“Só mesmo a literatura, que é a expressão da vida no que ela oferece de beleza e feiúra, de falso ou verdadeiro, de virtuoso ou de maligno, poderia reproduzir as maldades e as paixões humanas. Paralelamente, o leitor se defronta com os aspectos mais dolorosos e trágicos da vida, evidenciados em perfis de personagens degenerados ou doentes dos nervos, ou até mesmo personagens primeiramente inocentes, mas que delinqüiram pela força das circunstâncias.” [MESSA, 2002]
Ao ler Angústia (1936), do autor brasileiro Graciliano Ramos, é impossível não estabelecer uma correlação com a obra Crime e Castigo (1866), do russo Fiódor Dóstoiévski. Apesar das diferenças estruturais da trama, as duas obras se aproximam muito ao tratarem do homicídio a partir da trajetória do assassino.
Apesar de apresentarem motivações distintas – passional/material -, os dois autores descrevem com muita sensibilidade os devaneios sombrios que assolam as personagens em relação ao crime.
“Não é fácil cometer um crime. Você tem que driblar seus inimigos internos, responsabilidade, valores ético-morais, juízo crítico, sentimento de culpa, noção de monstruosidade, coisas que são realidade no seu organismo, como estômago, fígado e coração.” [MELO, 1994]
Os autores traduzem para a linguagem escrita, o discurso da mente homicida, que se pensa entre a coerência e o desatino, o que nos fornece os valores e padrões morais e éticos de determinado tempo e espaço.
As duas obras apresentam uma detalhada narrativa dos processos emocionais, psicológicos e racionais pelos quais os personagens passam até chegar ao extremo dos crimes. Exploram a ideia de matar, o pensamento, a gestação do crime, ainda que inconsciente; a vontade de matar, as motivações e justificativas que as personagens usam em seu discurso interno; e o ato de matar.
Dóstoiévski vai além e nos traz de maneira mais contundente um debate ético e moral – quase filosófico – sobre o crime. Em Crime e Castigo, o crime é o começo de uma história que também pretende trabalhar a personagem em seu processo interno posterior ao crime, numa jornada redentora, o castigo. Graciliano é mais sutil, tratando da ânsia assassina a partir do caráter mais passional do crime, que é o ápice da trama.
Inicialmente, embora tivesse lido Crime e Castigo, Graciliano negou qualquer influência da obra russa. Influência que, segundo seu filho Ricardo Ramos, o autor teria reconhecido no leito de morte, em 1953.
Repasso abaixo alguns trechos emblemáticos das obras.
Em Angústia:
[...] a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado.
Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em conseqüência misturo coisas atuais a coisas antigas.
Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo.
Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer.
As aparências mentem. A terra não é redonda?
Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social.
Medo da opinião pública? Não existe opinião pública. O leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo atrapalha-se e não sabe para que banda vai.
O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa.
Em Crime e castigo:
- Dá-me licença que te faça uma pergunta a sério? – disse o estudante, ainda um pouco exaltado. – É claro que eu, há pouco, falava de brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que não dá proveito a ninguém, e que até, pelo contrário, a todos prejudica; que nem ela própria sabe para que vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente… Compreendes? Compreendes? [...]Do outro lado energias jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isto aos milhares e em toda parte. Mil obras e boas iniciativas se poderiam fazer com o dinheiro que esta velha deixa ao mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos… E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida… mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas… É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. Ela se alimenta da vida alheia, é má.
- Oh, que desmancha-prazeres! Os princípios! Tu te moves por princípios, como se fossem molas; não te atreves a atuar livremente; para mim, o fundamental é que o homem seja bom. E, francamente, reparando bem, em todas as classes não há muitas pessoas boas.
Que hei de eu dizer-lhes? Já há meio ano que convivo com Rodka: áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Generoso e bom ele é. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso, às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que beira a desumanidade; é assim mesmo, como se nele alternassem dois caracteres desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Não se interessa por uma coisa que em outra época o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso. [Perfil de Rodka segundo seu amigo Razumíkhin]
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