quinta-feira, 23 de abril de 2009

Feliz Ano Novo - 1975. Rubem Fonseca.


Feliz Ano Novo foi minha primeira leitura de Rubem Fonseca e, pra ser honesta, eu realmente estava virgem de qualquer expectativa a seu respeito, pois não sabia exatamente o gênero ou impressões na sua escrita. Poderia ir correndo no Google e achar alguns parágrafos definindo o autor, mas não o quis fazer. O que, creio, ter sido positivo. É um livro de contos, e, aos primeiros viajantes, sim, a primeira história, que intitula o livro inclusive, é bastante visceral, despida de qualquer escrúpulo moral ou lingüístico, como a própria vida, diga-se. Os livros, de certa forma, servem para nos transportar a outras realidades que não a nossa. Rubem nos transporta para outras realidades, todavia, são outras não por não estarmos nelas, são outras porque teimamos em negá-las como nossas.
Aqui vão alguns trechos:
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Feliz Ano Novo:
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Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Corações Solitários:

Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defender é você mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça escândalo. Você não tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve. Te vira, gordinha.

Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer se não gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um homem sincero. Tu não és groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua.

Botando pra quebrar:

[...] o mundo estava cheio de otários que engoliam qualquer porcaria desde que o preço fosse caro.

Passeio Noturno
Parte II

A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.

Dia dos namorados:

Quando nasci me chamaram de Paulo, que é nome de papa, mas virei Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.

Agruras de um jovem escritor:

Era estudante de enfermagem, mas gostava mesmo era de cinema e poesia. Fernando Pessoa, Drummond, Camões (o lírico), aquela coisa manjada de sempre, Fellini, Godard, Buñuel, Bergman, sempre a mesma coisa, raios, sempre as mesmas figuras.

José, meu grande amor, adeus. Não posso obrigá-lo a me amar com o mesmo fervor que lhe dedico. Tenho ciúmes de todas as lindas mulheres que vivem à sua volta tentando seduzi-lo; tenho ciúmes das horas que você passa escrevendo o seu importante romance. Oh, sim, amor da minha vida, sei que o escritor precisa de solidão para criar, mas esta minh’alma mesquinha de mulher apaixonada não se conforma em partilhar você com outra pessoa ou coisa.

- E você? Sou assassino de mulheres – podia ter dito, sou escritor, mas isso é pior do que ser assassino, escritores são amantes maravilhosos por alguns meses apenas e maridos nojentos pela vida afora.
Intestino Grosso:

Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.

Já foi dito que o que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita.

O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.

Os filósofos dizem que o que perturba e alarma o homem não são as coisas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito delas, pois o homem vive num universo simbólico, e linguagem, mito, arte, religião são partes desse universo, são as variadas linhas que tecem a rede entrançada da experiência humana.

Meu slogan podia ser, também, aodte um animal selvagem e mate um homem. Isso não porque odeie, mas ao contrário, por amar meus semelhantes. Apenas tenho medo de que os seres humanos se transformem primeiro em devoradores de insetos e depois em insetos devoradores. Em suma, tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo, criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo, para os filhos comerem. Aliás é chegado o momento de fazermos, nós os artistas e escritores, um grande movimento cultural e religioso universal, no sentido de se criar o hábito de nos alimentarmos também com a carne dos nossos mortos, Jesus, Alá, Maomé, Moisés, envolvidos na campanha. Está havendo um terrível desperdício de proteínas. Swift e outros já disseram coisa parecida, mas estavam fazendo sátira. O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica, o Canibalismo Místico.”

Para cada Central Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da bomba explodir.

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