terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Alienista - Machado de Assis, 1882




Machado de Assis fala por si próprio. Sou uma grande admiradora da obra deste homem. O grande sarcasmo e ironia de seus escritos são fantásticos. O Alienista parece leitura batida, daquela obrigatória da escola, que a maioria ficou com trauma. O fato é que é mais uma trama muito bem elaborada, e o melhor dela, sobre a loucura. Entretanto o autor não aborda o tema tradicionalmente, ele o coloca sobre uma perpectiva ambígua que deixa qualquer um se perguntando sobre sua sanidade. Aqui vão algumas passagens:

...tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. P. 29

O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como água de Botafogo. P. 38
Não há remédio certo para as dores da alma. P. 38
Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. P. 45 (autor sobre o sistema de “matraca” da época)

- Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. P. 45 (Simão Bacamarte)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O macaco nu. Desmond Morris, 1967.


Alguns livros simplesmente mudam sua vida para sempre. Constituem marcos evolutivos na sua maneira de pensar, caracterizam a expansão das suas perspectivas e idéias. Depois de ler esse livro você nunca mais vai olhar as cenas do cotidiano humano, ou mesmo suas próprias atitudes e comportamentos com os mesmos olhos e referências. Uma viagem incrível através do comportamente humano. Não só recomendo, como acho que a leitura é obrigatória para todo e qualquer macaco nu.
Aqui vai apenas alguns trechos da introdução para que percebam do que se trata:

"Existem atualmente cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pêlos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo sapiens. Essa insólita e próspera espécie passa grande parte do tempo a examinar as suas mais elevadas motivações, enquanto se aplica diligentemente a ignorar as motivações fundamentais. O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila. Trata-se de um símio com enormes qualidades vocais, agudo sentido de exploração e grande tendência a procriar, e já é mais do que tempo de examinarmos o seu comportamento básico.
Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance da minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas das suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de se ter tornado tão erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado, e embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isto causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos – e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução. Na verdade, o Homo sapiens andaria muito menos preocupado e sentir-se-ia muito mais satisfeito, se fosse capaz de aceitar esse fato. É talvez nesse sentido que um zoólogo pode ajudar.
Ao encarar estes problemas, avalio bem quanto me arrisco a ofender certas pessoas. Muita gente não gosta de pensar que somos animais. E podem dizer que eu avilto a nossa espécie quando a descrevo em rudes termos animais. Posso apenas afirmar que não é essa a minha intenção. Outros ofender-se-ão pelo fato de um zoólogo se intrometer nos seus campos especializados. Mas eu admito que essa perspectiva poderá ter grande valor e que, apesar de todos os desfeitos, introduzirá novos (e de certa maneira inesperados) esclarecimentos sobre a natureza complexa da nossa extraordinária espécie."

(Introdução, páginas 7 e 10)



MORRIS, Desmond. O macaco nu. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 1967. 188 p.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pergunte ao pó. John Fante, 1939


O Fante é um autor extremamente visceral. Consegue injetar as mais profundas e controversas emoções numa história simples de roteiro. Traz em sua obra uma carga extremamente grande de existencialismo. Seu personagem, Arturo Bandini é uma espécie de anti-herói, representando alguém mais próximo da realidade, com suas mágoas, ansiedades, frustrações, desejos. Um excelente autor, com uma excelente obra.



FANTE, John. Pergunte ao pó. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. 205 p.










Não era realmente um mentira; era um desejo, não uma mentira... (p. 14)
 

Os livros dizem não, a noite grita sim.


...este é o seu pensamento, que você nasceu de pais miseráveis, pressionados porque eram pobres, fugiu da sua pequena cidade do Colorado porque era pobre, esperando escrever um livro para ficar rico, porque aqueles que o odiavam lá no Colorado não vão odiá-lo se escrever um livro. Você é um covarde, Bandini, um traidor da sua alma, um péssimo mentiroso diante do seu Cristo ensangüentado. É por isso que escreve, é por isso que seria melhor que você morresse. (p. 21)


Desci os degraus de Angel’s Flight até a Hill Street: cento e quarenta degraus, com os punhos cerrados, sem medo de homem algum, mas apavorado pelo túnel da rua Três, apavorado de atravessá-lo a pé – claustrofobia. Apavorado por lugares altos também e por sangue e por terremotos; fora isso, bastante corajoso, excetuando a morte, exceto o medo de que eu vá gritar numa multidão, exceto o medo de apendicite, exceto o medo de problemas cardíacos, a tal ponto que, sentado no seu quarto segurando o relógio e apertando a veia jugular, contando as batidas do coração, ouvindo o romrom e o zumzum do seu estômago. Fora isso, bastante corajoso. (p. 22)


Aqui estava a igreja de Nossa Senhora, muito antiga, a argila escurecida pela idade. Por motivos sentimentais, vou entrar. Por motivos sentimentais, apenas. Não li Lênin, mas o ouvi citado: a religião é o ópio do povo. Quanto a mim, sou ateu: li O anticristo e o considero uma obra capital. Acredito na transposição de valores, cavalheiro. A igreja precisa acabar, é o refúgio da burroguesia, de bobos e brutos e de todos os baratos charlatões.

[...]

Uma prece. Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro! Deus Todo Poderoso, vou jogar limpo nesta questão: vou Lhe fazer uma proposta: Faça de mim um grande escritor e eu voltarei à Igreja. E Lhe peço, caro Deus, mais um favor: faça minha mãe feliz. Não me importo com o Velho; ele tem seu vinho e sua saúde, mas minha mãe se preocupa tanto. Amém. (p. 24)


Bandini (sendo entrevistado antes de partir para a Suécia): Meu conselho para todos os jovens escritores é bastante simples. Eu lhes recomendaria que nunca evitassem uma nova experiência. Eu os instaria a viver a vida em estado bruto, a atracar-se com ela bravamente, a golpeá-la com os punhos nus. (p. 25)


Magoavam-me tanto que eu jamais poderia me tornar um deles, empurraram-me para os livros, empurraram-me para dentro de mim mesmo, empurraram-me para fugir daquela cidadezinha... (p. 57)


Conversamos, ela e eu. Perguntou sobre o meu trabalho e era um pretexto, não estava interessada nisto. E quando respondi era um pretexto. Eu também não estava interessado no meu trabalho. Só havia uma coisa que nos interessava, e ela sabia, pois eu deixara claro com a minha vinda. (p. 115)


Doente na alma, tentei encarar a provação de buscar perdão. Mas de quem? De que Deus, de que Cristo? Eram mitos em que eu certa vez acreditara e agora eram crenças que eu considerava mitos. Este é o mar, e este é Arturo, e o mar é real e Arturo o considera real. Então me afasto do mar e, por toda parte onde olho, vejo terra; sigo caminhando e a terra vai se estendendo até o horizonte. Um ano, cinco anos, dez anos e não vi o mar. Digo a mim mesmo, mas o que aconteceu ao mar? E respondo: o mar está ali de volta, de volta no reservatório da memória. O mar é um mito. Nunca houve um mar. Mas havia um mar! Eu lhes digo que nasci à beira-mar! Banhei-me nas águas do mar! Deu-me alimento e deu-me paz e suas fascinantes distâncias alimentaram meus sonhos! Não, Arturo, nunca houve um mar. Você sonha e deseja, mas atravessa a terra desolada. Nunca verá o mar de novo. Era um mito em que certa vez acreditou. Mas tenho de sorrir, porque o sal do mar está no meu sangue e podem existir dez mil estradas sobre a terra, mas nunca irão me confundir, pois o sangue do meu coração sempre voltará para a bela fonte.

Então o que devo fazer? Devo erguer a boca ao céu, tropeçando e balbuciando com uma língua temerosa? Devo abrir o peito e bater nele como num tambor, buscando a atenção do meu Cristo? Ou não será melhor e mais sensato que me cubra e siga em frente? Haverá confusões e haverá fome; haverá solidão com apenas minhas lágrimas como pequenos pássaros confortadores, rolando para suavizar meus lábios secos. Mas haverá também consolação e haverá também beleza como o amor de uma garota morta. Haverá algum riso, um riso contido, e quieta espera na noite, um medo macio da noite como o beijo pródigo e mordaz da morte. Então haverá noite e os doces óleos das praias do meu mar, derramados sobre meus sentidos pelos capitães que desertei na sonhadora impetuosidade da minha juventude. Mas serei perdoado por isto, e por outras coisas, por Vera Rivken e pelo incessante bater das asas de Voltaire, por parar para ouvir e observar aquele fascinante pássaro, para todas as coisas haverá perdão quando eu retornar à minha terra natal pelo mar. (p. 120/121)


Que bem faz a um homem se ele ganha o mundo inteiro, mas sofre a perda de sua própria alma? E então aquele pequeno poema: Tome todos os prazeres de todas as esferas, multiplique-os por anos intermináveis, um minuto de céu vale todos eles. Quão verdadeiro! Quão verdadeiro! Eu lhe agradeço, oh luz celestial, por indicar-me o caminho. (p. 131)


A noite toda, choramos e bebemos, e bêbado eu podia dizer as coisas que fervilhavam no meu coração, todas aquelas palavras bonitas e os símiles inteligentes... (p. 163)


Saí para uma caminhada pelas ruas. Meu Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade. (p. 200)




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A hora da estrela. Clarice Lispector, 1977.


Esse foi o primeiro livro que li da autora. Sinceramente, fui de olhos fechados, como muitas vezes já fiz ao pegar um livro. Não sabia que a carga existencialista de sua obra era tão latente. Acho que isso de certa forma afetou a minha leitura. Sabendo que era ao mesmo tempo um romance, fiquei esperando os "fatos", os "acontecimentos", mas esses elementos são absolutamente secundários para Lispector. O livro em si é uma espécie de ironia acerca da opinião pública sobre a obra da autora, que se queixava da falta de "fatos". No prefácio, Clarisse Fukelman trás uma frase da autora que diz muito a seu respeito "Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro". Sem dúvida é uma grande escritora do gênero. Certamente lerei outras obras de Lispector.


LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990-1993. 106 p.



Porque há o direito ao grito. Então eu grito. (p. 27)




Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. (p. 28/29)



As coisas estavam de algum modo tão boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer. (p. 31)



Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. (p. 32)



E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico. (p. 34)

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. (p. 35)



E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples, mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica. (p. 50)



(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo) (p. 51)



Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. (p. 51)



Em todo caso o futuro parecia vir a ser muito melhor. Pelo menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente, sempre há um melhor para o ruim. (p. 55)



Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? (p. 74)



É melhor eu não falar em felicidade ou infelicidade – provoca aquela saudade desmaiada e lilás, aquele perfume de violeta, as águas geladas da maré mansa em espumas pela areia. Eu não quero provocar porque dói. (p. 78)

Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada. (p. 81)



Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. É a minha vingança. (p. 87)



Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez ma faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. (p.88)



Estou me interessando terrivelmente por fatos: fatos são pedras duras. Não há como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo. (p. 89)








Pandora. Anne Rice, 1997.

Esse livro é relativamente novo. Seja pela posição dele na trama ampliada das Crônicas Vampirescas, ou pela própria falta de presença de espírito da personagem Pandora, esse livro perde de longe para outras obras de Rice, como, por exemplo, Memnoch, grande obra da autora. O livro é curto. A impressão que tive é que a autora apostou demais na mitologia já criada sobre seus belos vampiros e acabou criando uma vampira bela e vazia. Por vezes as auto-descrições de Pandora perdem completamente a credibilidade, principalmente quando negadas pura e simplesmente por suas atitudes pouco expressivas. Ao mesmo tempo em que se nega ser a sombra de um homem (Marius) cumpre justamente esse papel ao permitir que este se torne personagem muito mais expressivo através de seus pensamentos e atos. Uma mulher tola, eu diria, que trai a si mesma na empreitada de se provar uma mulher forte e inteligente. Todavia, como todas as obras de Rice, sempre conseguimos tirar passagens que realmente  nos dizem muito, como essas que seguem:


RICE, Anne. Pandora : Novos contos vampirescos. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 205 p.:



- Ah, eu poderia ensinar filosofia ali embaixo das arcadas, sabe, ficar falando sobre Diógenes e fingir que gostava de andar maltrapilho, como fazem os seguidores dele atualmente. Que circo é aquele lugar, já viu? Nunca vi tantos filósofos na vida quanto nesta cidade! Dê uma olhada quando voltar. Sabe o que a pessoa tem que fazer para ensinar filosofia aqui? Tem que mentir. Tem que despejar a toda velocidade um monte de palavras sem sentido nos jovens, e ficar meditando quando não souber responder, e inventar absurdos e atribuir tudo aos velhos estóicos. (Personagem Flavius, p. 80)
- Senhora, aprendemos a esconder a alma porque somos traídos pelas pessoas. (Flavius, p. 82)

- Está bem – eu disse. – Vou lhe dizer o que quero. Quero que você me ame, Marius, que me ame, mas me deixe em paz! - protestei. Eu nem sequer refletira. As palavras foram saindo. – Me deixe em paz, para que eu procure meus próprios confortos, meus próprios meios de continuar viva, pouco importa o quanto esses confortos lhe pareçam idiotas ou sem nexo. Me deixe em paz! (Pandora, p. 182)

E estou sempre vendo indícios de amor à minha volta nesse mundo. Por trás da imagem da Virgem Abençoada e seu Menino Jesus, por trás da imagem do Cristo Crucificado, por trás da recordação daquela estátua de basalto representando Ísis. Vejo amor. Vejo amor no esforço humano. Vejo a inegável penetração do amor em todas as realizações humanas, na poesia, na pintura, na música, nas relações interpessoais e na recusa à aceitação do sofrimento como destino. (Pandora, p. 198)



sábado, 10 de outubro de 2009

O queijo e os vermes. Carlo Ginzburg, 1976.

Buenas, esse livro é realmente muito especial. Se apresenta como uma análise crítica de um processo inquisitorial da idade média. O autor e historiador Carlo Ginzburg analisa todos os documentos deste processo, motivado pela evidente peculiaridade desse indivíduo e de suas idéias. O moleiro Menocchio, membro de uma camada "inferior" da sociedade medieval, demonstra conhecimentos e idéias que não seriam comuns para sua condição sócio-histórica. Mas, entre os conhecimentos e informações demonstrados por Menocchio, sua capacidade de articulação e fundamentação é o que mais chama a atenção. A proposta do autor é mostrar que o conhecimento de uma sociedade ou época não é necessariamente disseminado, ou retido, a partir da elite sócio-econômica, num movimento linear de "cima" para "baixo", mas que os mecanismos dessa disseminação podem ser muito mais complexos do que supomos até então. A leitura do livro é muito leve e agradável. Recomendo...





Aqui vai a ficha de leitura:

“Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um”. P. 27


“Menocchio não reconhecia, na hierarquia eclesiástica, nenhuma autoridade especial nas questões de fé”. P. 44

“- Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento, e foi feito senhor com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer quis se fazer de senhor, se comparando ao rei, que era a majestade de Deus, e por causa dessa soberba Deus ordenou que fosse mandado embora do céu com todos os seus seguidores e companhia. Esse Deus, depois, fez Adão e Eva e o povo em enorme quantidade para encher os lugares dos anjos expulsos. O povo não cumpria os mandamentos de Deus e ele mandou seu filho, que foi preso e crucificado pelos judeus”. P. 46/47

“- Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões os homens pobres não sabem o que se está dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro palavras, têm que ter um advogado”. P. 51
“- E me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e ricos, que tudo pertence à Igreja e aos padres”. P. 51

“- E vocês, padres e frades, querem saber mais do que Deus; são como o demônio, querem passar por deuses na terra, saber tanto quanto Deus da mesma maneira que o demônio. Quem pensa que sabe muito é quem nada sabe”. E, abandonando toda reserva, toda prudência, Menocchio declarou recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens, “mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. Sobre o batismo comentou: “Acho que, quando nascemos, já estamos batizados, porque Deus, que abençoa todas as coisas, já nos batizou. O batismo é uma invenção dos padres, que começam a nos comer a alma antes do nascimento e vão continuar comendo até depois da morte”. P. 52/53

“-Acho que a Sagrada Escritura tenha sido dada por Deus, mas, em seguida, foi adaptada pelos homens”. (...) “A respeito das coisas dos Evangelhos, acho que parte delas é verdadeira e, noutra parte, os evangelistas puseram coisas da cabeça deles, como se pode ver nas passagens onde um conta de um modo e outro de outro”. P. 55

“Papa, cardeais e padres ‘arruínam os pobres’: mas em nome de quê? Com que direitos? O papa é ‘homem como nós’, com a diferença de que tem poder (‘pode fazer’) e, portanto, mais dignidade. Não existe diferença alguma entre clérigos e leigos: o sacramento da ordenação é uma ‘mercadoria’. Assim como todos os outros sacramentos e leis da Igreja: ‘mercadorias’, ‘invenções’, e graças a elas os padres engordam. A essa construção colossal baseada na exploração dos pobres, Menocchio contrapõe uma religião bem diferente, em que todos são iguais, porque o espírito de Deus está em todos”. P. 64

E justamente sobre os pigmeus Mandeville escrevera uma página que alcançaria grande sucesso: “É um povo de pequena estatura, cerca de 3 palmos, homens e mulheres belos e graciosos por causa do tamanho. Casam-se com a idade de seis meses e com dois ou três anos já têm filhos; em geral não vivem mais que seis ou sete anos e os que chegam a sete são considerados velhíssimos. Estes pigmeus são os mais habilidosos e os melhores mestres no trabalho com a seda, algodão e qualquer outra coisa que exista no mundo. Com freqüência fazem guerra contra os pássaros do lugar e muitas vezes são mortos e comidos por eles. Essa pequena gente não trabalha na terra, nem têm vinhas, mas existia gente grande como nós que trabalha a terra para eles. Eles [os pigmeus] desprezam-nos assim como nós os desprezaríamos se vivêssemos junto com eles...” p. 106

Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão, quero continuar cristão e, se tivesse nascido turco, ia querer viver como turco”. “O senhor acredita então”, insistiu o inquisidor, “que não se saiba qual a melhor lei?” Menocchio respondeu: “Senhor, eu penso que cada um acha que a sua fé seja a melhor, mas não se sabe qual é a melhor; mas, porque meu avô, meu pai e os meus são cristãos, eu quero continuar cristão e acreditar que essa seja a melhor fé”. P. 113

“Suas afirmações mais desconcertantes nasciam do contato com textos inócuos, como As viagens, de Mandeville, ou a Historia Del Giudicio. Não o livro em si, mas o encontro da página escrita com a cultura oral é que formava, na cabeça de Menocchio, uma mistura explosiva”. P. 116

“Nos discursos de Menocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo, tão pouco comum que se torna quase incompreensível. Este caso, diferentemente dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Pra que essa cultura diversa pudesse vir à luz, foram necessárias a reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças à segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele”. P. 127

“Desejava que existisse um novo mundo e um novo modo de viver, pois a Igreja não vai bem e não deveria ter tanta pompa”. P. 160

“A sociedade sonhada por Scolio é pia e austera, como nas utopias camponesas: livres das profissões inúteis ( “Não existam lojas ou artes manuais/ senão as mais importantes e principais;/ estime-se como vaidade toda sabedoria de médicos e vivam sem doutores” ), baseada em agricultores e guerreiros, governada por um único soberano, que é o próprio Scolio”. P. 213

“É mais complexa e, em parte, impossível de demonstrar. O estado da documentação reflete, é óbvio, o estado das relações de força entre as classes. Uma cultura quase exclusivamente oral como a das classes subalternas da Europa pré-industrial tende a não deixar pistas, ou então deixar pistas distorcidas. Portanto, há um valor sintomático num caso-limite como o de Menocchio. Ele repropõe, com força, um problema cuja importância só agora se começa a perceber: as raízes populares de grande parte da alta cultura européia, medieval e pós-medieval. Figuras como Rabelais e Bruegel não foram, provavelmente, exceções notáveis. Todavia, fecharam uma época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas as direções, entre a alta cultura e a cultura popular. O período subseqüente, ao contrário, foi assinalado tanto por uma distinção cada vez mais rígida entre cultura das classes dominantes e cultura artesanal e camponesa quanto pela doutrinação das massas populares, vinda de cima. Podemos localizar o corte cronológico entre esses dois períodos na segunda metade do século XVI, que coincide significativamente com a intensificação das diferenças sociais sob a influência da revolução dos preços. Mas a crise decisiva ocorrera algumas décadas antes, com a guerra dos camponeses e o reino anabatista de Münster. Então se impôs às classes dominantes, de maneira dramática, a necessidade de recuperar, mesmo ideologicamente, as massas populares que ameaçavam escapar a qualquer forma de controle vindo de cima – porém mantendo e até acentuando as distâncias sociais. Esse renovado esforço de obter hegemonia assumiu formas diversas nas várias partes da Europa; mas a evangelização do campo por obra dos jesuítas e a organização religiosa capilar baseada na família, executada pelas igrejas protestantes, podem ser agrupadas numa mesma tendência. A ela correspondem, em termos de repressão, a intensificação dos processos contra bruxaria e o rígido controle dos grupos marginais, assim como dos vagabundos e ciganos. O caso de Menocchio se insere nesse quadro de repressão e extinção da cultura popular”. P. 230/231

“E junto a esse temor ao diabo, que rege a mente inquisitorial, temos uma prática que mal deixa saída a quem nela é apanhado: os interrogatórios, como os que Menocchio sofre. Como escapar deles? Como um “simples” (é verdade que ele é um tanto mais culto) poderá discutir se Cristo é ou não da mesma natureza que Deus Pai? Nessa questão se fundamenta boa parte da teologia e do poder cristão, mas dela o que entende a esmagadora maioria dos fiéis? O interrogatório é a pior das armadilhas. Tanto que a Inquisição deve o nome, justamente, ao seu procedimento de inquirição”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 239/240

“Nem toda confissão é uma vitória da tortura; porque às vezes a pior tortura é ter a voz silenciada”. Renato Janine Ribeiro em posfácio ao livro, p. 241








sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O amor nos tempos do cólera - Gabriel García Márquez, 1982


Sem dúvida um dos mais belos livros que já li. Nos leva para além da concepção absurda e predominante de que se é jovem pra sempre. Não se é, e nem por isso a vida deixa de ser menos vida. Uma história belíssima e humanamente real. Palmas eternas ao mestre García Marquez.


GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O amor nos tempos do cólera. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. 429 p.



"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada." P. 39



"Abalou-a um pensamento vago: "As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas."" P. 69



"Lembrou a ele que os fracos não entram jamais no reino do amor, que é um reino impiedoso e mesquinho, e que as mulheres só se entregam aos homens de ânimo resoluto, porque lhes infundem a segurança pela qual tanto anseiam para enfrentar a vida." P. 86



"Está bem, me caso com o senhor se me promete que não me fará comer berinjela." P. 94



"Seu padrinho o homeopata, que participava por casualidade da conversação, não achava que as guerras fossem um inconveniente. Achava que não passavam de pendências de pobres jungidos como bois pelos senhores da terra, contra soldados descalços jungidos pelo governo.
- A guerra está na montanha – disse. – Desde que eu sou eu, nas cidades não nos matam com tiros, e sim com decretos." P. 96-97



"Ela lhe parecia tão bela, tão sedutora, tão diferente da gente comum, que não compreendia que ninguém se transtornasse como ele com as castanholas dos seus saltos nas pedras do calçamento, ou tivesse o coração descompassado com os ares e suspiros de suas mangas, ou não ficasse louco de amor o mundo inteiro com os ventos de sua trança, o vôo de suas mãos, o ouro do seu riso. Não perdera um gesto seu, nem um indício do seu caráter, mas não se atrevia a se aproximar dela pelo medo de desfazer o encanto." P. 129



"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado." P. 134



"Impressionaram-na sua simplicidade e sua seriedade, e a raiva cultivada com tanto amor durante tantos dias se apaziguou de pronto." P. 155



"Na plenitude de suas relações, Florentino Ariza se perguntara qual dos dois estados seria o amor, o da cama turbulenta ou o das tardes aprazíveis dos domingos, e Sara Noriega o tranqüilizou com o argumento singelo de que tudo que fizessem nus era amor. Disse: “Amor da alma da cintura para cima e amor do corpo da cintura para baixo.”" P. 246



" - Por obra e graça de um casamento, de interesse com um homem que não ama – interrompeu Sara Noriega. – É a maneira mais baixa de ser puta." P. 248



"Isso era a vida. O amor, caso houvesse, era uma coisa à parte: uma outra vida." P. 251


"A vida mundana, que tantas incertezas lhe trazia antes de conhecê-la, não passava de um sistema de pactos atávicos, de cerimônias banais, de palavras previstas, com o qual se entretinham uns aos outros na sociedade para não se assassinarem." P. 261



"A vida ainda havia de confrontá-los com outras provas mortais, sem dúvida, mas já não tinha importância: estavam na outra margem." P. 278


"Mas aquela tarde perguntou a si mesmo com sua infinita capacidade de ilusão se uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para dissimular um tormento de amor." P. 284



"- Vou fazer cem anos, e já vi mudar tudo, até a posição dos astros no universo, mas ainda não vi mudar nada neste país – dizia. – Aqui se fazem novas constituições, novas leis, novas guerras cada três meses, mas continuamos na Colônia." P. 329



"Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: “O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.”" P. 334



"Mas a raiva voltava sempre, e em breve percebeu que o desejo de esquecê-lo era o mais forte estímulo para se lembrar dele." P. 349



“A humanidade, como os exércitos em campanha, avança na velocidade do mais lento.” 385



"Sem perceber, começava a protelar seus problemas na esperança de que a morte os resolvesse." P. 390