quarta-feira, 21 de abril de 2021

A bíblia em Carl Sagan

“Sempre que lemos as histórias obscenas, as orgias voluptosas, as execuções cruéis e torturantes, o espírito inexorável de vingança que impregnam mais da metade da Bíblia, seria mais coerente dizer que ela é a palavra de um demônio do que a palavra de Deus. Ela [...] tem servido para corromper e brutalizar a humanidade”. [Thomas Paine]

[...] Que área do empreendimento humano não é moralmente ambígua? Até as instituições populares que pretendem nos dar conselhos sobre comportamento e ética parecem carregadas de contradições. Considerem-se os aforismos. A pressa é inimiga da perfeição; mas um passo dado a tempo vale por nove. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; mas quem não arrisca, não petisca. Onde há fumaça, há fogo; mas o hábito não faz o monge. Um centavo poupado é um centavo ganho; mas não se pode levá-lo para o túmulo. Quem hesita está perdido; mas os tolos entram correndo onde até os anjos têm medo de pisar. Duas cabeças pensam melhor do que uma; mas comida em que muitos mexem, se não sai crua ou queimada, sai insossa ou salgada. Houve época em que as pessoas planejavam ou justificavam suas ações baseando-se nesses lugares-comuns contraditórios. Qual é a responsabilidade moral do aforista? Ou do astrólogo solar, do leitor de tarô, do profeta dos tablóides?

[...] considerem-se as principais religiões oficiais. Em Miquéias, recebemos ordens de agir com justiça e amar a misericórdia; no Êxodo, somos proibidos de cometer homicídio; no Levítico, a ordem é amar o nosso próximo como a nós mesmos; e, nos Evangelhos, somos instados a amar os nossos inimigos; Entretanto, pensem nos rios de sangue derramado pelos seguidores ardorosos dos livros em que se encontram incrustadas essas exortações de boa intenção. Em José e na segunda metade de Números, celebra-se o assassinato em massa de homens, mulheres, crianças e animais domésticos em inúmeras cidades por toda a terra de Canaã. Jericó é arrasada num kherem, uma “guerra santa”. A única justificativa oferecida para essa matança é a afirmação dos homicidas de que, em troca da circuncisão de seus filhos e da adoção de um conjunto particular de rituais, os seus ancestrais teriam recebido há muito tempo a promessa de que a terra era sua. Não se consegue tirar da Sagrada Escritura nem um vestígio de sentimento de culpa, nem um resmungo de inquietação patriarcal ou divina com essas campanhas de extermínio. Em vez disso, José “destruiu tudo o que respirava, como o Senhor Deus de Israel havia ordenado” (José, 10:40). E esses acontecimentos não são incidentais, mas centrais para o principal moto narrativo do Velho Testamento. Histórias semelhantes de assassinatos em massa (e, no caso dos amalecitas, genocídio) podem ser encontrados nos livros de Saul, Ester, e em outros lugares da Bíblia, sem que apareça nenhuma angústia de dúvida moral. Tudo isso certamente perturbou os teólogos liberais de eras posteriores. [...] Diz-se adequadamente que o diabo pode “citar a Escritura para seus fins”. A Bíblia está cheia de tantas histórias de moral contraditória que toda geração encontra nela justificativa para quase todas as ações que propõe – de incesto, escravidão e homicídio em massa ao amor mais refinado, coragem e abnegação. E essa desordem moral de múltipla personalidade não se restringe ao judaísmo e ao cristianismo. Pode-se encontrá-la profundamente entranhada no Islã, na tradição hindu, de fato em quase todas as religiões do mundo. Talvez não sejam os cientistas, mas as pessoas que são moralmente ambíguas.


O mundo assombrado pelos demônios. Carl Sagan, 1996.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Antropologia I

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Há em mim uma batalha permanente e oscilante entre um instinto de autopreservação e um impulso autodestrutivo.

A vida é autodestrutiva, porque da destruição vem a renovação da vida, e dessa renovação vem a eternidade da força da vida. A vida que transcende o indivíduo, o cosmos.

Me pergunto se o instinto e o impulso estão conectados de alguma forma com o mistério do cosmos. Ou serão frutos da dimensão do indivíduo em sociedade? Ou uma mistura híbrida dos dois? Afinal... a civilização também é filha do cosmos... 

O impulso autodestrutivo acelera o processo inevitável da destruição. Será um manifestação inconsciente de autopunição? Ainda que muitos atos autodestrutivos estejam a princípio na categoria de prazeres e deleites, como o consumo de álcool, cigarros e drogas, eles são, em última análise, atos autodestrutivos.

Será que é uma troca consciente? Estou destruindo um pouco de mim em troca de um prazer, e é isso, nada mais justo? Será simples assim? A vida me consome, por isso vou consumi-la também?

Seremos nós totalmente reduzíveis à antropologia?


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