terça-feira, 17 de maio de 2011

O novo século - Eric Hobsbawm, 1999

Esse livro é uma entrevista de Eric Hobsbawm concedida ao jornalista italiano Antonio Polito. A entrevista é dividida em alguns blocos principais que abordam questões sobre guerra, política, capitalismo, globalização e até mesmo meio ambiente. A entrevista busca, principalmente, a opinião do historiador sobre os possíveis e prováveis rumos da humanidade no novo século  XXI. Para quem não conhece, Eric Hobsbawm é um renomado historiador, autor de obras fundamentais que constam na bibliografia obrigatória dos currículos de História. Atualmente, Hobsbawm está com 93 anos [tinha em torno de 80 quando foi entrevistado], o que o dota de experiência e autoridade incríveis, aliadas ainda a uma intelectualidade invulgar, uma combinação de elementos que, como não poderia deixar de ser, resulta em perspectivas ampliadas e reflexivas que fazem com que nós, leitores, mudemos não só os rumos de nossos pensamentos, mas também o ponto de onde observamos o mundo. Segue a ficha de leitura.

HOBSBAWM, E. J. O novo século: entrevista a antonio polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 196 p.



Mas a previsão do futuro deve necessariamente basear-se no conhecimento do passado. Os acontecimentos futuros precisam ter alguma relação com os do passado, e é nesse ponto que intervém o historiador. Ele não está em busca de lucros, no sentido de que não explora seus conhecimentos para assegurar ganhos. O historiador pode tentar identificar os elementos relevantes do passado, as tendências e os problemas. Por isso, é preciso que nos arrisquemos a fazer previsões, mas tomando certos cuidados. Entre os quais, tendo sempre a consciência do perigo de macaquear o cartomante. Precisamos entender que, na prática e por princípio, grande parte do futuro é inteiramente inacessível. Creio que são imprevisíveis os acontecimentos únicos e específicos, ao passo que o verdadeiro problema para os historiadores é entender o quão importantes eles são ou podem vir a ser. Às vezes, podem se mostrar significativos do ponto de vista da análise, mas nem sempre é assim. p. 8

            Eu fiz uma escolha ao definir 1991 como o final do Século Breve (de certo modo, foi bem mais fácil estabelecer seu início em 1914), mas esta não era a única possibilidade quando escrevi meu livro em 1994. Eu escolhi essa data por ser mais conveniente. As datas exatas sempre são questões de conveniência histórica, didática ou jornalística. p. 9

           Só é possível saber com exatidão o fim de um período quando este já terminou há muito tempo. p. 10


Em última análise, em que consiste a lição do marxismo?

            Acima de tudo, o fato de ter compreendido que determinada etapa histórica não é permanente, que a sociedade humana é uma estrutura bem-sucedida porque é capaz de mudança e, assim, o presente não é seu destino final. Segundo, ter estudado o modus operandi, a maneira de funcionamento de um sistema social específico e, por que motivo ele gera ou deixa de gerar as forças de mudança. [...] Por esse motivo, a história que mais me interessa é a analítica, ou seja, aquela que procura analisar o que ocorreu em vez de simplesmente descobrir o que aconteceu. Isto não siginifica que possa ser usada para se compreender exatamente de que modo o mundo desenvolveu-se de certa maneira, mas ela pode nos dizer de que modo os vários elementos reunidos no interior de uma sociedade contribuem para a criação de um dinamismo histórico, ou inversamente, não conseguem provocar tal dinâmica.  p. 13


E existem diferenças na maneira como a guerra é travada?

            Existem e são diferenças enormes. Algumas eram previsíveis, outras nem tanto. A primeira é a transformação da guerra ocasionada pelos avanços tecnológicos. No início, nosso temos é que estes levassem a conflitos mais sanguinolentos e devastadores. No entanto, desde a Guerra do Golfo, sabemos que a tecnologia avançada permite um poder de destruição muito mais preciso e seletivo. As bombas inteligentes são capazes de escolher determinados objetivos e evitar outros. Colocando de lado os incidentes operacionais e os riscos de “fogo amigo”, essa nova realidade é importante porque restaura a distinção entre combatentes e não-combatentes, distinção que havia desaparecido no século XX quando as guerras envolveram cada vez mais as populações civis.
            Do outro lado, porém, isto possibilita o recurso cada vez mais freqüente e caprichoso aos meios de destruição. Para que acredita ser tão poderoso a ponto de escolher exatamente o que destruir, torna-se mais fácil sucumbir à tentação de resolver problemas com bombardeios, como ocorreu no Iraque. Neste sentido, os avanços tecnológicos aumentam o risco de conflitos armados, ao menos por parte das nações com acesso às novas armas. Ao mesmo tempo, eles levam a uma subestimação dos riscos do que se costuma chamar de “danos colaterais”. Não estou me referindo apenas a pessoas mortas por engano, mas aos enormes danos causados à infra-estrutura que permite a uma determinada comunidade sobreviver e produzir. O fato de que não há risco de matar seres humanos em demasia poderia nos levar a considerar esta uma maneira bastante civilizada de conduzir uma guerra.
            Por fim, em um plano mais baixo surgiu um enorme hiato, o dos povos que não têm acesso à tecnologia de ponta; entre as guerras conduzidas por aviões voando a 15 mil metros de altitude e lançando bombas extremamente sofisticadas, e as guerras no solo, com combates corpo a corpo, no quais as pessoas se matam até mesmo com machados ou facões, como ocorreu na África central.
            No passado, os “guerrilheiros” estavam equipados com fuzis e metralhadoras; hoje possuem lançadores de foguetes e armas antiaéreas. Esta é outra conseqüência da Guerra Fria, que inundou o mundo com armamentos sofisticados. Ainda que no período não tenha havido guerras entre as potências, as indústrias continuaram produzindo armamentos, como se estivesse em curso uma mobilização geral. É evidente que, com o fim da Guerra Fria, este imenso arsenal tornou-se imediatamente disponível. [...] Atualmente o mundo está repleto de armas, possibilitando a proliferação de grupos armados independentes. Eles não estão necessariamente vinculados a nenhum governo, mas encontram-se prontos para entrar em combate. p. 19


Não me parece que os governos entrem em guerra porque esta é justa ou injusta. Claro, eles costumam justificar suas ações militares alegando que são legítimas de modo a conseguirem o apoio da opinião pública. É essencial que esta seja convencida. É decisivo apresentar a guerra de tal maneira que as pessoas a vejam como algo legítimo e justo. Porém, não é fácil citar exemplos históricos de governos que foram à guerra por outros motivos que não seus interesses nacionais. p. 24


            Atualmente, os EUA consideram-se uma potência com a missão de estabilizar o mundo e, portanto, obrigada a recorrer, sempre que necessário, a operações policiais internacionais. Por isso, precisam demonstrar que, se necessário, suas forças podem intervir em qualquer parte do globo, de modo a convencer potenciais inimigos fora da área da OTAN. p. 28

           
            O mundo não será viável se uma nação pode dizer simplesmente: “Sou poderosa o suficiente para fazer o que quiser, e por isso farei o que bem entender”. p. 30

            Precisamos distinguir entre os dois significados do termo “Estado nacional”. No sentido tradicional, refere-se a um Estado territorial sobre o qual o povo que nele vive, a Nação, tem um poder soberano. Este é o sentido do Estado nacional que surgiu com a Revolução Francesa e, em parte, com a Revolução Americana. Trata-se de uma definição política, e não étnica ou lingüística, do Estado: é um povo que escolhe seu governo e decide viver sob determinada Constituição e determinadas leis.
            Em comparação, o outro significado do termo é muito mais recente e consiste na idéia de que todo Estado territorial pertence a um povo específico, definido por determinadas características étnicas, lingüísticas e culturais - e que isso constitui a Nação. Segundo essa idéia, apenas a Nação pertence ao Estado nacional, e todos os outros não passam de minorias que, embora vivam no mesmo local, não fazem parte da Nação. p. 30-31


            Os mitos nacionais são um outro campo no qual precisamos distinguir entre o que vem de baixo e o que é imposto de cima. Esses mitos não surgem espontaneamente das experiências efetivas da população. Trata-se de algo transmitido por outros: por livros, pelos historiadores, pelos filmes e, atualmente, pelos produtores dos programas de televisão. Em geral, os mitos nacionais não fazem parte da memória histórica ou de uma tradição viva, com exceção daqueles casos nos quais o que se tornou um mito nacional era um produto da religião. p. 32

            Por algum motivo, considera-se uma vantagem, do ponto de vista da psicologia social, ser capaz de orgulhar-se de uma longa história. É por isso que o nacionalismo, a despeito de ser um fenômeno recente, invariavelmente alega ser muito antigo.O motivo é que uma velhice venerável satisfaz a necessidade de permanência e o direito de precedência em relação aos outros. Trata-se, portanto, de um fenômeno extremamente complexo, o qual podemos explicar apenas por aproximações, pois não há nenhuma interpretação isolada convincente. p. 37


            Essa tendência dos Estados territoriais para ampliar a capacidade de exatidão, conhecimento, tecnologia, poder e ambição prosseguiu de modo quase ininterrupto, mesmo através do período da política de liberalismo mercantil, até o final da década de 1960. Dois exemplos me ocorrem.
            Um deles é o extraordinário êxito, no século XIX, de todos os principais Estados no sentido de desarmar suas populações. Em outras palavras, eles conseguiram transferir para seus próprios órgãos o monopólio dos meios de coerção. Antes disso, era mais fácil desarmar os camponeses do que os nobres. O próprio Maquiavel discute exaustivamente esse problema. No século XIX, é de fato notável como a maioria dos Estados consegue impedir que seus habitantes andem armados. Uma das raras exceções foram os EUA que, mesmo tendo condições para tal, preferiram não fazer isso. Mas no Canadá houve o desarmamento.
            O outro exemplo é a ordem pública, que é parte do mesmo fenômeno. O nível de ordem pública alcançado nos países europeus mais desenvolvidos é um fenômeno histórico extraordinário.
            Há ainda outro elemento, devido não tanto ao estabelecimento da democracia, e sim à participação das pessoas comuns no processo político: trata-se da lealdade e da subordinação voluntárias dos cidadãos ao seu governo. Esta não era uma lealdade às elites, mas ao Estado e à nação. As guerras baseadas no alistamento obrigatório não teriam sido possíveis sem isto. Cabe lembrar aqui o que Thomas Hobbes escreveu no século XVII: a única coisa que nenhum Estado, nem mesmo o Leviatã, pode fazer é obrigar as pessoas a matarem ou estarem dispostas a ser mortas. No entanto, os Estados modernos conseguiram fazer exatamente isso, e não poucas vezes. Embora muitas vezes tenham conseguido isso por meio do alistamento compulsório, também o fizeram apelando a cada cidadão e convencendo-o de que, se ele se identificasse com a coletividade, devia estar pronto para o ato supremo de abdicar de sua liberdade e de sua vida. A obediência voluntária ao Estado foi um elemento essencial na capacidade de mobilizar as populações, e também na de democratização.
            Esse processo desenrolou-se ao longo de séculos e alcançou seu ápice na década de 1960, quando todos os países do mundo, até mesmo os de capitalismo mais vançado, estruturaram-se sob a forma de Estados dotados dos mais amplos poderes. E isto vale sobretudo para os EUA. p. 41

            O poderio do Estado moderno alcançou seu ápice quando o protesto social foi de algum modo institucionalizado como parte do processo político normal, quase como um ritual. p. 42

            Uma das grandes questões que serão colocadas pelo século XXI é a da interação entre o mundo onde o Estado existe e aquele onde ele deixou de existir.
            Não podemos dizer se o mundo irá se tornar um local ainda mais difícil de ser administrado, por esse motivo ou pelo problema que mencionei antes, isto é, o fim da obediência das populações a seus governos. Durante a maior parte da história, sempre houve uma suposição generalizada de que os cidadãos obedeceriam a um governo efetivo, qualquer que fosse ele, e contasse ou não com a aprovação geral. Claro que, muitas vezes, o governo era respeitado por ser forte, mas, em outras, esse respeito baseava-se em uma idéia expressa por Hobbes, a de que qualquer governo eficaz é melhor que nenhum governo. p. 45


Em suma, o que gostaria de ressaltar é que a grande maioria dos povos no mundo aceitou a idéia de serem governados. p. 46

            Porém, de modo a explicar a distinção entre aparência e realidade, creio que precisamos reavaliar o que entendemos por “globalização”, e o que ela pode ou pretende alcançar. Vamos imaginar por um instante o estágio mais avançado de globalização: uma situação na qual todos os habitantes do planeta teriam, em qualquer local, acesso aos mesmos bens e serviços, supondo que tivessem os mesmos recursos e o mesmo dinheiro para gastar. Em outras palavras, viver na Antártida não seria mais problemático que viver em Roma ou Nova York. Se admitirmos que esses bens e serviços poderiam ser produzidos em volume suficiente para satisfazer toda a demanda, as pessoas não seriam afetadas por sua localização geográfica. Bem, ainda falta muito para chegarmos a esse ponto. Sobretudo por motivos práticos, pois as pessoas não dispõem dos mesmos recursos, algumas são ricas, outras são pobres, ou então o poder de que dispõem é desigual, ou, ainda, algumas são livres e outras estão em prisões. Isto, porém, nada tem a ver com a dimensão global: poderia ocorrer mesmo em uma cidade ou um país isolados e, portanto, não interessa aqui para os objetivos de nossa hipótese teórica.
            O problema é que, no caso de alguns produtos ou serviços, essa disponibilidade absoluta é impossível, mesmo em uma situação de total globalização. Os economistas estudaram esses “bens de prestígio” (positional goods) que, por sua própria natureza, existem em quantidades limitadas ou mesmo são coisas únicas. É possível assegurar que todos tenham o mesmo acesso à Coca-Cola, mas não a um ingresso para uma ópera no La Scala. Pela sua própria natureza, os ingressos para o La Scala são limitados, e não há maneira de produzir um número maior deles. Evidentemente, na prática poderíamos resolver o problema de outro modo: por exemplo, facilitando o acesso de todos por meio de discos com gravações das óperas montadas no La Scala. Mas não é a mesma coisa, tanto em termos teóricos como na realidade.
            Assim, em certo sentido, a globalização implica um acesso mais amplo, mas não equivalente para todos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avançada. Do mesmo modo, os recursos naturais são distribuídos de forma desigual. Por tudo isso, acho que o problema da globalização está em sua aspiração a garantir um acesso tendencialmente igualitário aos produtos em um mundo naturalmente marcado pela desigualdade e pela diversidade. Há uma tensão entre esses dois conceitos abstratos. Tentamos encontrar um denominador comum acessível a todas as pessoas do mundo, a fim de que possam obter coisas que naturalmente não são acessíveis a todos. O denominador comum é o dinheiro, isto é, outro conceito abstrato.
            Ao mesmo tempo, o processo técnico da globalização requer um elevado grau de padronização e homogeneização. Um dos grandes problemas do século XXI será definir qual o nível máximo de homogeneidade, além do qual haveria uma reação aversiva, e em que medida esse processo pode ser compatibilizado com a diversidade presente no mundo. p. 74-75

            Minha impressão é que, daqui a meio século, quando se debruçarem sobre a nossa época, os historiadores provavelmente irão dizer que a última parte do breve século XX terminou com duas coisas: o colapso da URSS e a bancarrota do fundamentalismo neoliberal, que dominou as políticas governamentais a partir do final da Época de Ouro. A crise global de 1997-98 pode muito bem ser considerada o momento decisivo dessa virada. p. 80

            Não há nada mais natural que uma economia baseada na competição tenda para o monopólio. A competição capitalista leva a uma concentração de capital. p. 86

            Mas, de maneira geral, hoje a população mundial é três vezes maior do que no início do século XIX, e todas essas pessoas são fisicamente mais fortes, mais altas, mais saudáveis e vivem por mais tempo. Sofrem menos fome e necessidades, desfrutam de uma renda maior e têm um acesso incomparavelmente maior a bens e serviços, inclusive aqueles que garantem maiores oportunidades na vida, como a educação. Isto vale até mesmo para os países mais pobres. Afinal, não houve uma situação de fome na índia desde 1943. Em quase todo o mundo, afora algumas raras exceções, a fome deixou de ser algo com que os seres humanos são obrigados a conviver.
            Isto significa que, pela primeira vez, a produção pode ser posta em sintonia com as demandas da massa da população. Nos países desenvolvidos, os seres humanos já não vivem sob o signo da carência, e podem escolher entre as coisas que desejam, em vez de terem de escolher entre não ter o suficiente para comer e não ter um teto para se abrigar. Elas não precisam mais se preocupar com o pão de cada dia, e têm apenas de decidir se querem seus sanduíches com pão italiano ou croissant, presunto cru ou cozido e tomates secos ou frescos.
            Com isso, houve uma transformação da economia. Não só em termos dos bens materiais, mas também dos serviços. Basta considerar o acesso à cultura, a quantidade de livros e discos lançados, o número de pessoas que podem consumir entretenimento e informação a qualquer hora do dia. É a primeira vez que isso ocorre na história da humanidade.
            Nos países desenvolvidos, até os mais pobres e miseráveis vivem incomparavelmente melhor que seus antepassados. Eis aí uma das razões pelas quais o neoliberalismo do “livre-mercado” obteve tanto sucesso, ainda que temporário. Seu objetivo não era eliminar a pobreza ou promover a redistribuição da riqueza ou a difusão da justiça social, mas, apesar de toda a injustiça existente, os pobres tendem a aceitar a situação, pois até mesmo eles dispõem de mais recursos.
            Em suma, é imenso o crescimento da produção e da disponibilidade de riqueza, e a maior parte da humanidade acabou sendo beneficiada. Esta é uma característica do século XX que deve ser levada em conta quando se faz uma avaliação daquele que foi, ao mesmo tempo, o melhor e o pior de todos os séculos. Nele morreram mais pessoas do que em qualquer outro século, mas no seu final existem mais pessoas vivendo melhor, com esperanças e oportunidades maiores. p.96-97

            A grande novidade é que, de todos os fatores de produção, os seres humanos são cada vez menos necessários. E o motivo é que, em termos relativos, eles não produzem tanto quanto custam. Os seres humanos não foram criados para o capitalismo. E isso ocasiona efeitos negativos sobre a produção. O que, na minha opinião, temos de buscar é uma outra maneira de distribuir a riqueza produzida por uma quantidade cada vez menos de pessoas, que no futuro pode chegar a ser na verdade uma quantidade ínfima. p. 98

           
           O volume de riqueza hoje em mãos de alguns indivíduos é simplesmente assombroso. Em termos globais, a riqueza do 1% mais abastado do mundo é imensa. Como isso irá afetar a política? É difícil dizer. Nos EUA, já vimos que indivíduos particulares podem, com seus próprios meios, tanto financiar suas próprias campanhas à presidência como influir decisivamente na campanha de outros candidatos. Hoje, os ricos podem fazer aquilo que antes estava ao alcance apenas de grandes organizações coletivas. Não tenho certeza de que entendemos plenamente todas as implicações desse fenômeno. p. 100


            Evidentemente, houve várias fases na maneira pela qual a esquerda se distingui em relação à direita. No início, a esquerda lutou contra os governos monárquicos, absolutistas e aristocráticos, e em favor de instituições burguesas como o governos liberal e constitucional. Tratava-se, portanto, de uma esquerda moderada, mas que sempre esteve disposta a mobilizar as massas para seus objetivos políticos. Desde o começo de sua história, a esquerda estava pronta para se tornar revolucionária. [...]
            Durante grande parte do século XIX, portanto, a divisão era entre o partido da mudança e o da estabilidade, ou, em termos mais específicos, entre o partido do progresso e o partido da ordem. A esquerda estava do lado da mudança, e era favorável às transformações políticas e sociais. Na verdade, ainda usamos essa terminologia: até hoje as pessoas de esquerda continuam a se definir como “progressistas”.
            Essa unidade de intenções foi aos poucos erodida pelas mudanças na estrutura de classes da sociedade. A antiga aristocracia dirigente foi substituída ou dividiu o poder com a nova burguesia dominante, que não se opunha a certo grau de mudanças radicais. Assim, no século XX, e de maneira mais clara em sua segunda metade, alterou-se a natureza do conservadorismo. Ele deixou de ser apenas o partido da ordem e da estabilidade, e passou a apresentar aspectos novos.
            [...] Por isso, a tradicional diferença entre a direita e a esquerda, entre um partido da ordem e da estabilidade, e outro da mudança e do progresso, tornou-se inútil em termos conceituais. p. 102-104

            Desde a década de 1960, surgiu uma nova esquerda. O problema é que ela não possui base sólida em uma classe, tal como a esquerda operária, nem base eleitoral significativa. Ela nem sequer possui mais um projeto único. Vários dos movimentos que se consideram parte da esquerda tendem a se concentrar em questões muito específicas. p. 110


            Há outro aspecto na crise da esquerda: o declínio da política como instrumento confiável de transformação social. Tanto nos EUA como na Europa, as massas demonstram uma apatia cada vez maior em relação à política, não só em termos de participação ativa, mas até de mera disposição para votar. Elas parecem estar muito mais interessadas em seu extrato bancário, em suas férias e em seus jardins. A esquerda, por outro lado, é a própria encarnação da experiência coletiva da política e tem horror ao individualismo.

            Há outro fator ainda mais profundo que debilitou muito a esquerda. Em termos econômicos, trata-se da sociedade de consumi. Em termos intelectuais, é a identificação de liberdade e escolha individual, sem qualquer referência às conseqüências sociais. [...] O processo de privatização condiciona até mesmo o senso comum das pessoas e isto provocou um grande abalo na esquerda, que luta em favor de objetivos e persegue a justiça social. [...]
            A política democrática só existe em função e na mediada em que é possível organizar os indivíduos e fazer com que atuem coletivamente. Mas torna-se cada vez mais difícil mobilizar as pessoas; e isto vale para todos os movimentos políticos, não só para os partidos socialistas. p. 111


            Retrospectivamente, poderíamos dizer que o socialismo era um sonho utópico ou pouco mais que uma palavra de ordem, pois até a Revolução Russa nem mesmo a esquerda socialista havia considerado seriamente o que faria caso chegasse ao poder. Não havia nem sequer um debate sério sobre a maneira de socializar uma economia. Em geral supunha-se que ela poderia ser administrada pelo Estado com base no modelo proporcionado pelo capitalismo da época, no qual as atividades econômicas mais abrangentes já se encontravam nas mãos de organizações públicas. Em suma, a teoria socialista era uma crítica da realidade capitalista, e não um projeto efetivo para a construção de uma outra sociedade. p. 107


            A insegurança do emprego é uma nova estratégia para aumentar os lucros, reduzindo a dependência da empresa em relação à mão-de-obra humana ou pagando menos aos empregados. Na economia capitalista moderna, o único fator cuja produtividade não pode ser facilmente ampliada e cujos custos não podem ser facilmente reduzidos é o relativo aos seres humanos. Daí a enorme pressão para eliminá-los da produção [...]. p. 138



Não o assusta o poder da ciência? A possibilidade de clonar um ser humano, introduzir genes animais ou vegetais em um tomate; ou então a possibilidade de matar em uma guerra apenas acionando as teclas de um computador?

            Claro que me assusta. Não só pelo poder imenso que ela confere, mas também porque quase sempre os aprendizes de feiticeiros não sabem como usar esse poder. Se houvesse uma garantia de que as pessoas que tornam possível esse progresso também soubessem o que fazer com ele, como usá-lo em benefício da humanidade ou quando não usá-lo, então eu ficaria mais tranqüilo. Mas essa garantia não existe. Forças naturais imensas estão sendo manipuladas e nem sempre elas são perfeitamente conhecidas. E não há nenhuma regra ou instituição que diga o que fazer e o que não fazer. A única regra proporcionada pelo livre mercado, a otimização do crescimento econômico e do lucro, quase certamente irá produzir efeitos negativos. p. 151


            Claro que existem bons motivos econômicos para esse tipo de desenvolvimento. O turismo, por exemplo, Pode-se explicar aos povos africanos que seria melhor que não matassem os rinocerontes e os gorilas pois poderiam obter mais dinheiro com os turistas que viriam fotografá-los. Desse modo, alguns tentarão transformar certas partes do mundo em gigantescos parques temáticos. Mas será que isso é de fato possível em âmbito global? Será isso feito também para certos povos que de outro modo não sobreviveriam, tal como os animais? Não estou exagerando, essa é a discussão que vem ocorrendo em relação às tribos indígenas da floresta amazônica. A questão de como administrar o meio ambiente está cada vez mais deixando de ser um problema teórico e se tornando algo prático, exigindo respostas específicas. [...]
            Creio que, no século XXI, precisamos aprender a ver grandes partes do mundo tal como de fato são: ambientes semi-artificiais.[...]
            Em suma, devemos meter na cabeça que alterar a face da Terra não é algo que necessariamente leva a um desastre total. O meio ambiente pode ser modificado horizontalmente, e não apenas por drásticas oscilações verticais entre o bom e o ruim. p. 182-183


Devo admitir que qualquer compromisso político ou religioso, sempre que verdadeiro e intenso, tende a impor - não diria obrigações - mas uma predileção ou um preconceito favorável ao avanço da causa pela qual lutamos. Você percebe isso quando vê a própria relutância em criticá-la, quando reluta em aplicar a ela a mesma inteligência crítica com que costuma julgar outras causas. p. 189


[...] se os homens não cultivam o ideal de um mundo melhor, eles perdem algo. Se o único ideal dos homens é a busca da felicidade pessoal, por meio do acúmulo de bens materiais, a humanidade é uma espécie diminuída.

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segunda-feira, 2 de maio de 2011

Edgar Allan Poe

Edgar Allan Poe [EUA: 1809 - 1849]
'Realmente pobre e no limiar dos quarenta, alucinado por incessantes delírios e com os nervos já em farrapos, temido e desprezado - assim encerrava Edgar Allan Poe a existência amargurada'. Sua vida foi, pois, tão ou mais sombria do que sua obra. Mas é vício humano não valorizar o que é de seu tempo, sempre voltando os olhos em glória ao passado.
Poe foi um dos primeiros escritores - e talvez um dos fundadores - do gênero literário de ficção científica e fantástico. Também foi um dos precursores da literatura policial. Suas obras sempre oscilalando entre esses gêneros, mostrando um enorme talento intelectual.
Destinarei, então, este post para as melhores obras do Edgar Allan Poe, na minha humilde opinião, claro. Conforme eu for lendo, vou acrescentando aqui.
O Poe, apesar de ter sua morbidez sobrenatural, também se atém muito a racionalidade, e aos jogos de lógica, ou seja, mistérios que parecem absurdos e insolúveis, mas que posteriormente, através de uma análise atenta e detalhada, são desvendados pelo raciocínio lógico. 
Os livros dele geralmente aparecem como coletâneas reunindo algumas das histórias do autor. Então algumas se repetem em livros diferentes. A coletânea que li por último foi 'Assassinatos da Rua Morgue & outras histórias':

Entre as histórias e contos mais interessantes, por enquanto, figuram as seguintes:

- O barril de amontillado;
- O coração delator;
- A carta roubada;
- O escaravelho de ouro;
- Os assassinatos da Rua Morgue.



A seguir alguns trechos:


Os assassínios da Rua Mogue:

Há bem poucas pessoas que não tenham, em qualquer momento de sua vida, procurado divertir-se voltando pelo mesmo caminho pelo qual chegaram a certas conclusões de suas próprias idéias. Este trabalho é, não poucas vezes, muito interessante e quem o tenta pela primeira vez fica admirado com a distância ilimitada e com a aparente incoerência que há entre o início e o fim do próprio raciocínio. p. 22

Talvez pudesse ver um ou dois pontos com notável clareza, mas com isso perdia, inevitavelmente, de vista o caso em sua totalidade. Isso acontece quando somos exageradamente profundos. A verdade não está sempre dentro de um poço. p. 33

O mistério de Maria Roget:

[...] e, como nós continuamos a ocupar os nossos quartos, entregamos o futuro aos ventos, dormitamos tranquilamente no presente, e transformamos em sonhos o mundo insosso que há ao nosso redor. p. 64



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