perto da fronteira de nosso espaço para nos proporcionar manifestações ocasionais que, por falta de um adequado ponto de observação, talvez nunca possamos vir a compreender.

Em suma, julgávamos, meu tio e eu, que um conjunto incontroverso de fatos apontavam para alguma influência persistente na casa abandonada. Essa influência podia ser atribuída a um ou outro dos rudes colonos franceses de dois séculos passados e ainda atuava através de leis desconhecidas de movimento atômico e eletrônico. O registro da história da família de Roulet parecia comprovar que ela possuíra uma afinidade anormal com círculos externos de entidade – domínios sombrios pelos quais a gente normal sente apenas repulsa e terror. Não seria de imaginar, então, que as rixas daqueles anos remotos da década de 1730 houvessem acionado algumas forças cinéticas no cérebro mórbido de um ou mais deles – principalmente no do sinistro Paul Roulet – que obscuramente haviam sobrevivido aos corpos assassinados e haviam continuado a atuar em algum espaço multidimensional segundo as linhas originais de força determinadas por um ódio desvairado contra a comunidade invasora?

Tal fato não constituía decerto uma impossibilidade física ou bioquímica à luz de uma nova ciência que inclui as teorias da relatividade e da ação intra-atômica. Podia-se facilmente imaginar um núcleo alienígena de substância ou energia, informe ou não, conservado vivo por meio de subtrações imperceptíveis ou imateriais da força vital ou dos tecidos e fluidos corporais de outros seres vivos, mais palpavelmente vivos, nos quais ele penetra e com cuja trama às vezes se funde completamente. Ele poderia ser ativamente hostil ou poderia obedecer tão-somente às cegas motivações da autoconservação. Em todo caso, tal monstro seria necessariamente, em nossa ordem de coisas, uma anomalia e uma intrusão, cuja extirpação constitui dever primacial de todo homem que não seja inimigo da vida, da saúde e da sanidade do mundo."

[H. P. Lovecraft. A casa abandonada, 1924]

- Morte - 17 de Agosto de 2011.



Na vida real, a morte é bem mais prática e bem menos poética. Talvez por isso mesmo demore certo tempo para que nos demos conta da perda, do que ela de fato significa. É preciso chamar funerária, agendar horários, conseguir documentos que atestem a morte. O encapuzado de negro, com a foice na mão, não dá as caras, mas paira no ar, como uma cruel presença ostensiva, opressiva. Comprime nosso coração e o espreme até sair o suco salgado dos nossos olhos. Estupra nossa alma, nossa consciência, nos esgota com infinitas lembranças, infinitos remorsos irrevogáveis.
Mas... "a morte, se não deixa boca para sorrir, também não deixa olhos para chorar". Talvez por isso meu primeiro sentimento tenha sido de franco alívio pelo fim do sofrimento que afligia cruelmente minha avó nos últimos anos.
Demorou certo tempo para que eu entendesse. Só mesmo quando me dirigia ao velório é que as lágrimas começaram a rolar, e a impotência em segurá-las causava uma raiva muda, uma angústia amarga.
Chegando próximo ao caixão me escondi atrás dos meus pais, numa atitude quase inconsciente de protelação. Mas quando vi a imagem tão conhecida de minha avó, agora naquele corpo sem nenhuma vida ou expressão, senti o chão me faltar, e um vazio muito grande abriu espaço no meu peito. Um vazio sobre a vida, sobre qualquer sentido. Uma falta de qualquer coisa. Um sentimento de confusão absoluta.
Toquei a mão gelada de morte, mas não senti minha avó. Minha avó já estava em qualquer outro lugar, ou em lugar nenhum, mas não mais ali...
A dúvida sobre tudo isso aqui gritava mais do que nunca dentro da minha cabeça...
Contudo, um consolo ecoava... a morte, se não deixa boca para sorrir, também não deixa olhos para chorar, e minha vó já tinha sofrido demais...

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Agradeço vó, por tudo.
Pelas sopas, pelo feijão com farinha de mandioca e  pelos ovos cozidos.
Por me enganar na contagem das colheradas - nunca me dei conta de que o dez sempre coincidia com a última colherada do prato.
Obrigada, vó, pelas noites rezando terços, por me deixar controlar as contas do rosário e por me ensinar todas as orações, minhas primeiras leituras. Te agradeço por me ensinar a beleza poética da religião que sem nenhuma dúvida ajudou na formação do meu caráter.
Te agradeço, vó, por confiar em mim e deixar eu cortar teu cabelo quando ainda era criança, me senti tão importante.
Obrigada vó, por me comprar os vestidos de prenda, os chapéus de palha com rendinhas coloridas para andar no sol nos nossos longos passeios.
Obrigada por me ensinar que sentar na pedra fria faz mal pra bexiga.
Obrigada por me trazer um flan, um todinho ou um docinho em todos os finais de tarde de um pedaço grande da minha infância.
Por sentar no sol comigo, comendo laranja ou bergamota, e contar tantas histórias sobre a vida.
Te agradeço por narrar, ainda à luz da vela, naquela casinha de madeira, histórias de mistério que tanto me fascinaram.

E sei cá comigo, no fundo, que deveria ter dito isso tudo pra ti em vida. Mas não deu, não fiz. Talvez o tenha feito em gestos, mas nunca tão explícitos quanto podem ser as palavras claras. Deixo aqui esse sincero agradecimento, talvez muito mais para lembrar a mim mesma das tantas coisas boas que vivi e que aprendi contigo, do que para fazer um arremedo de agradecimento, um remendo na vida. Ainda assim, essas poucas palavras deixam ver apenas uma fina fresta de luz da importância que tiveste na minha vida.

Esteja em paz minha vó.




A morte não é um mistério que amedronta.
Ela é uma velha conhecida nossa.
Ela não esconde segredos que possam perturbar o sono de um homem honesto.
Não vires o teu rosto ao ver a Morte.
Não te incomodes se ela parar tua respiração.
Não a temas, porque ela não é o teu amo que vem em tua
perseguição.
Não o teu amo, mas um simples servo do teu Criador,
aquilo ou Aquele que criou a Morte, e te criou — e que é,
ele sim, o único mistério.

— LIVRO DAS LAMENTAÇÕES









Anos 80. 24 de Maio de 2011.

           Esses dias, em algum lugar na internet, li algo do tipo ‘é, realmente, os anos 80 é a idade das trevas da música’. Bah! Minha primeira reação foi de revolta e indignação. Depois refleti um pouco, analisei, e percebi quão ignorante era o comentário. Primeiro, por fazer referência à idéia - que hoje pra qualquer pessoa esclarecida é no mínimo ingênua, pra não dizer superficial - de que a Idade das Trevas [Idade Média] realmente tenha sido um momento estéril culturalmente. Pensamento que durante muito tempo foi alimentado por uma atitude preconceituosa que nos dias de hoje é motivo de vergonha para os estudiosos ressentidos de outrora.
            Depois pensei: poxa vida, a pessoa prefere gastar tempo, energia e espaço, para depreciar uma arte admirada por outras pessoas, e que tem seu valor patente e inconteste. Por que não gastou esse mesmo tempo, essa mesma energia e espaço para falar bem de algo que gosta. Ou então que vá falar mal de coisa ruim mesmo, do tipo dessas bandas coloridas de hoje em dia, que nem de longe é uma questão de gosto, mas de mercado. Quem gosta e compreende mesmo o que representa a música, entende que o respeito é algo que independe de tu gostar ou não. Eu não sou muito do rock clássico, por exemplo. Mas respeito pra caramba, sei da importância, e, sobretudo, aprecio o valor artístico desses caras. O que muitos metidos a críticos de música por aí não entendem é que conhecimento musical é uma coisa e sensibilidade musical é outra bem diferente.
            Essas pessoas me parecem todas papagaios de pirata, me dão a impressão clara de sequer conhecerem realmente o som dos anos 80. São ridículas a prepotência e a arrogância de simplesmente ignorar, diminuir ou desvalorizar a arte de pessoas como Martin L. Gore, Dave Gahan, Vince Clarke, Robert Smith, Morrisey, Roland Orzabal, pra mencionar os mais conhecidos. Estão muito menos empenhadas em descobrir coisas belas, do que em perpetuar preconceitos burros e infantis. Um conselho a estas pessoas: Cresça e decida por si mesmo sobre o que gosta ou não, e, mais importante, respeite o que merece ser respeitado. Do contrário, você não passa de um fã de merda, fundamentalista, preconceituoso e burro, que acha que entende alguma coisa de música!
           
           Concluo com uma música de uma das minhas bandas preferidas - de todos os tempos e de TODAS as semanas, hehe -, Depeche Mode, a qual devoto admiração que só cresce. A música é interpretada pelo Martin Gore, e é absolutamente linda.

Macro
Depeche Mode


Overflowing senses
Sentidos abundantes
Heightened awareness
Atenção aumentada
I hear my blood flow
Eu ouço o meu sangue fluir
I feel its caress
Eu sinto o carinho
Whispering cosmos
Cosmos sussurrante
Talking right to me
Falando comigo
Unlimited, endless
Ilimitado, infinito
God breathing through me
Deus respirando através de mim


See the microcosm
Veja o microcosmo
In macrovision
Pela macrovisão
Our bodies moving
Nossos corpos se movendo
With pure precision
Com pura precisão
One universal celebration
Uma celebração universal
One evolution, one creation
Uma evolução, uma criação


Thundering rhythm
Ritmo fulminante
Pounding within me
Triturando por dentro de mim
Driving me onwards
Dirigindo-me para frente
Forcing me to see
Forçando-me a ver
Clear and enlightening
Claro e esclarecedor
Right there before me
Bem à minha frente
Brilliantly shining
Reluzindo brilhantemente
Intricate beauty
Beleza intricada




CREOLINA. 5 de Maio de 2011.



A creolina espanta o indesejado bicho homem,
desinfeta e afeta o outro bicho homem,
que como bicho já não se vê.
Pingos negros pelo chão, cantos pútridos a cada esquina.
As ruas encardidas de uma sujeira incivilizada.
O público é de ninguém, e como de ninguém é tratado.

E a solidão mora na multidão apressada, descompassada.
Multidão que não enxerga nada, mas que acredita em tudo.
E para muitos, a vida passa encarnada num eterno desfile de modas...
E, sendo assim, desfilam estes nas calçadas, mijadas e imundas,
num espetáculo grotesco e pedante.

Anda rápido se dando importância,
tira fotos, sorri, fala alto.
Encena a vida - todos nós, aliás.
À noite, se conecta e fica a carregar fotos,
numa ânsia de mostrar à todos quão feliz é sua vida.
Mais que convencer à todos, quer é convencer a si mesmo
de uma felicidade artificialmente colorida.

Alguns, porém, deveras sentem aquilo que encenam,
deveras desejam aquilo que buscam.
Poucos, é verdade, cada vez menos... mas, ainda assim, alguns...




sábado, 20 de janeiro de 2018

O processo da revolução. 4 de Fevereiro de 2011.

Buenas. Eu não quero me perder aqui em debates teóricos nem nada do tipo. Meu intuito é trazer ao olho algo que está aí pra ser visto, mas que nem sempre percebemos de maneira sensível. A idéia me veio a partir do último filme que vi, "Danton: O processo da revolução". Também havia estudado o período no semestre retrasado, aí decidi fazer a conexão entre os dois e compartilhar.
     Todos sabem e citam a Revolução Francesa - 1789. Realmente foi algo de uma dimensão incrível e que mudou para sempre os rumos das relações políticas no mundo todo. Abriu caminho para uma série de transformações, sem dúvida. Contudo, teve sua índole corrompida. Na chamada fase do Terror (1793) - e ao longo de todo o processo, mas mais acentuadamente nessa fase - a revolução vira uma verdadeira tirania, e cabeças rolam por toda a França, nas guilhotinas, que encarnam verdadeiros símbolos de opressão e ameaça. Robespierre, principal líder do período, estava mais para uma Rainha de Copas: - Cortem-lhe a cabeça! O novo sistema deve se manter a qualquer custo! E todos que discordarem são acusados de crime contra a pátria, de atos contra-revolucionários.
     E não longe dali, depois de uma série de desacertos, alterações convenientes e contraditórias no ideário revolucionário e atos que desvirtuaram completamente o espírito da revolução, logo ali, em 1799, a monarquia retorna a França, sob uma forma militar e violenta, na figura de Napoleão Bonaparte. Repito: a monarquia retorna a França. Em 1799.
    O que quero com esse modesto e breve comentário acerca de um assunto tão complexo, é, simplesmente, mostrar que as coisas não são lineares como nos colocam, nem compartimentadas, fragmentadas. O buraco é muito mais embaixo. As mudanças demandam processos infinitamente complexos e longos, e isso é natural. É preciso que olhemos tendo em vista um horizonte mais amplo, e um pensamento mais crítico e inquisitivo.
     A seguir, coloco algumas passagens da primeira versão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Lendo-as, entenderão o que eu quis dizer.




Napoleon crossing the Alps at the St. Bernard Pass, 20th may 1800. Jacques-Louis David, 1800-01.


I - Os homens  nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

II - O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

III - O princípio de toda a soberania reside essencialmente na razão; nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane diretamente.

IV - A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique a outrem. Assim, o exercício dos direitos naturais do homem não tem limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos; seus limites não podem ser determinados senão pela lei.

V - A lei não tem o direito de impedir senão as ações nocivas à sociedade. Tudo o que não é negado pela lei não pode ser impedido e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordenar.

VI - A lei é a expressão da vontade geral; todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, à sua formação; ela deve ser a mesma para todos, seja protegendo, seja punindo. Todos os cidadãos, sendo iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outras distinções que as de suas virtudes e de seus talentos.


XI - A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode, pois, falar, escrever e imprimir livremente; salvo a responsabilidade do abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei.

XII - A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; essa força é então instituída para vantagem de todos e não para a utilidade particular daqueles a quem ela for confiada.

XV - A sociedade tem o direito de pedir contas de sua administração a todos os agentes do poder público.


Liberdade guiando o povo. Eugene Delacroix, 1830.




Peripécias de Luíza Lopes. 14 de Dezembro de 2010.

            Aos 17 anos Karina ganhou uma irmã. Filha única até então, não haveria de poder conceber quão forte é o laço entre irmãos. Concebeu-o então, sentiu-o então. E chorou no hospital ao pegar aquela coisinha minúscula, com perninhas compridas e finas e cabeleira negra e generosa.
            Não imaginava, Karina, que com tanto amor, também viessem tantas dúvidas, principalmente no tocante à criação e desenvolvimento de uma criança. E não imaginava também, Karina, o quanto isso a preocuparia de forma latente.
          A pequena Luíza - que é como se chama a coisinha aquela do hospital – está às vésperas de completar 8 anos de idade. É uma pessoinha, pois, em construção, mas já uma pessoinha.
            Explica-me ao telefone, como estará ocupada no final de semana, que será cheio de festinhas de amiguinhas, e de passeios do colégio, e que por conta da agenda atribulada não poderá visitar a irmã mais velha, Karina. A irmã mais velha entende, mas não consegue deixar de sentir certa fisgada no peito, um certo despeito talvez, por ser preterida.
            Mas a despeito de qualquer despeito burro e mesquinho – inerente a todos os humanos – Karina sentiu algo mais. Percebeu de fato a pessoinha Luíza, construindo sua vidinha, suas relações, sua rede de contatos e experiências, e se viu, subitamente, relegada a um plano secundário.
            E isso é bom. Isso é incrivelmente bom. Karina se sente presenciando o construir de uma vida. E tudo bem que não é mais a heroína da irmã, tudo bem. Karina se sente feliz. É como se Luíza deixasse de habitar um único plano virtual, no qual ela é parte de algo, para desenvolver um plano só dela, feito por ela.
            Karina enruga a testa quando Luíza pede um cd do Justin Bieber e se vê numa encruzilhada. Não quer magoar a pequena com argumentos egoístas que a pobrezinha nem mesmo ainda pode articular. Não quer gastar o pouco tempo de que dispõe ao lado da irmã amada tentando convencê-la, numa teimosia inócua e tola, de que o Justin Bieber é um grande bobalhão. Ela não vai concordar. É Karina contra um arsenal televisivo e cultural gigantesco. O que acontecerá, sim, é aquele olhar triste, magoado, pidão e envergonhado. E causar isso é crueldade, das mais injustificadas!
            Karina lembra que em outros tempos já gostou do “É o tchan”, e se dá conta que isso não foi fator relevante na construção da sua personalidade adulta. Decide então por gravar os CDs. Gravados os CDs do Justin Bieber, – que, pasmem, já são dois – Karina os leva para Luíza, na expectativa de ver os olhinhos dela brilharem quando os vir. Inevitavelmente é o que ocorre. E os olhos de Karina também brilham ao ver a irmã tão feliz. E nada mais tem a ver com Justin Bieber, com cultura de massa, com má influência. Tem a ver unicamente com o amor fraterno e com o desejo sincero de felicidade do outro, no caso, da pequena Luíza.


A sincronia dos pássaros me apavora. 19 de Novembro de 2010.



          É só olhar para aquele passarinho engaiolado ali do lado para se ter uma boa noção do sadismo humano. Há algo de tremendamente errado nesse hábito de enjaular pássaros. Aliás, de enjaular qualquer coisa. Mas esse, especificamente, de enjaular/engaiolar/aprisionar pássaros é uma das mais cruéis expressões do egoísmo do homem. Algo do tipo: “eu não posso voar, então vou te prender passarinho, aqui nessa jaulinha bem minúscula, e eu sei que tu poderias estar galgando imensas distâncias pelos céus resplandecentes e azuis, mas não vais, entendeu? não vais, porque te acho bonitinho aqui, nessa jaulinha, bem pequenininha!”.
         O pior ainda é ouvir aqueles discursos: “tem passarinhos que existem para viver em gaiolas (do tipo uma linha de produção só para o bel prazer do querido e amável ser humano), que são ‘domésticos’”, ou ainda, “ahh, mas se soltar agora ele morre”.
          - Atenção pessoas!
           Um ato de vaidade, de egoísmo, de arrogância diante da natureza. Um ato asqueroso. Eu mesma, devo confessar, já pensei em ter um passarinho, e pra quê? Pra sei lá, inventar mais um algo pra fazer (como se já não tivesse sido inventado o suficiente), para despistar algum instinto maternal, para me sentir importante e útil, para ter o controle de uma forma de vida, sei lá.
           Se fala em grandes atos heróicos de salvação, se fala de um monte de merda humanitária, e blás e blás infinitos. Mas quer saber, é nessas pequenas coisas que o ser humano mostra sua face verdadeira. E o mais apavorante é saber que absurdos cotidianos como esse são encarados como normalidade pura. Isso é o mais assustador!

Aos homens, com carinho. 14 de Janeiro de 2010.


Conversava eu, certa vez, com um rapaz, com pretensões de par. Só que entre nós figurava um enorme pênis, imenso pênis, um pênis surreal. Sempre que ele me falava algo, falava para o pênis, e sempre que eu tentava lhe dizer algo, também falava para o pênis.
Alguns encontros mais e já estava insustentavelmente difícil o diálogo, simplesmente porque eu não o ouvia, nem ele a mim. Mais difícil pra mim, é verdade, afinal o pênis tinha seu dono, que não eu, asseguro. O constante, crescente e insistente obstáculo impossibilitava a vista, e eu fui esquecendo das feições do tal rapaz. Já nem lembrava se era loiro, ou moreno, inteligente, ou burro.
Já era tarde sabemos, o dito rapaz só tinha olhos para o seu pênis, apaixonara-se perdidamente. Triste, mas verídico, e corrente.
Num destes já desacreditados encontros, dei adeus ao pênis, digo, ao rapaz... ou o que quer que fosse que estivesse à minha vista. Dei adeus e me fui embora.
Não sei que aconteceu depois, mas para findar com os olhos roubados de qualquer otimista, digo que o moço e seu pênis viveram felizes e sós para sempre...

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O caso do "sem alma". 16 de Novembro de 2009.



E ele falava sempre assim, como se seu coração fosse de pedra. Ou seria porque, de tão mole e fraco, ele não existisse? O certo é que seu peito era diáfano, não porque fosse algum tipo de ser etéreo, mas antes por não significar nada para si mesmo, ou para qualquer um. Seguia pelas ruas cor de cinza com ares de asfixiado, macilento até pelo avesso, e principalmente pelo avesso, denunciando sua morte estranha e pálida, esquálida. E levava um bom tempo no vão esforço de se fazer ver aos outros, que na maioria das vezes invadiam suas veias sem perceber qualquer coisa que fosse. Nem uma brisa, nem um tamborilar baixinho no fundo da cena, nem uma matiz desvanecida, simplesmente nada, complicadamente nada.

Uma lenda dizia que quando de sua extrema ânsia por um bocado de vida e de mundo, quando de sua extrema raiva e fervor por um terreno de céu... bem, a lenda dizia, e ainda diz, que quando do profundo estado se (des)ânimo desse pobre diabo sem alma, a gente ouve um chiado abafado, que mais parece um nada sufocado pela multidão...

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Ninguém é de ninguém. 01 de Outubro de 2009.




Esses tempos vi uma mulher no trem que lia um livro intitulado “Ninguém é de ninguém”, nem vi o autor, mas fiquei refletindo sobre o que realmente poderia querer dizer essa sentença.

Ninguém é de ninguém, fato. Cada um é livre e essencialmente independente, nem todos sabem disso, é verdade. Mas o que significa isso num relacionamento tradicional entre duas pessoas? Significa que ambas têm seus gostos, suas vidas, seus pensamentos, suas tristezas e alegrias, seus momentos, suas vivências, experiências. Ambas têm tudo aquilo que podem levar consigo pra onde forem, quando forem, com quem forem. Sinto que muitos confundem lé com cré. O mundo tá muito pirado, demais pro meu gosto. Existe um frenesi animalesco de querer vingar todos os anos de “repressão” moral/sexual/intelectual que me assusta. Eu tenho atolado meus pés nessa merda nos últimos tempos, num ceticismo sobre mim mesma. Durante algum tempo tentei fingir ausência de sentimentos, fingir uma indiferença falsa, e hoje ainda carrego isso comigo, mas estou tentando ser mais fiel aos meus sentimentos e ideias. Ideias mudam! E que bom que mudam, do contrário eu ainda andaria com uma camiseta do Sex Pistols pregando o anarquismo. Ideias vêm de algum lugar trazendo muitas bagagens. Que bom! Sim, eu sou influenciada por muitas coisas e pessoas, quem não é? Eu sou um conjunto de um monte de coisas, de um monte de gente. Que ótimo!
Estamos numa curva ascendente de superficialismo, de banalidades, futilidades, achando que isso é progresso, que isso é liberdade. Constantemente presos numa corrente de nada! De nada!





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Lugar comum. 25 de Julho de 2009.

Era um domingo daqueles em que você acorda subitamente iluminado sobre o “profundo e verdadeiro significado da vida”. Só quer saber das coisas superiores. Se irrita com as ninharias do cotidiano turbulento. Pensa até em deletar o seu Facebook, esquecer o whatsapp, afastar a si próprio de todo e qualquer aparelho eletrônico, artificial, símbolo de toda decadência espiritual do ser humano. Degradante. Tá. O celular e os fones de ouvido não! Mas nada de Deftones, Chevelle ou Godsmack berrando raivoso no seu ouvido. Coisas alegres e plásticas demais também não servem para esse dia. Você quer é escutar Maria Creuza, mergulhado para sempre num estado de contemplação, descobrindo todos os sentidos de todas as letras fantásticas e perfeitas do poetinha vagabundo. Você quer saber das palavras grandes, tudo, todas, todos, mundo, universo, sentido. Num frenesi literário quer ler todos os livros, todos os autores, conhecer todos os títulos e falar com propriedade de todos os assuntos. Nesse momento, sua mente arde em chamas, você olha tudo e todos com olhos de profeta, cumprindo um roteiro messiânico, você é o escolhido. Fica aliviado, extasiado, excitado, tranquilamente ansioso. Passeia pelas ruas com ares de sabedoria, com vistas poéticas. Percebe tudo de outra maneira, uma maneira perturbadoramente deliciosa. A noite cai, como você ainda não virou imortal, nem rico, vai pra casa. Se aquieta sob suas cobertas, vai lendo o segundo título da maratona literária do dia, pode ser qualquer um, todos querem dizer alguma coisa entre o mágico e transcendente. Vai adormecendo, com aquela leve sensação de mudança de rumo. Feliz, quase pleno... vai adormecendo... DESPERTADOR... som agudo, frenético, frêmitos debaixo do travesseiro... Acorda. Meio tonto se dá conta do que está acontecendo. Merda! Segunda. Mau humor matinal, natural. Atraso. Remelas, pasta de dente, escova de dente, escova de cabelo, roupa, sapato, pressa. Café mal passado, mal tomado. Ônibus, sacolejos, sorrisos afetados, cumprimentos tacitamente impostos. E naquele circunlóquio forçado do trabalho nas manhãs de segunda alguém lhe pergunta “e você, o que fez ontem?”, você silencia por alguns instantes... “nada demais, nada demais não”.
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Aquele dos vampiros - 02 de Junho de 2009.


Ele falava de algo entre a vida e a morte. Transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Acontecia numa dessas rodas de pequenos intelectuais galãs e com estilos todos próprios. Pretensos intelectuais de merda que, boêmios, serviam muito mais pra bêbados do que pra intelectuais, mesmo de merda. O fato é que hoje essas coisas se confundem mesmo. Enfim, reuniam-se eles, em torno de uma mesa, num boteco qualquer, imersos pela fumaça dos seus cigarros ordinários. Todos famintos de atenção, todos anêmicos de importância. Foi então, numa súbita iluminação, que percebeu, durante seu discorrer longo e arrastado, todos aqueles sorrisos egoístas e gestos afetados por demais. Enxergou a si próprio numa fila onde todos esperavam sua vez de falar. Não queriam escutar, talvez nem mesmo quisessem ou esperassem ser escutados. Queriam encenar uma combinação frenética de gestos e palavras sobre transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Assim, como quem realmente está ocupado, profundamente envolvido dramaticamente.
Por ocasião de sua súbita e oportuna iluminação, ele simplesmente pegou seu copo, deu fim à sua dose de vodka, apagou seu toco de cigarro ordinário no cinzeiro abarrotado e levantou-se. Suspenso ma confusão de vozes da competição. Virou-se e seguiu embora sem que ninguém desse pelo seu movimento. Amarelos em suas febris expressões de si, continuavam a fingir uns aos outros, e assim todas as noites, indefinidamente.
Em seu quarto abre um livro, daqueles bons, de se devorar em algumas poucas horas. Acende um cigarro, serve uma dose de vodka e se aventura pelas páginas, páginas que querem apenas sua leitura... e terão...

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* Esta pode ser uma obra de ficção, ou não. Qualquer semelhança com fatos, lugares ou pessoas pode ser real, ou não.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Mais um pouco sobre ser mãe.

A mãe chega em casa e, antes de tudo, dá uns bons grudes e agarrões no seu pequeno, que é pra recarregar as energias. Depois oferece água, e então dá um "gute". Dá mais uns grudes, e oferece mais água, tira o copinho de água da mão do pequeno porque ele começa a atirar água pelo chão e na televisão, não está com sede não. A mãe então prepara o banho, e prepara a roupa calculando se vai esfriar durante a madrugada, porque o pequeno não dorme tapado, nem pensar! É temperamental. Dá o banho, seca, passa creminho, veste, passa colônia, penteia o cabelinho, tudo isso fazendo muitas palhaçadas pra segurar a atenção do mocinho, assim ele não sai correndo nu pela casa antes que ela termine todo o processo. 
Depois, arruma a janta. Dá remedinho, dá a janta. Tira o pequeno da cadeirinha e o libera pra olhar seu desenho. Só então é que a mãe vai se lembrar que ela existe, que ela tem fome e que está morrendo de sede. 

Muita gente que não tem filhos se assusta com a rotina de ter um filho. Tudo isso soa como sacrifício, como uma espécie de heroísmo materno. Mas o que muitos não sabem é que não é sacrifício nenhum. É prazer, é felicidade, é alegria, é satisfação, é amor. 

Não quero dizer com isso que a maternidade é um mar de rosas, e que todas as mulheres deveriam ser mães. Não estou pleiteando a maternidade, mas narrando minha experiência como mãe. É cansativo? Sim, muito! Às vezes ficamos estressadas, desanimadas? Sim. Mas e o que mais na vida não nos cansa vez por outra? O que na vida não nos estressa ou desamina de vez em quando? A maternidade não é nenhum mérito supremo, nenhuma habilidade perfeita que nos exija sabedoria plena sobre o que estamos fazendo. Ser mãe é algo incrível, e antes de tudo é algo que nos dá tanta felicidade, nos fornece tamanha energia. E nada disso é porque somos mães, mas é porque temos filhos. Parece confuso, mas as mães vão entender exatamente o que quero dizer. Assistimos ao crescimento desses pequenos e frágeis seres, ao seu desenvolvimento enquanto seres humanos. Provocamos sorrisos fantasticamente sinceros, e recebemos um amor totalmente altruísta.

Escrito em 07.12.2015

sábado, 30 de julho de 2016

O paradoxo do machismo


O machismo é nocivo tanto às mulheres quanto aos homens. Às mulheres pelos mesmos motivos óbvios e tristes de sempre: violência e abuso domésticos, sobrecarga de responsabilidades, desigualdade salarial, desigualdades sociais as mais variadas, acúmulo exaustivo de jornadas, etc.

Aos homens o machismo inflinge a inutilidade e a acefalia. Temos gerações seguidas de gerações de homens que simplesmente não sabem viver sozinhos, não sabem lavar suas próprias roupas, não sabem preparar sua comida, não sabem cuidar da sua própria casa. Não sabem, sobretudo, administrar as questões da vida doméstica. Não sabem, enfim, administrar a própria vida com independência. Passam da tutela de mães/empregadas, às mãos das esposas, que ingenuamente herdam a hercúlea tarefa de fazer tudo pelo marido. Em relação aos filhos, quando os tem, o mesmo se passa. Ainda que amem genuinamente sua prole, a esmagadora maioria das tarefas e responsabilidades sobre a vida e saúde do filho recaem sobre a mãe. "Ah, mas eu ajudo", alguns gritarão aí na platéia. Qualquer ajuda é sempre bem vinda quando falamos de um parente ou amigo próximo. Quando estamos falando do pai "ajuda" é muito pouco, ajuda é uma migalha, é uma esmola, ajuda é nada! 

    É verdade e fundamental dizer que os principais agentes de manutenção dessa situação somos nós, pais e mães, que criamos esses homens reforçando esses maus hábitos, reproduzindo e naturalizando os "papéis" feminino e masculino. As mães, com o consentimento mudo dos maridos, o fazem pegando as camisas dos filhinhos - já com trinta anos - para lavar, limpando seus quartos e a casa onde moram sem nunca fazê-los perceber que isso deveria ser tarefa de todos. 


Sinto que essa mentalidade vem mudando. Já existem homens prontos à pegar em vassouras, baldes e fraldas sujas. E isso me deixa feliz. Contudo, ainda vejo e escuto situações as mais absurdas!!  Nós mulheres devemos sacudir o mundo! Nós estamos criando esses futuros homens! E já está mais do que na hora de quebrar esse ciclo vicioso e danoso. 

  
 Por isso, pergunto a vocês mulheres, mães, tias, avós e madrinhas: Que tipo de homem você quer criar para o mundo?? Aliás, que tipo de ser humano você quer criar para o mundo??
O machismo é mesmo paradoxal. Reside sobre o pilar da superioridade masculina, mas sua principal e mais imediata consequência é a total dependência do homem à mulher nas situações mais cotidianas e banais da existência. Vá lá entender!




Escrito em 07/01/2016