sábado, 19 de março de 2016

Fantasmas do século XX. Joe Hill, 2005.

Meu primeiro contato com Joe Hill foi através do filme Horns (2013). Fiquei surpresa ao saber que Joe Hill era filho de ninguém menos do que Stephen King. Não sabia que King tinha um filho com tamanho talento e que seguisse tão bem os passos do pai. 
Amei o filme, e fui procurar algo dele para ler, o primeiro escolhido foi Fantasmas do Século XX, de 2005, e, bem, o que dizer desse livro? Fantástico. A escrita de Joe é muito ágil, direta, limpa, o que deixa o ritmo de suas histórias alucinantes, ainda mais no caso dos contos. Não sou uma profunda conhecedora de histórias de terror, no sentido de que não domino os primeiros autores, as referências mais primitivas dos autores que leio, então é difícil dizer que as histórias são realmente originais. O que posso dizer é que, pra mim, os contos deste livro foram muito originais e criativos, superando os clichês do mundo da literatura de horror atuais.



Joe Hill
Foi uma gratíssima surpresa encontrar você, Joe Hill. É difícil não pensar que Stephen King já tem 68 anos, e chegará o dia em que não estará mais entre nós. É verdadeiramente confortador para os fãs de King saber que seu filho está aí, não para substituí-lo, mas para continuar a preencher nossas mentes com histórias mágicas e arrepiantes. 

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Horns (2013), filme baseado na obra Horns (2010) de Joe Hill

quarta-feira, 9 de março de 2016

Negrinha. Monteiro Lobato, 1920.

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

   Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

   Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia.

   Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa: — Quem é a peste que está chorando aí?

   Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero. — Cale a boca, diabo!

   No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negrinha— magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta. — Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!

   Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

   Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

   Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

   A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”... O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

   — Aí! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!... Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

   Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

   Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

   — “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

   Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

   — Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias. — Traga um ovo.

   Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

   — Venha cá!

   Negrinha aproximou-se.

   — Abra a boca!




   Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

   — Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

   — Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá! — A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora — murmurou o padre. — Sim, mas cansa...

   — Quem dá aos pobres empresta a Deus.

   boa senhora suspirou resignadamente.

   — Inda é o que vale...

   Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

   Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

   Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga.

   Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

   — Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

   — Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora. — Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco. Chegaram as malas e logo: — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

   Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava mama ... que dormia...

   Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

   — É feita?... — perguntou, extasiada.

   E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la. As meninas admiraram-se daquilo.

   — Nunca viu boneca?

   — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

   Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

   — Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

   — Negrinha.

   As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

   — Pegue!

   Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

   Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos. Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

   — Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu. Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

   Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi — e essa consciência a matou.

   Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

   Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

   Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

   Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

   Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma. Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

   Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

   Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.

   Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

   E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

   — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

   Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. — “Como era boa para um cocre!"...

Monteiro Lobato

Os cem melhores contos brasileiros do século - Ítalo Moriconi (Seleção), 2001.

   O conto é um gênero literário a parte. É, sobretudo, uma narrativa curta que traz ao leitor, ou melhor, atira-lhe nos peitos algo que choca, algo que o obriga a reflexão, algo que tira-lhe o chão, que inspira a crítica. É rápido e profundo, o bom conto é uma facada. 
   Apesar de alguns contos dos quais não gostei do estilo, outros que não entendi pelo excesso de referências ou alegorias, no balanço geral dos cem, posso dizer que os contos de que gostei foram maioria esmagadora. Essa seleção de contos brasileiros feita por Ítalo Moriconi ficou realmente ótima.
   No mais, o livro tem o mérito de dar um panorama geral da história do conto nacional. É possível perceber as transformações das mentalidades, as transformações tecnológicas da sociedade, espiar os contextos político-econômicos. Além de poder desnudar autores, percebê-los através de seus personagens. 
   Para quem gosta de literatura nacional essa obra figura como uma verdadeira antologia, e ainda introduz ao leitor diversos autores nacionais de quem talvez nunca tenha ouvido falar.

O troféu facada, ou soco no estômago, dessa obra vai para o conto Negrinha do Monteiro Lobato, só a leitura dele já valeu a obra. Na sequencia, pretendo publicá-lo aqui no blog integralmente.

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Seguem algumas passagens que me marcaram nos contos...


Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu. [O santo que não acreditava em Deus, João Ubaldo Ribeiro]

Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. [Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá, Bernardo Elis]

Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) [Presépio, Carlos Drummond de Andrade] (Feminismo, mulheres na literatura, o conto completo)

(...) e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. [Tangerine-Girl, Rachel de Queiroz]

O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes. [A moralista, Dinah Sileira de Queiroz]
É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade. [Entre irmãos, José J. Veiga]
(...) e me olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que eu sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?, eu não preciso de ninguém, deixa o cara pensar, na hora de pegar para capar é que eu quero ver. [A força humana, Rubem Fonseca]
Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente. [O burguês e crime, Carlos Heitor Cony]

   Tô morrendo de fome, disse Pereba.
   De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
   Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
   Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
[Feliz ano novo, Rubem Fonseca]
   Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)? [Correspondência completa, Ana Cristina Cesar]

Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. [Guardador, João Antônio]

Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
É claro que não existe a beleza sem que a observe. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) não existem coincidências, mas causalidades necessárias. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor possibilidade de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como a alma, não ocupa propriamente um espaço. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. [Alguma coisa urgentemente, João Gilberto Nol]
A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplêndido que julgamos ser. [Hell’s Angels, Márcia Denser]
Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações? [Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato, Sonia Coutinho]
(...) já passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos. [O japonês dos olhos redondos, Zulmira Ribeiro Tavares]

Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo. [Os mínimos carapinas do nada, Autran Dourado]