Depois de quase 9 anos num relacionamento, recentemente passei - ainda estou passando? - pelo processo dolorido de uma separação. Ainda mais porque com um filho de 5 anos envolvido. Não vou mentir dizendo que foi, ou que está sendo, fácil, mas aos poucos as coisas vão se ajeitando e vamos nos adaptando à uma nova circunstância.
Para o bem e para o mal, uma separação, depois de um relacionamento de tantos anos, nos arranca daquela poltroninha quentinha e aconchegante da famosa zona de conforto e nos posiciona milimetricamente em frente a um espelho existencial. Cara a cara consigo mesma, muitas vezes o abismo que surge parece quase intransponível. Você está tão acostumada a se ver dentro daquela composição, daquele todo, que quando de repente se vê fora se sente um pouco perdida. Todas as supostas verdades foram sendo desmembradas, não resistiram ao escrutínio da realidade dos anos. Você atravessou o túnel do casamento e saiu do outro lado. A perspectiva agora é totalmente diferente, seja no tocante à relacionamentos amorosos, ou sobre o próprio casamento. As belas ilusões se desvaneceram, e eu não quero que isso soe melodramático, mas é mais ou menos por aí.
Combinação de alívio e angústia, uma separação é, sobretudo, um momento de autorreflexão e uma nova jornada de autoconhecimento. E, além de lidar com esse diálogo interno constante, cheio de medos e inseguranças, você ainda tem que lidar com o diálogo com o mundo externo, a sociedade, os parentes, os amigos, que sempre querem o seu melhor, claro, mas que de vez em quando conseguem colocar aquela pulguinha atrás da sua orelha que traz tantas e tantas dúvidas que você já julgava sanadas e resolvidas. Volte duas casas e reflita mais um pouco.
E, como numa montanha russa, você vai oscilar entre momentos de absoluto bem estar e de desânimo profundo. Entre momentos de esperança e momentos de ceticismo. Entre momentos de certezas e momentos de dúvidas. Você vai olhar para o seu filho e vai chorar se perguntado se está fazendo as coisas da melhor forma. Você vai se sentir sozinha naquele domingo a noite e vai se sentir carente. Vai fazer coisas estúpidas e que não correspondem a quem você é e ao que acredita. Mas, você também já não está tão certa sobre quem é e sobre o que acredita. Terão dias em que você vai deitar a cabeça no travesseiro e vai dormir instantânea e profundamente, e também haverão dias em que você vai rolar na cama por horas a fio em ansiedade. Vai olhar para o chão do banheiro de forma catatônica pensando em coisas que foram, que poderiam ser e que não serão.
Mas você também vai receber amigos e vai rir muito, se divertir muito. Vai sair e conhecer pessoas novas. Quem sabe sentir aquelas borboletas no estômago novamente e que você achava que nunca mais fosse sentir. Vai ter novas expectativas pro futuro e para os finais de semana. Vai descobrir novos sorrisos seus, novas vontades, vai se permitir e redescobrir as formas do sentir. Vai olhar o mundo com o filtro da maturidade que, se não é um filtro assim tão cor de rosa, tem a vantagem de ser mais honesto e menos ilusório.
E afinal de contas, não é exatamente sobre isso que trata-se a vida, de enfrentar a passagem do tempo de frente, com coragem e também com medo? Com sorrisos e também com lágrimas? A vida é sobre ciclos, sobre aprender e, principalmente, sobre sofrer, que é de onde tiramos nossas melhores lições. Todo significado da vida é extraído da dinâmica entre sofrer e ser feliz, entre fazer sofrer e fazer feliz. Todo o resto não passa de presunções não confirmadas...
Enfim, eu acredito muito na sincronicidade da vida. Logo que me separei, me caiu nas mãos, totalmente por acaso, o livro Coisas da Vida, da escritora gaúcha Martha Medeiros. Que grata surpresa essa leitura me foi. Aquietou muitas ansiedades minhas e deu pílulas de nanicolina para muitos monstros que me assombravam. Como ela mesma disse em uma de suas crônicas "O tempo ajustou minhas retinas e deu proporção às minhas ilusões. O tempo altera o tamanho das coisas."
Esse texto nasceu sobretudo da reflexão sobre muitas das passagens desta obra, principalmente sobre aquelas que tratavam de forma leve e descontraída de questões densas e profundas sobre o casamento e relacionamentos, sobre maternidade e feminilidade. Selecionei alguns trechos que vem ao encontro da minha reflexão e que me marcaram para compartilhar, seguem:
"Não há nada de errado em curtir a mansidão de um relacionamento que já não é apaixonante, mas que oferece em troca a benção da intimidade e do silêncio compartilhado, sem ninguém mais precisar se preocupar em mentir ou dizer a verdade. Quando se está há muitos anos com a mesma pessoa, há grande chance de ela conhecer bem você, já não é preciso ficar explicando a todo instante suas contradições, motivos, desejos. Economiza-se muito em palavras, os gestos falam por si. Quer coisa melhor do que poder ficar quieto ao lado de alguém, sem que nenhum dos dois se atrapalhe com isso? Longas relações conseguem atravessar a fronteira do estranhamento, um vira pátria do outro. Amizade com sexo também é um jeito legítimo de se relacionar, mesmo não sendo bem encarado pelos caçadores de emoções. Não é pela ansiedade que se mede a grandeza de um sentimento. Sentar, ambos, de frente pra lua, havendo lua, ou de frente pra chuva, havendo chuva, e juntos fazerem um brinde com as taças, contenham elas vinho ou café, a isso se chama trégua."
"Quantas vezes fazemos exatamente isso: em vez de assumir que estamos cansados, frustrados, derrubados por uma desilusão, optamos por fingir que está tudo na mais perfeita ordem e, para não passar pelo estresse de romper um casamento/pedir demissão/trocar de cidade/ou o que for, a gente simplifica: se divorcia do que está sentindo - ou seja, de nós mesmos. E botamos um farsante pra existir no nosso lugar. Romper - o que quer que seja - não é fácil. E tampouco é um ato solitário. Ao se divorciar de sua mulher ou marido, você inevitavelmente envolverá os sentimentos dos seus filhos e de seus familiares, pra citar apenas os mais chegados. Sua decisão vai interferir na rotina dos outros. Fará com que eles sofram junto com você. Assim é: todos os laços que desejamos cortar repercutem nas pessoas que amamos, o que torna tudo mais difícil."
"No livro Monogamia, do psicanalista Adam Philips, há um trecho em que ele diz que o esconderijo mais aconchegante é aquele em que conseguimos esquecer do que estamos nos escondendo. Mais: é aquele em que até esquecemos que estamos escondidos. E conclui: "Formamos casais porque é impossível se esconder sozinho". O casamento como esconderijo. Eu nunca havia pensado nisso. Uma pessoa avulsa é uma pessoa com sua solidão escancarada, é uma pessoa que necessita fazer contatos e explicar quem é, o que faz, do que gosta. Uma pessoa sozinha é visada, está exposta, julgam que ela tem mais tempo, está mais disponível, uma pessoa sozinha não tem onde se esconder. Já duas pessoas juntas escondem-se das fantasias e do julgamento alheio, se escondem de sua própria vulnerabilidade e dos seus próprios segredos, duas pessoas juntas protegem-se oficialmente, mesmo sem ter a consciência de que sua união também é isso, um esconderijo."
"A sociedade costuma cobrar relações amorosas daqueles que escolheram viver sozinhos, ou que estão sozinhos por contingência do destino. Os solitários, os ermitãos, os donos da própria vida são tratados como se estivessem à margem, mas são os casados os verdadeiros excluídos, porque uma vez cumpridores de uma expectativa social, perdem seu potencial para surpreender, não chamam mais a atenção, passam a ser apenas fazedores de filhos e de dívidas, consumidores de imóveis de três dormitórios e carros utilitários, viram alvo apenas das corretoras de seguro e dos agentes de viagem. Dentro de um casamento, julga-se que há duas pessoas realizadas, completamente a salvo da angústia existencial, da carência afetiva, dos traumas de infância, da insanidade, do vício e dos ímpetos - imagine, ímpetos: casais jamais ousariam fazer algo sem pensar, sem conversar muitas vezes antes, durante e depois do jantar. A solidão, que sempre pareceu nos proteger, na verdade nos coloca no centro das atenções, permite que coloquem o dedo nas nossas feridas. Já o casamento nos tira da prateleira, nos resguarda, nos esconde tão bem e tão sem alarde que a gente nem percebe que está escondido. Que ironia: o casamento é que é underground."