sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A insustentável leveza do ser - Milan Kundera, 1983


Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. P. 14

O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma série inumerável de mulheres), mas pelo desejo de sono compartilhado (este desejo diz respeito a uma só mulher). P. 21

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento. P. 39

Acreditamos todos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa imponderável; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida. Convencemo-nos de que Beethoven em pessoa, triste e de cabelos revoltos, toca seu “Es muss sein!” para nosso grande amor. P. 40

Num passado remoto, o homem deve ter ouvido com assombro o som de batidas regulares que vinham do fundo de seu peito, sem conseguir saber o que seria aquilo. Não podia identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida. O corpo era uma gaiola e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer que olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se; essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma.
Hoje, é claro, o corpo deixou de ser um mistério, sabemos que o que bate no peito é o coração, o nariz nada mais é que a extremidade de um cano que avança para poder levar oxigênio aos pulmões. O rosto nada mais é que o painel onde terminam todos os mecanismos físicos: a digestão, a visão, a audição, a respiração, a reflexão.
Depois que o homem aprendeu a dar nome a todas as partes do seu corpo, esse corpo o inquieta menos. Atualmente cada um de nós sabe que a alma nada mais é que a atividade da matéria cinzenta do cérebro. A dualidade da alma e do corpo estava dissimulada por termos científicos; hoje, isso é um preconceito fora de moda que nos faz rir.
Mas basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça. P. 46

E ainda uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Nesse café ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta. Contra o mundo de grosseria que a cercava, não tinha efetivamente senão uma arma: os livros que pedia emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles não só lhe ofereciam a possibilidade de uma evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um significado como objetos: gostava de passear na rua com um livro debaixo do braço. Eram para ela aquilo que uma elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam dos outros. P.53

Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem o fundo de uma xícara o desenho deixado pela borra de café. P. 54

O acaso tem suas mágicas, a necessidade não. Pra que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco. P. 55

O homem inconscientemente compõe sua vida segundo as leis da beleza mesmo nos instantes do mais profundo desespero. P. 58

Aquele que deseja continuamente “elevar-se” deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados. P. 65

A invasão russa, repitamos, não foi somente uma tragédia, foi também uma festa do ódio repleta de uma estranha euforia que hoje parece inexplicável. P. 73

Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa própria fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com nossa própria fraqueza, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em pela rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão. P. 81-82

Aquele que se entrega ao outro como um prisioneiro de guerra deve antes entregar todas as armas. Vendo-se sem defesa, não pode deixar de se indagar quando virá o golpe. Posso, portanto, dizer que o amor era para Franz a espera contínua do golpe que iria atingi-lo. P. 89

Esse olhar o incomodava pois não podia compreendê-lo. Entre todos os amantes estabelecem-se rapidamente certas regras de jogo, das quais eles não têm consciência, mas que têm força de lei, e que não devem ser transgredidas. O olhar que ela acabava de lançar sobre ele escapava a essas regras, não tinha nada em comum com os olhares e os gestos que precediam habitualmente a aproximação deles. Não havia nesse olhar nem provocação, nem sedução, mas uma espécie de interrogação. Só que Franz não tinha nenhuma idéia da pergunta que esse olhar lhe fazia. P. 90

Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem fazer juntas a composição e trocar os temas, mas quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras musicais estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo de diferente na partitura do outro. P. 94

Até aqui, não tinha consciência disso, o que é compreensível: a meta que perseguimos é sempre velada. Uma moça que deseja um marido deseja uma coisa que lhe é totalmente desconhecida. O jovem que corre atrás da glória não tem nenhuma idéia do que seja a glória. Aquilo que dá sentido à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido. P. 127-128


MULHER:

Ser mulher é para Sabina uma condição que ela não escolheu. Aquilo que não é conseqüência de uma escolha não pode ser considerado como mérito ou como fracasso. Diante de uma condição que nos é imposta, é preciso, pensa Sabina, encontrar a atitude certa. Parecia-lhe tão absurdo insurgir-se contra o fato de ter nascido mulher quanto glorificar-se disso. P.95
  
Para ele, a música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas e abre-lhe no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar-se. P. 98

A feiúra no sentido absoluto começou a manifestar-se pela onipresença da feiúra acústica: os automóveis, as motos, as guitarras elétricas, as britadeiras, os alto-falantes, as sirenes. A onipresença da feiúra visual não demoraria a aparecer. P. 99

Para Sabina, viver significa ver. A visão é ilimitada por uma dupla fronteira: a luz intensa que cega e a escuridão total. Talvez seja daí que vem sua repugnância por todo extremismo. Os extremos delimitam a fronteira para além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, em arte como em política, é um desejo de morte disfarçado. P. 100

Nos países comunistas, a inspeção e o controle dos cidadãos são atividades sociais essenciais e permanentes. Para que um pintor consiga permissão para expor, para que um simples cidadão consiga um visto para passar férias à beira-mar, para que um jogador de futebol seja aceito no time nacional, é preciso em primeiro lugar que se reúnam todas as espécies de relatórios e de certificados que lhes digam respeito (do porteiro, dos colegas de trabalho, da polícia, da célula do partido, do comitê da empresa em que trabalha) e esses atestados são, em seguida, completados, revistos, avaliados, recapitulados por funcionários especialmente destinados a essa tarefa. Aquilo que é mencionado nesses atestados não tem nada a ver com a aptidão do cidadão para pintar, jogar futebol, ou com seu estado de saúde que pudesse estar justificando uma temporada à beira-mar. Só importa uma coisa, aquilo que se chama “o perfil político do cidadão” (aquilo que o cidadão diz, pensa, como ele se comporta, se participa ou não dos desfiles do 1º de maio). Tendo em vista que tudo (a vida cotidiana, a promoção e as férias) depende da maneira como a pessoa é julgada, todo mundo é obrigado (para jogar futebol no time oficial, para fazer uma exposição ou passar férias à beira-mar) a se comportar de maneira a ser bem julgado. P. 101-102

Ficou triste, mas, uma vez na calçada, pensou: no fundo, por que deveria encontrar-se com os tchecos? O que tinha em comum com eles? Uma paisagem? Se alguém perguntasse o que a Boêmia evocava para eles, essa pergunta faria surgir diante de seus olhos imagens disparatadas, desprovidas de unidade.
Seria então a cultura? Mas o que é isso? A música? Dvorak e Janacek? Sim, mas suponhamos que um tcheco não goste de música? Num só golpe, a identidade tcheca não passa de vento.
Seriam os grandes homens? Jan Hus? Aquelas pessoas jamais tinham lido uma linha de seus livros. A única coisa que podiam compreender unanimemente eras as chamas, a glória da cinza em que se transformara, de modo que a essência da alma tcheca, pensava Sabina, era para eles apenas um pouco de cinza, nada mais. Essas pessoas só tinham em comum sua derrota e as reclamações que se faziam mutuamente. P. 102-103

Ela quis lhes dizer que o comunismo, o fascismo, todas as ocupações e todas as invasões simulam um mal fundamental e universal; em sua maneira de entender, a imagem desse mal era o cortejo de pessoas desfilando com os braços para cima, gritando as mesmas sílabas em uníssono. Mas sabia que não ia conseguir se fazer entender. P. 106

Sabina disse: - A beleza involuntária. É isso mesmo. Poder-se-ia dizer também: a beleza por engano. Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza. P. 107

Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para desenrolar seus pergaminhos é preciso que eles encontrem temas de dissertação. Existe um número infinito de temas pois pode-se falar sobre tudo e sobre nada. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos que são mais tristes do que os cemitérios porque neles não vamos nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de sinais, na loucura da quantidade. Creia-me: um só livro proibido em seu antigo país significa muito mais do que os milhares de vocábulos cuspidos pelas nossas universidades. P. 108-109


VIVER DENTRO DA VERDADE

É uma fórmula que Kafka usou num diário ou numa carta. Franz não se lembrava bem. Estava seduzido por essa fórmula. O que era viver dentro da verdade? Uma definição negativa era fácil: era não mentir, não se esconder, não dissimular nada. Depois que conhecera Sabina vivia na mentira. Conversava com sua mulher sobre congressos em Amsterdã, conferências em Madri que jamais haviam acontecido, tinha medo de passear com Sabina nas ruas de Genebra. Acha divertido mentir e esconder-se, já que nunca o fizera antes. Sente o prazer de um primeiro aluno da turma que decide um dia, finalmente, fazer gazeta.
Para Sabina, viver dentro da verdade, não mentir nem para si nem para os outros, só seria possível se vivêssemos sem público. Havendo uma única testemunha de nossos atos, adaptamo-nos de um jeito ou de outro aos olhos que nos observam, e nada mais do que fazemos é verdadeiro. Ter um público, pensar no público, é viver na mentira. Sabina despreza a literatura em que o autor revela toda a sua intimidade, e também a de seus amigos. Quem perde a sua própria intimidade perde tudo. Pensa Sabina. E quem a ela renuncia conscientemente é um monstro. Por isso Sabina não sofre por ter de esconder seu amor. Ao contrário, para ela está é a única forma de viver “dentro da verdade”. P. 118

Então qual a relação entre Tereza e seu corpo? Teria seu corpo direito de chamar-se Tereza? Se não tinha, o que significava este nome? Apenas uma coisa incorpórea, intangível?
(São sempre as mesmas perguntas que desde a infância passam pela cabeça de Tereza. As perguntas realmente sérias são aquelas – e somente aquelas – que uma criança pode formular. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não existe resposta. Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência). P. 142-143

O que é flerte? Pode-se dizer que é um comportamento que deve dar a entender que uma aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser entendida como uma certeza. Em outras palavras, o flerte é um promessa de coito, mas uma promessa sem garantia. P. 145-146

Quando levantou os olhos e viu o rosto dele, compreendeu que jamais aceitaria que aquele corpo, onde a alma gravara sua marca, pudesse estar nos braços de alguém que ela não conhecia e que não queria conhecer. P. 158

... e os amores são como os impérios: desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela. P. 172

Aqueles que pensam que os regimes comunistas da Europa Central são obra exclusiva de criminosos deixam na sombra uma verdade fundamental: os regimes criminosos não foram feitos por criminosos mas por entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso. Defendiam corajosamente esse caminho, executando, por isso, centenas de pessoas. Mais tarde ficou claro como o dia que o paraíso não existia, e que, portanto, os entusiastas eram assassinos.
Assim todos acusavam os comunistas: vocês são os responsáveis pelas desgraças do país (que está pobre e arruinado), pela perda de sua independência (caiu sob a tutela dos russos), pelos assassinatos judiciários!
Os acusados respondiam: não sabíamos! Fomos enganados! Acreditávamos! Somos inocentes do fundo do coração!
O debate conduzia a essa pergunta: seria verdade que não sabiam? Ou apenas fingiam não saber?
Tomas acompanhava esse debate (como dez milhões de tchecos), e acreditava que haveria certamente entre os comunistas alguns que não eram assim tão ignorantes (deviam pelo menos ter ouvido falar dos horrores que tinham acontecido, e que não paravam de acontecer na Rússia pós-revolucionária). Mas é provável que a maior parte deles não soubesse de nada.
E ele dizia para si mesmo que o problema fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda a responsabilidade somente pelo fato de ser um imbecil?
Vamos admitir que o procurador tcheco que pedia no começo dos anos 50 a pena de morte para um inocente tivesse sido enganado pela polícia secreta russa e pelo governo do seu país. Mas agora que sabemos que as acusações eram absurdas, e que os condenados eram inocentes, como podemos admitir que o mesmo procurador defenda sua pureza de alma batendo no peito: minha consciência está limpa, eu não sabia, eu acreditei! Não é precisamente no seu: “Eu não sabia! Eu acredite!” que reside sua falta irreparável?
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas.
Tomas ouvia o grito dos comunistas que defendiam sua pureza de alma, e dizia a si próprio: por causa de sua inconsciência o país talvez tenha perdido séculos de liberdade. Mesmo assim vocês gritam que se sentem inocentes? Como podem ainda olhar em torno de si mesmos? Como?! Não estão espantados? Vocês não enxergam? Se tivessem olhos deveriam furá-los e deixar Tebas! P. 178-179

Tomas compreendeu uma coisa estranha. Todo mundo lhe sorria, todo mundo queria que ele escrevesse a retratação, retratando-se faria todo mundo feliz. Uns ficavam contentes porque a proliferação da covardia banalizava suas próprias condutas, devolvendo-lhes a honra perdida. Outros estavam acostumados a ver em sua honra um privilégio particular, do qual não queriam abrir mão. Também nutriam um amor secreto pelos covardes. Sem eles, sua coragem seria um esforço banal e inútil – ninguém os admiraria. P. 184

Como a adulação nos desarma! P. 186-187

Já havia compreendido que as pessoas se alegravam tanto com a humilhação moral do próximo, que jamais abriam mão desse prazer ouvindo explicações. P. 193

Se fosse possível classificar as pessoas por categorias, seria certamente a partir desses desejos profundos que as conduzem para esta ou aquela atividade que exercem durante a vida inteira. Um francês é diferente do outro. Mas todos os atores do mundo se parecem... P. 194

Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado do outro. P. 200

Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. P. 209

Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial. P. 221

Os personagens do meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além da qual termina o meu eu). P. 222

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do “ES muss sein!”.
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo, como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha. P. 238

No reinado do kitsch totalitário, todas as respostas são dadas de antemão e excluem qualquer pergunta nova. Vai daí que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás. P. 256

Os movimentos políticos não se baseiam em atitudes racionais, mas em representações, em imagens, em palavras, em arquétipos, cujo conjunto constitui esse ou aquele kitsch político.
A idéia da Grande Marcha, com a qual Franz gosta de se embriagar, é o Kitsch político que une as pessoas de esquerda de todos os tempos e de todas as tendências. A Grande Marcha é essa soberba caminhada para a frente, essa caminhada em direção à fraternidade, à igualdade, à justiça, à felicidade, e mais longe ainda, a despeito de todos os obstáculos, pois os obstáculos são necessários para que a marcha seja a Grande Marcha. P. 259

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca. P. 287-288

Tereza acaricia a cabeça de Karenin que descansa tranqüilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras. P. 291

A nostalgia do paraíso é o desejo do homem de não ser homem. P. 298

2 comentários:

Maria José Speglich disse...

Não acredito muito nisso.Hitler amava seu cachorro,acariciava-o e matou milhares de pessoas.

Anônimo disse...

esse livro é simplesmente maravilhoso...