segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O macaco nu. Desmond Morris, 1967.


Alguns livros simplesmente mudam sua vida para sempre. Constituem marcos evolutivos na sua maneira de pensar, caracterizam a expansão das suas perspectivas e idéias. Depois de ler esse livro você nunca mais vai olhar as cenas do cotidiano humano, ou mesmo suas próprias atitudes e comportamentos com os mesmos olhos e referências. Uma viagem incrível através do comportamente humano. Não só recomendo, como acho que a leitura é obrigatória para todo e qualquer macaco nu.
Aqui vai apenas alguns trechos da introdução para que percebam do que se trata:

"Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Essa insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais. O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila. Trata-se de um símio com enormes qualidades vocais, agudo sentido de exploração e grande tendência a procriar, e já é mais do que tempo de examinarmos o seu comportamento básico.
Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance da minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas das suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de se ter tornado tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado, e embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isto causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos – e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução. Na verdade, o Homo sapiens andaria muito menos preocupado e sentir-se-ia muito mais satisfeito, se fosse capaz de aceitar esse fato. É talvez nesse sentido que um zoólogo pode ajudar.
Ao encarar estes problemas, avalio bem quanto me arrisco a ofender certas pessoas. Muita gente não gosta de pensar que somos animais. E podem dizer que eu avilto a nossa espécie quando a descrevo em rudes termos animais. Posso apenas afirmar que não é essa a minha intenção. Outros ofender-se-ão pelo fato de um zoólogo se intrometer nos seus campos especializados. Mas eu admito que essa perspectiva poderá ter grande valor e que, apesar de todos os desfeitos, introduzirá novos (e de certa maneira inesperados) esclarecimentos sobre a natureza complexa da nossa extraordinária espécie."

(Introdução, páginas 7 e 10)



MORRIS, Desmond. O macaco nu. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 1967. 188 p.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pergunte ao pó. John Fante, 1939


O Fante é um autor extremamente visceral. Consegue injetar as mais profundas e controversas emoções numa história simples de roteiro. Traz em sua obra uma carga extremamente grande de existencialismo. Seu personagem, Arturo Bandini é uma espécie de anti-herói, representando alguém mais próximo da realidade, com suas mágoas, ansiedades, frustrações, desejos. Um excelente autor, com uma excelente obra.



FANTE, John. Pergunte ao pó. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 205 p.










Não era realmente um mentira; era um desejo, não uma mentira... (p. 14)
 

Os livros dizem não, a noite grita sim.


...este é o seu pensamento, que você nasceu de pais miseráveis, pressionados porque eram pobres, fugiu da sua pequena cidade do Colorado porque era pobre, esperando escrever um livro para ficar rico, porque aqueles que o odiavam lá no Colorado não vão odiá-lo se escrever um livro. Você é um covarde, Bandini, um traidor da sua alma, um péssimo mentiroso diante do seu Cristo ensangüentado. É por isso que escreve, é por isso que seria melhor que você morresse. (p. 21)


Desci os degraus de Angel’s Flight até a Hill Street: cento e quarenta degraus, com os punhos cerrados, sem medo de homem algum, mas apavorado pelo túnel da rua Três, apavorado de atravessá-lo a pé – claustrofobia. Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o romrom e o zumzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso. (p. 22)


Aqui estava a igreja de Nossa Senhora, muito antiga, a argila escurecida pela idade. Por motivos sentimentais, vou entrar. Por motivos sentimentais, apenas. Não li Lênin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: li O anticristo e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatões.

[...]

Uma prece. Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo Poderoso, vou jogar limpo nesta questão: vou Lhe fazer uma proposta: Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E Lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o Velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém. (p. 24)


Bandini (sendo entrevistado antes de partir para a Suécia): Meu conselho para todos os jovens escritores é bastante simples. Eu lhes recomendaria que nunca evitassem uma nova experiência. Eu os instaria a viver a vida em estado bruto, a atracar-se com ela bravamente, a golpeá-la com os punhos nus. (p. 25)


Magoavam-me tanto que eu jamais poderia me tornar um deles, empurraram-me para os livros, empurraram-me para dentro de mim mesmo, empurraram-me para fugir daquela cidadezinha... (p. 57)


Conversamos, ela e eu. Perguntou sobre o meu trabalho e era um pretexto, não estava interessada nisto. E quando respondi era um pretexto. Eu também não estava interessado no meu trabalho. Só havia uma coisa que nos interessava, e ela sabia, pois eu deixara claro com a minha vinda. (p. 115)


Doente na alma, tentei encarar a provação de buscar perdão. Mas de quem? De que Deus, de que Cristo? Eram mitos em que eu certa vez acreditara e agora eram crenças que eu considerava mitos. Este é o mar, e este é Arturo, e o mar é real e Arturo o considera real. Então me afasto do mar e, por toda parte onde olho, vejo terra; sigo caminhando e a terra vai se estendendo até o horizonte. Um ano, cinco anos, dez anos e não vi o mar. Digo a mim mesmo, mas o que aconteceu ao mar? E respondo: o mar está ali de volta, de volta no reservatório da memória. O mar é um mito. Nunca houve um mar. Mas havia um mar! Eu lhes digo que nasci à beira-mar! Banhei-me nas águas do mar! Deu-me alimento e deu-me paz e suas fascinantes distâncias alimentaram meus sonhos! Não, Arturo, nunca houve um mar. Você sonha e deseja, mas atravessa a terra desolada. Nunca verá o mar de novo. Era um mito em que certa vez acreditou. Mas tenho de sorrir, porque o sal do mar está no meu sangue e podem existir dez mil estradas sobre a terra, mas nunca irão me confundir, pois o sangue do meu coração sempre voltará para a bela fonte.

Então o que devo fazer? Devo erguer a boca ao céu, tropeçando e balbuciando com uma língua temerosa? Devo abrir o peito e bater nele como num tambor, buscando a atenção do meu Cristo? Ou não será melhor e mais sensato que me cubra e siga em frente? Haverá confusões e haverá fome; haverá solidão com apenas minhas lágrimas como pequenos pássaros confortadores, rolando para suavizar meus lábios secos. Mas haverá também consolação e haverá também beleza como o amor de uma garota morta. Haverá algum riso, um riso contido, e quieta espera na noite, um medo macio da noite como o beijo pródigo e mordaz da morte. Então haverá noite e os doces óleos das praias do meu mar, derramados sobre meus sentidos pelos capitães que desertei na sonhadora impetuosidade da minha juventude. Mas serei perdoado por isto, e por outras coisas, por Vera Rivken e pelo incessante bater das asas de Voltaire, por parar para ouvir e observar aquele fascinante pássaro, para todas as coisas haverá perdão quando eu retornar à minha terra natal pelo mar. (p. 120/121)


Que bem faz a um homem se ele ganha o mundo inteiro, mas sofre a perda de sua própria alma? E então aquele pequeno poema: Tome todos os prazeres de todas as esferas, multiplique-os por anos intermináveis, um minuto de céu vale todos eles. Quão verdadeiro! Quão verdadeiro! Eu lhe agradeço, oh luz celestial, por indicar-me o caminho. (p. 131)


A noite toda, choramos e bebemos, e bêbado eu podia dizer as coisas que fervilhavam no meu coração, todas aquelas palavras bonitas e os símiles inteligentes... (p. 163)


Saí para uma caminhada pelas ruas. Meu Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade. (p. 200)