segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Dexter New blood: Um final inesperado, desconfortável e coerente.

Obs.: Esse texto contém spoilers e é dedicado, principalmente, mas não somente, àqueles que já assistiram o final da nona temporada. 



Enquanto fãs, nós esperamos ansiosamente pelo tema animado e clássico da abertura de Dexter. Decepcionados, de início nos escapa o porquê da sua ausência. Com o tempo percebemos que essa temporada tem um timbre muito mais sombrio, incompatível com o cinismo alegre da abertura original...

 




Ao longo das oito temporadas anteriores, nós assistimos incansavelmente o serial killer Dexter Morgan se safando de seus crimes das formas mais inacreditáveis, e às custas de muitas vidas e de personagens chaves da trama do seriado. Lembremo-nos, pois, do trágico desfecho da oitava e última temporada, com a morte de sua irmã Debra Morgan. Uma personagem extremamente carismática e importante na vida de Dexter.

Com certeza, não é à toa que essa lembrança nos é provocada pela presença dela, já no início de Dexter New Blood. Porém, na nova trama ela assume o papel de contrapeso psicológico, que até então fora desempenhado pelo pai dos dois, Harry. Dessa feita, ela é quem está na mente de Dexter o tempo inteiro contra-argumentado os seus impulsos mais espontâneos de serial killer. A dinâmica entre Debra e Dexter pode ser entendida simbolicamente como o conflito permanente entre o sentimento de culpa e a autojustificativa do dark passenger, e isso é fundamental para entendermos o desfecho da nona temporada. Porque essa última temporada na verdade não é sobre o Dexter, e sim sobre o seu filho, Harrison.

Então, o que vemos é a triste jornada de um adolescente, que depois de sofrer uma situação dolorosa de abandonos sucessivos, voluntários ou involuntários, segue em busca de um pai que – ele descobriu - forjou a própria morte e o abandonou. Tudo se torna ainda mais doloroso se lembrarmos o amor que Dexter dedica ao Harrison até o final fatídico da temporada oito, quando ele é levado a forjar a própria morte e desaparecer, deixando Harrison com Hannah, que anos depois morre de câncer, deixando Harrison para o sistema de adoção, onde o menino vai sofrer novos traumas e abandonos. O abandono aqui é uma chave muito importante de leitura.

Harrison e Dexter compartilham um fato importante: ambos nasceram em sangue. Ambos presenciaram a morte violenta de suas mães. Rita, mãe de Harrison, sendo uma das mortes na conta de Dexter, como consequência de sua irresponsabilidade no trato com o serial killer Trinity. Logo, o trauma de Harrison também pode ser colocado na conta do nosso carismático serial killer. Portanto, Dexter tem dois fantasmas em relação ao filho: Seria possível ter passado seu dark passenger geneticamente para o filho? & Presenciar a morte de Rita, ainda que muito jovem, poderia ter feito nascer em Harrison um dark passenger, como ele acredita que tenha acontecido com ele próprio?

O que logo percebemos em Harrison é uma raiva mal controlada e mal direcionada. Um comportamento errático, agressivo e violento, fruto direto de uma incapacidade de se conectar com o seu pai que, a despeito de todo o esforço, mantém um abismo de segredos intransponível entre os dois. O adolescente busca de alguma forma uma justificativa plausível do abandono cruel que sofrera por parte do pai, ao mesmo tempo em que busca uma conexão de pai e filho.

Dexter – e nós também enquanto telespectadores – é levado a ler o comportamento de Harrison como a possível presença de um dark passenger. O dilema que ele vive então é o de se abrir ou não com o filho. Baseado, finalmente, na crença de que Harrison é como ele, e na reivindicação da responsabilidade em passar “o código” ao filho, Dexter resolve revelar a verdade irrestritamente ao jovem.

Nesse momento nós vemos uma virada tocante na dinâmica entre pai e filho. Quando o mistério do motivo do abandono é finalmente exposto e explicado, Harrison tem uma espécie de libertação da raiva. Isso fica muito claro nas cenas subsequentes à revelação de Dexter ao seu filho, principalmente, após o assassinato de Kurt, do qual o adolescente participa como expectador e ouvinte. Até esse momento ainda somos levados a pensar que Harrison pode ser um psicopata como o pai. Porém, logo somos instados a questionar essa ideia, pois o personagem dele muda de acordo com a evolução da dinâmica com seu pai.

A aceitação e o acolhimento, por parte de Harrison, da condição monstruosa de seu pai, residem muito mais na possibilidade de conexão do que na identificação com este. O caminho que ele encontra para chegar até o pai não é a partir de um dark passenger compartilhado, mas sim pelo pai real que ele finalmente vê revelado diante de si. Toda a raiva dá lugar a um menino carinhoso e atencioso. Portanto, a fonte da raiva de Harrison não era um suposto dark passenger, que ele teria herdado de Dexter, mas algo muito mais óbvio, o abandono incompreendido que sofrera pelo pai.

A frase final de Harrison para seu pai é por demais dolorosa, e traz à tona aquilo que penso ser a essência do New Blood, a expiação e a desconstrução de Dexter como um suposto anti-herói: 

- Eu não tenho raiva porque sou como você, eu tenho raiva por causa de você.

Um final bastante doloroso, e inesperado, pois talvez esperássemos que pai e filho, se reconectando e sendo iguais, matassem juntos e felizes para sempre, combatendo criminosos por meio do “código”, algo deveras cínico, e que nos leva para uma outra reflexão desconfortável que o seriado propõe, pois aponta de forma afiada o dedo para o telespectador questionando finalmente sua torcida irrefletida pelo mal. Buscamos argumentos, assim como Dexter luta e sofre por buscar durante as nove temporadas inteiras, de que o quê ele faz é certo e um bem para a sociedade. “Ele limpa o lixo e torna o mundo um lugar melhor”. Afinal, “Quantas vidas ele salvou tirando a vida das suas vítimas?”

                Mas, no fim de contas, o que o desfecho do seriado nos faz lembrar de forma pungente é que Dexter é um psicopata frio e perigoso, com apenas uma leve sombra de humanidade naquilo que se refere ao seu filho, a única forma de amor que reconhece ter sentido, como ele mesmo fala em suas últimas palavras. Em que pese essa sombra de amor ao filho, todas as suas escolhas levaram inexoravelmente ao sofrimento incalculável não só deste, como de todos em torno de Dexter, palavras do próprio filho nos momentos dramáticos finais.

                Harrison matar seu pai é simbólico em grande medida, mas também é um ato de misericórdia, e porque não dizer também de libertação, já que é exatamente esse o sentimento que a fantástica atuação final de Michael C. Hall nos inspira. Um sentimento de libertação final e de alívio.

                O jovem finalmente compreende a atitude do pai, e percebe que ele esteve certo em se afastar, em ter fingido a própria morte. Mas também compreende que ele próprio precisava dessa jornada para entender o porquê do abandono paterno e superar o sentimento de rejeição, que era a fonte de toda sua raiva. 

                A reflexão amarga que nos fica é: existe alguma justificativa plausível para o mal? O mal causado àquele que é mau é de alguma forma justificável? E a cadeia de acontecimentos que essa pretensa justiça engendra em si não pode causar ainda mais mal no mundo?