domingo, 26 de maio de 2019

Notas sobre o casamento, ou sobre o fim de um.


   



     Depois de quase 9 anos num relacionamento, recentemente passei - ainda estou passando? - pelo processo dolorido de uma separação. Ainda mais porque com um filho de 5 anos envolvido. Não vou mentir dizendo que foi, ou que está sendo, fácil, mas aos poucos as coisas vão se ajeitando e vamos nos adaptando à uma nova circunstância. 
    Para o bem e para o mal, uma separação, depois de um relacionamento de tantos anos, nos arranca daquela poltroninha quentinha e aconchegante da famosa zona de conforto e nos posiciona milimetricamente em frente a um espelho existencial. Cara a cara consigo mesma, muitas vezes o abismo que surge parece quase intransponível. Você está tão acostumada a se ver dentro daquela composição, daquele todo, que quando de repente se vê fora se sente um pouco perdida. Todas as supostas verdades foram sendo desmembradas, não resistiram ao escrutínio da realidade dos anos. Você atravessou o túnel do casamento e saiu do outro lado. A perspectiva agora é totalmente diferente, seja no tocante à relacionamentos amorosos, ou sobre o próprio casamento. As belas ilusões se desvaneceram, e eu não quero que isso soe melodramático, mas é mais ou menos por aí. 
     Combinação de alívio e angústia, uma separação é, sobretudo, um momento de autorreflexão e uma nova jornada de autoconhecimento. E, além de lidar com esse diálogo interno constante, cheio de medos e inseguranças, você ainda tem que lidar com o diálogo com o mundo externo, a sociedade, os parentes, os amigos, que sempre querem o seu melhor, claro, mas que de vez em quando conseguem colocar aquela pulguinha atrás da sua orelha que traz tantas e tantas dúvidas que você já julgava sanadas e resolvidas. Volte duas casas e reflita mais um pouco. 
     E, como numa montanha russa, você vai oscilar entre momentos de absoluto bem estar e de desânimo profundo. Entre momentos de esperança e momentos de ceticismo. Entre momentos de certezas e momentos de dúvidas. Você vai olhar para o seu filho e vai chorar se perguntado se está fazendo as coisas da melhor forma. Você vai se sentir sozinha naquele domingo a noite e vai se sentir carente. Vai fazer coisas estúpidas e que não correspondem a quem você é e ao que acredita. Mas, você também já não está tão certa sobre quem é e sobre o que acredita. Terão dias em que você vai deitar a cabeça no travesseiro e vai dormir instantânea e profundamente, e também haverão dias em que você vai rolar na cama por horas a fio em ansiedade. Vai olhar para o chão do banheiro de forma catatônica pensando em coisas que foram, que poderiam ser e que não serão.  
      Mas você também vai receber amigos e vai rir muito, se divertir muito. Vai sair e conhecer pessoas novas. Quem sabe sentir aquelas borboletas no estômago novamente e que você achava que nunca mais fosse sentir. Vai ter novas expectativas pro futuro e para os finais de semana. Vai descobrir novos sorrisos seus, novas vontades, vai se permitir e redescobrir as formas do sentir. Vai olhar o mundo com o filtro da maturidade que, se não é um filtro assim tão cor de rosa, tem a vantagem de ser mais honesto e menos ilusório. 
     E afinal de contas, não é exatamente sobre isso que trata-se a vida, de enfrentar a passagem do tempo de frente, com coragem e também com medo? Com sorrisos e também com lágrimas? A vida é sobre ciclos, sobre aprender e, principalmente, sobre sofrer, que é de onde tiramos nossas melhores lições. Todo significado da vida é extraído da dinâmica entre sofrer e ser feliz, entre fazer sofrer e fazer feliz. Todo o resto não passa de presunções não confirmadas...

Enfim, eu acredito muito na sincronicidade da vida. Logo que me separei, me caiu nas mãos, totalmente por acaso, o livro Coisas da Vida, da escritora gaúcha Martha Medeiros.  Que grata surpresa essa leitura me foi. Aquietou muitas ansiedades minhas e deu pílulas de nanicolina para muitos monstros que me assombravam. Como ela mesma disse em uma de suas crônicas "O tempo  ajustou  minhas  retinas e deu proporção às minhas ilusões. O  tempo  altera  o  tamanho  das  coisas."
     Esse texto nasceu sobretudo da reflexão sobre muitas das passagens desta obra, principalmente sobre aquelas que tratavam de forma leve e descontraída de questões densas e profundas sobre o casamento e relacionamentos, sobre maternidade e feminilidade. Selecionei alguns trechos que vem ao encontro da minha reflexão e que me marcaram para compartilhar, seguem:


"Não há nada de errado em curtir a mansidão de um relacionamento  que  já  não  é  apaixonante,  mas  que  oferece  em  troca  a  benção  da  intimidade e do silêncio compartilhado, sem ninguém mais precisar  se  preocupar  em  mentir  ou  dizer  a  verdade.  Quando  se  está  há  muitos anos com a mesma pessoa, há grande chance de ela conhecer  bem  você,  já  não  é  preciso  ficar  explicando  a  todo  instante  suas  contradições, motivos, desejos. Economiza-se muito em palavras, os  gestos falam por si. Quer coisa melhor do que poder ficar quieto ao  lado de alguém, sem que nenhum dos dois se atrapalhe com isso?  Longas  relações  conseguem  atravessar  a  fronteira  do  estranhamento,  um  vira  pátria  do  outro.  Amizade  com  sexo  também é um jeito legítimo de se relacionar, mesmo não sendo bem  encarado pelos caçadores de emoções. Não é pela ansiedade que se  mede  a  grandeza  de  um  sentimento.  Sentar,  ambos,  de  frente  pra  lua,  havendo  lua, ou  de frente pra chuva,  havendo chuva, e juntos  fazerem  um  brinde  com  as  taças,  contenham  elas  vinho  ou  café,  a  isso  se  chama  trégua."


"Quantas  vezes  fazemos  exatamente  isso:  em  vez  de  assumir  que  estamos  cansados,  frustrados,  derrubados  por  uma  desilusão,  optamos por fingir que está tudo na mais perfeita ordem e, para não  passar  pelo  estresse  de  romper  um  casamento/pedir  demissão/trocar  de  cidade/ou  o  que  for,  a  gente  simplifica:  se  divorcia do que está sentindo - ou seja, de nós mesmos. E botamos  um farsante pra existir no nosso lugar.  Romper  -  o  que  quer  que  seja  -  não  é  fácil.  E  tampouco  é  um  ato  solitário.  Ao  se  divorciar  de  sua  mulher  ou  marido,  você  inevitavelmente envolverá os sentimentos dos seus filhos e de seus  familiares, pra citar apenas os mais chegados.  Sua  decisão  vai  interferir  na  rotina  dos  outros.  Fará  com  que  eles  sofram  junto  com  você. Assim é: todos os  laços que  desejamos cortar repercutem  nas pessoas que amamos, o  que  torna  tudo  mais  difícil."

"No livro  Monogamia,  do psicanalista Adam Philips, há um trecho em  que  ele  diz  que  o  esconderijo  mais  aconchegante  é  aquele  em  que  conseguimos  esquecer  do  que  estamos  nos  escondendo.  Mais:  é  aquele  em  que  até  esquecemos  que  estamos  escondidos.  E  conclui:  "Formamos casais porque é impossível se esconder sozinho".  O casamento como esconderijo. Eu nunca havia pensado nisso.  Uma  pessoa  avulsa  é  uma  pessoa  com  sua  solidão  escancarada,  é  uma  pessoa  que  necessita  fazer  contatos  e  explicar  quem  é,  o  que  faz,  do  que  gosta.  Uma  pessoa  sozinha  é  visada,  está  exposta,  julgam  que  ela  tem  mais  tempo,  está  mais  disponível,  uma  pessoa  sozinha  não  tem  onde  se  esconder.  Já  duas  pessoas  juntas  escondem-se  das fantasias e  do julgamento alheio, se escondem  de  sua  própria  vulnerabilidade  e  dos  seus  próprios  segredos,  duas  pessoas  juntas  protegem-se  oficialmente,  mesmo  sem  ter  a  consciência de que sua união também é isso, um esconderijo."

"A  sociedade  costuma  cobrar  relações  amorosas  daqueles  que  escolheram  viver sozinhos, ou que estão sozinhos por contingência  do destino. Os solitários, os ermitãos, os donos da própria vida são  tratados  como  se  estivessem  à  margem,  mas  são  os  casados  os  verdadeiros  excluídos,  porque  uma  vez  cumpridores  de  uma  expectativa  social,  perdem  seu  potencial  para  surpreender,  não  chamam mais a atenção, passam a ser apenas fazedores de  filhos e  de  dívidas,  consumidores  de  imóveis  de  três  dormitórios  e  carros  utilitários, viram alvo apenas das corretoras de seguro e dos agentes  de viagem. Dentro de  um casamento, julga-se que há  duas pessoas  realizadas,  completamente  a  salvo  da  angústia  existencial,  da  carência afetiva, dos traumas de infância, da insanidade, do vício e  dos  ímpetos  -  imagine,  ímpetos:  casais  jamais  ousariam  fazer  algo  sem pensar, sem conversar muitas vezes antes, durante e depois do  jantar.  A solidão, que sempre pareceu nos proteger, na verdade nos coloca  no  centro  das  atenções,  permite  que  coloquem  o  dedo  nas  nossas  feridas.  Já  o  casamento  nos  tira  da  prateleira,  nos  resguarda,  nos  esconde tão bem e tão sem alarde que a gente nem percebe que está  escondido. Que ironia: o casamento é que é underground." 


"...o que o terceiro milênio tem a nos oferecer: um  amplo  leque  de  opções  sexuais  e  descompromisso  total  com  a  eternidade  -  nada  foi  feito  pra  durar."




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