quinta-feira, 24 de março de 2011

Música ao longe - Érico Veríssimo, 1933



Neste livro o autor segue narrando a vida da personagem Clarissa, também protagonista do livro anterior que traz seu nome como título. Essa história continua no livro Um lugar ao Sol, de 1936, que também é explêndido, mas não é o tema aqui. Essa narrativa é singela, realista, romântica. Vasco, primo de Clarissa, é um dos personagens mais cativantes que eu já li. Arisco, o Gato do Mato, como é chamado, tem um posição radical mediante os melindres dos tradicionalismos aristocráticos. Mais uma vez com a vantagem de referência gaúcha, a obra mostra um cenário interiorano decadente, onde os grandes latifundiários vão ficando à míngua na medida em que os valores sociais vão sendo invertidos com a introdução das novas relações econômicas impostas pelo capitalismo ainda incipiente. Em 1934, Música ao longe foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis, sendo considerado um dos primeiros romances regionalistas gaúcho. Boa leitura!


VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. 38ª edição. São Paulo: Globo, 1995. 240 p.

                Clarissa caminha à cadência dos pensamentos... O engraçado é que a gente fica moça, compreende melhor as coisas, estuda nos livros mas continua sentindo mais ou menos o que sentia quando criança. Certas impressões custam a se apagar. p. 6

                Quero escrever neste diário tudo o que penso, tudo o que sinto. Mas a gente nunca escreve tudo o que pensa, tudo o que sente. Por que será que só somos sinceros pensando? p. 10

Se o teto alto de estuque devolvesse as vozes que subiram para ele no passado... Se o espelho tornasse a refletir as imagens perdidas... p. 17

De que vale este vestido branco de organdi? De que vale este quadro laqueado de verde-claro? De que vale esse espelho? E aquelas flores? E aqueles quadrinhos nas paredes? De que serve esta vontade que a gente tem de ver e de fazer coisas bonitas? De que vale este desejo de ter bons amigos, de viver no meio de gente alegre? De que vale tudo isso, se os “outros” não compreendem? Se os outros não correspondem, meu Deus! p. 42

Eu pensava: o mundo está errado. Todos deviam ter dinheiro. Não devia existir gente rica e gente pobre. Mas a verdade é que existia mesmo. E se os ricos distribuíssem o dinheiro com os pobres? Por exemplo, os vizinhos ricos podiam vender o automóvel e dar dinheiro para a vizinha pobre. O automóvel não fazia falta... Eu disse isso ao tio Couto, ele franziu a testa e perguntou se eu estava ficando comunista. Não entendi a pergunta. Hoje entendo. Sei mais ou menos o que é comunismo. O vigário aqui de Jacarecanga fez hoje um sermão contra os comunistas. O que não compreendo é como depois ele disse que todos eram filhos de Deus e todos mereciam igual dose de felicidade. Não compreendo. p. 44

Mas a culpa é minha. Eu não devia observar tanto, pensar tanto. Se vivesse mais no ar era mais feliz. Quando a gente quer olhar tudo, acaba descobrindo o que há de feio no mundo. p. 50-51

E vêm outras histórias. Revoluções, combates nas coxilhas abertas, no inverno, o minuano cortando como navalha, e gemendo como um ferido abandonado no campo. Entreveros, correrias, cabeças esfaceladas, cavalos com a boca espumando. Cargas de Cavalaria, o barulho das patas, os urros dos guerreiros. As lagoas que se tingem de sangue. Lenços vermelhos e verdes. Lanças enristadas, palas voando. E combates e mais combates. E nomes, coronéis, generais, soldados... E outros degolamentos. E frases de entusiasmo: “Aquilo é que era homem, seu!” “Macho legítimo!” “Indio taura!”.
[...] Clarissa pensa... Ah! Como tudo aquilo é horrível, feio, sujo, assustador. Que quadro brutal: um cavalo correndo e espumando, levando no lombo um homem de cara de demônio, com lança estendida, estendida para destripar o inimigo... Por que os homens por todos os lados só falam em valentia e brigas, nos antepassados que mataram e nos descendentes que ainda hão de matar? Está gente não saberá fazer mais nada senão matar? Onde fica o amor? Onde a delicadeza? p. 55-56

- Sabem mesmo que o mundo não existe? Tirem os olhos ao homem: ele não vê mais o mundo. Tirem-lhe o olfato: ele não sentirá mais os cheiros do mundo. Vão lhe tirando todos os sentidos: o tato, o gosto... Que fica no fim? Nada. O homem não vê, não ouve, não sente cheiros, nem contatos, nem nada. Logo, o mundo não existe: é uma ilusão dos sentidos. p. 72

A Terra é um enorme bicho. Vejam os vulcões. São tumores por onde jorra o pus das lavas. E esse passeio maravilhoso que o bicho faz através do infinito? Formidável! Os demais planetas e sóis são outros bichos. Se um dia eles inventarem de guerrear estamos bem aviados. Vai ser um cataclismo nunca visto. O mundo é um bicho. Agora descubro uma definição melhor para o homem. O homem é um bicho, um parasita do grande bicho. Alimenta-se dele como o carrapato se alimenta do gado. Mas um belo dia o bicho come o parasita. É quando o homem morre e vai para debaixo da terra. p. 105

Mas será que a gente não pode fazer mais do que ter pena? Não haverá um remédio para a pobreza? Se todos tivessem, boa vontade, acho que o mundo melhorava sem comunismo nem essas outras histórias que os jornais falam todos os dias. Mas infelizmente por toda parte eu só encontro gente com disposição de brigar e prejudicar o próximo. p. 121

Mas o meu quarto é o lugar melhor do mundo. Aqui tudo é meu, aqui ninguém se mete, aqui não há caras tristes. [...] Não preciso de ninguém. Se todos me abandonam, tenho o meu quarto, os meus livros e o meu outro “eu” que conversa comigo. p. 156

Vasco então disse que achava essas histórias de farroupilhismos e bravatas e gauchismos muito engraçadas e ridículas. Respondi que não havia nada de engraçado nem ridículo e que os meninos precisavam conhecer a História da sua terra. Eu devia ter ficado calada, porque Vasco se pôs sério de repente e começou a falar, a falar, a falar, despejando um verdadeiro discurso em cima de mim. Demos mais de dez voltas ao redor da praça e o Gato do Mato, sempre falando. Disse que era muito malfeito ensinar às crianças que guerras e revoluções são coisas bonitas, que os heróis são só os generais e os soldados que matam. Disse que enquanto nós professoras ensinarmos na escola que foram os brasileiros que ganharam a batalha do Passo do Rosário, que o Brasil é mais corajoso, mais belo e mais adiantado que a Argentina ou do que o Chile – não poderá haver paz. Disse mais que as crianças vão se criando acostumadas a ouvir elogios à guerra e aos guerreiros e acabam achando que matar é a coisa mais natural e necessária deste mundo.
Quando ele parou um instante para tomar fôlego, eu aproveitei a pausa e disse que os meninos deviam aprender a amar a Pátria. Quando falei em Pátria, Vasco ficou aceso de novo e disse que essa idéia de pátria que nós temos é uma bobagem, que todos os homens são irmãos, são iguais e que por falarem línguas diferentes, terem olhos e cabelos de cor diversa não quer dizer que devam andar se estripando em guerras. [...] Disse que as guerras que nós pensamos que rebentam por causa do famoso patriotismo, são geralmente provocadas pelos vendedores de armamentos e por outros grandes negociantes que podem irar partido das bagunças internacionais. p. 202

- A vida é essa, - diz Vasco. – Uns têm automóveis e outros não têm. Os que têm jogam poeira nos que não têm. E assim o mundo marcha. p. 210

- Tu és comunista?
- Sou um ser humano. – Pausa. – Acho que a vida está torta e sofro porque não posso endireitar ela. Por isso é que quero fugir. p. 210

- Não adianta falar... – diz Vasco. – O mundo é assim. Nós fomos feitos deste jeito... A gente só se impressiona e sofre com o que sente de verdade. Quando a ferida é nos outros não dói em nós. A vida é assim. O melhor é fugir. p. 214

Olha para os alunos. Hoje eles são meninos. Amanhã serão homens e mulheres adultos, esquecidos de que estiveram juntos sob o mesmo teto, no colégio, alguns sentados no mesmo banco. Serão namorados e namoradas, maridos e mulheres, amigos ou inimigos. Uns irão embora para terras distantes e nunca mais voltarão. E já não terão estas caras contentes e lisas. Haverá rostos enrugados, bocas retorcidas e palavras feias e amargas saindo delas. Novas revoluções virão. Moisés que hoje dá um pouco de sua merenda a Carlos, na hora do recreio, amanhã estará atracado com ele, aos sopapos, por causa duma promissória, duma palavra, duma mulher ou dum pedaço de pão. Pedro sai da aula abraçado com Heitor. Amanhã cada qual terá o seu partido político, haverá um guerra civil e Pedro e Heitor se encontrarão no campo, e se espicaçarão a lançaços e a tiros, e lutarão com coragem e ferocidade, porque um dia, quando eles eram crianças, uma professora inconsciente lhes ensinou que matar pela sua bandeira é a coisa mais sublime, a suprema glória da vida.
E então ela pensa num mundo de palavras de amor e solidariedade para dizer, em vez da preleção patriótica que preparou em casa com cuidado, exaltando os heróis, frisando bem as datas, falando em patriotismo, coragem, ideal e sacrifício.
Vai falar. Vai despejar uma torrente de amor e ternura. Mas na porta aparece o vulto de D. Ermelinda, fiscalizando.
Com voz apagada Clarissa diz:
- Então, não esqueçam. Vinte de setembro, data duma das maiores revoluções brasileiras: a Revolução dos Farrapos. p. 221

terça-feira, 15 de março de 2011

O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde, 1890

Resolvi reler este livro e, mais uma vez, percebi como nossas leituras do mundo mudam, como as impressões mudam, as referências, etc. Reconheço que me impressionou muito da primeira vez. Agora, no entanto, já tive algumas ressalvas. É um ótimo livro sem dúvida, século XIX que por si já é algo incrível. O argumento é absolutamente genial. Penso, porém, que  poderia ter sido explorado de maneira mais sombria, mais densa. No todo, senti o livro muito dândi, muito floreado. Reflexo talvez do escritor, e da vida burguesa que levava. Neste sentido, o filme O retrato de Dorian Gray (2009) foi realmente muito feliz. Com algumas alterações adaptativas para uma melhor obra cinematográfica, o filme conta com uma fotografia incrível, e com a atuação notável do jovem ator Ben Barnes, um Dorian Gray perfeito. Sei que no livro Dorian é loiro, espadaúdo, etc. Mesmo assim, não consegui mais imaginar uma figura que correspondesse ao livro. É como se a alma do Dorian do cinema tivesse sido mais fiel ao espírito do livro do que o Dorian do próprio livro. Sei que é estranho dizer isso, mas foi assim que senti, assim que se deu comigo.
Apenas mais um ressalva, sobre o Oscar Wilde. Sei que "ser burguês" não é restrição de talento e não torna o autor menos creditado. Porém, muitas pessoas exaltam Wilde como um mártir do homossexualismo. Preso por isso, inclusive, sofredor. Contudo, sua vida foi bastante abastada e fútil. Foi casado e teve filhos. E o homossexualismo, no seu caso, foi mais um apetite pelo diferente, pelo experimental, na época, mesmo uma tendência de moda dos círculos intelectuais que aspiravam um retorno as origens clássicas. Mas teve também muitas paixões heterossexuais. Ficou preso apenas 2 anos, e algum tempo depois de sair da prisão recuperou  relativo prestígio artístico nos círculos sociais. 
No mais é isso. Indico os dois, livro e filme. Atenção para a tradução de Pietro Nassetti, muito boa, gostei muito. Seguem as fichas:

Ano: 2009
Origem: Reino Unido
Diretor: Oliver Parker
Escritores: Oscar Wilde (romance), Toby Finlay (roteiro)







WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005. 189 p.

                A forma de crítica mais elevada, como a mais baixa, é um gênero de autobiografia. Os que só vêem intenções vis nas coisas belas são depravados destituídos de encanto. É um defeito. Os que admitem intenções belas nas coisas belas são espíritos cultos. Para estes há esperança. São os leitos, para quem o belo significa unicamente beleza.
                A aversão do século XIX ao Realismo é a fúria de Calibã ao reconhecer a sua imagem num espelho. A antipatia que o século XIX vota ao Romantismo é o despeito de Calibã por não ver o seu rosto num espelho.
                Toda arte é ao mesmo tempo aparência e símbolo. Os que penetram abaixo dessa aparência o fazem por sua conta e risco. Os que decifram o símbolo também o fazem por sua conta e risco. A arte reflete o espectador e não a vida.
[Prefácio do autor, p. 13-14]

                Mas a beleza, a verdadeira beleza, acaba onde principia a expressão inteligente. A inteligência em si é uma espécie de exagero; desmancha a harmonia de qualquer rosto. A partir do instante em que nos metemos a pensar, vamos ficando só olhos, ou só testa, ou qualquer outro horror. p. 16

                Em toda superioridade física ou intelectual, há uma fatalidade, a fatalidade que parece seguir, através da história, os passos incertos dos reis. É preferível não sermos diferentes do nosso próximo. O feio, o tolo têm neste mundo a melhor sorte. Se não chegam a provar o gosto da vitória; pelo menos lhes é poupado o ranço das derrotas. Vivem como nós todos deveríamos viver: sossegados, indiferentes, sem preocupações. Não causam a desgraça alheia nem são desgraçados por alheias mãos. A sua posição social e a sua riqueza, Harry, a minha inteligência, seja qual for, a minha arte, valha o que valer, a bela aparência de Dorian Gray: são dons dos deuses, pelos quais teremos os três de sofrer, de sofrer horrivelmente. p. 17

[...] o gênio dura mais do que a beleza. Isso explica o nosso empenho em nos educarmos bem. Na luta feroz pela existência, queremos contar com alguma coisa duradoura, e enchemos a mente com bobagens e fatos, na esperança insensata de guardarmos o nosso lugar. O homem perfeitamente bem informado, eis o ideal moderno. E o cérebro do homem perfeitamente bem informado é uma coisa horrorosa, uma espécie de bricabraque atulhado de monstrengos e de poeira, com tudo tabelado abaixo do verdadeiro valor. p. 23

[...] a pior conseqüência de um romance de qualquer gênero é ele nos deixar tão desromantizados. p. 24

- Boa influência é coisa que não existe, senhor Gray. Toda influência é imoral... imoral, do ponto de vista científico.
- Por quê?
- Porque influenciar uma pessoa é emprestar-lhe a nossa alma. Essa pessoa deixa de ter idéias próprias, de vibrar com as suas paixões naturais. As suas qualidades não são verdadeiras. Os seus pecados, se é que existe o que se chama pecado, vêm-lhe de outrem. Essa pessoa torna-se o eco da música de outra pessoa, intérprete de um papel que não foi escrito para ela. A finalidade da vida é para cada um de nós o aperfeiçoamento, a realização plena da nossa personalidade. Hoje, cada qual tem medo de si próprio; esquece o maior dos deveres: o dever que tem consigo mesmo. Naturalmente, o homem é caridoso. Dá de comer ao faminto, veste o maltrapilho. Mas a sua alma é que sofre e anda nua. A coragem abandonou a nossa raça. Talvez nunca a tenhamos tido. O temos da sociedade, que é a base da moral, e do temos a Deus, que é o segredo da religião... eis as duas coisas que nos governam. Contudo, sou de parecer que se o homem vivesse plena e totalmente a sua vida, desse forma a todo sentimento, expressão a toda idéia, realidade a todo devaneio... creio que o mundo receberia um novo impulso de alegria que nos faria esquecer todos os males do medievalismo e voltar aos ideais helênicos. Mas o mais valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo. A mutilação do selvagem subsiste tragicamente na renúncia que nos estraga a vida. Somos punidos pelo que enjeitamos. Todo o impulso que nos empenhamos em sufocar incuba no nosso espírito e nos envenena. [...] A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder-lhe. Resistamo-lhe, e nossa alma adoecerá de desejo do que proibimos a nós mesmos, do que as suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilegítimo. Tem-se dito que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro. Também é no cérebro, e só nele, que ocorrem os grandes pecados do mundo. p. 28-29

[...] este é um dos grandes segredos da vida: curar a alma, por meio dos sentido, e os sentidos , por meio da alma. p. 30

A beleza é uma forma de gênio... mais elevada até do que o gênio, pois dispensa explicação. Faz parte dos grandes fatos do universo, como a luz do sol, ou a primavera, ou o reflexo, nas águas escuras, dessa concha de prata a que chamamos lua. p. 31

O mundo é seu pelo espaço de uma temporada. p. 32

Quem foi que definiu o homem como animal racional? A definição mais prematura que já se formulou. O homem pode ser tudo menos racional. p. 36

O traje do século XIX é detestável. Escuro, tristonho... O pecado é realmente o único colorido que subsiste na vida moderna. p. 36

Herdando meses depois o título, dedicara-se ao estudo profundo da grande arte aristocrática de não fazer absolutamente nada. p 38

As pessoas filantrópicas perdem toda a noção de humanidade. p. 41

Meu filho, mulher nunca é um gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Nunca têm nada a dizer, mas falam que é um encanto. As mulheres representam o triunfo da matérias sobre o espírito; exatamente como os homens do espírito sobre a moral. p. 50

Um grande poeta, o verdadeiro grande poeta, é o menos poético dos indivíduos. Mas os poetas medíocres são encantadores. Quanto piores os versos, tanto mais pitoresco é o poeta. Ele vive a poesia que não soube escrever. Os outros escrevem a poesia que não conseguem concretizar. p. 57

Corpo e alma, alma e corpo – que dupla misteriosa! Há animalismo na alma; e o corpo tem sues momentos de espiritualidade. Os sentidos podem adquirir requintes, como o espírito está sujeito a degradar-se. Quem saberá dizer onde cessa o impulso carnal ou onde começa o impulso físico? Estará a alma instalada na casa do pecado, ou o corpo inserido realmente na alma? A separação entre o espírito e a matéria é um mistério; como é um mistério a união do espírito com a matéria. p. 58

A sabedoria de lábios finos, sentada na poltrona surrada, tornou a exortá-la à prudência com citações do livro da covardia, cujo autor se disfarça sob o nome de senso comum. p. 60

Sempre há um quê de ridículo nas emoções das criaturas que deixamos de amar. p. 81

Na auto-acusação há uma espécie de volúpia. Acusando-nos, sentimos que ninguém mais tem o direito de nos censurar. É a confissão que nos absolve, e não o sacerdote. p. 87

[...] nada nos envaidece tanto como dizerem-nos que somos pecadores. p. 92

[...] a admiração física pela beleza nasce dos sentidos e morre quando os sentidos se cansam. p 105

Um olhar retrospectivo à evolução do homem através da história causava-lhe uma impressão de dano irreparável. Quantos sacrifícios vãos! Renúncias voluntárias, formas monstruosas de penitência e de auto-imolação originadas pelo terror e cujo resultado era a degradação infinitamente maior e mais terrível do que a abjeção imaginária a que pretendiam furtar-se pobres criaturas ignorantes. A natureza, na sua estupenda ironia, levava os monges a conviver com as feras do deserto, dava aos eremitas, por companheiros, os animais campestres. p 113.

Cada um de nós tem em si o céu e o inferno. p. 131

A vida é muito curta para tomarmos às costas o fardo dos erros alheios. Cada um vive como quer e paga pelo que faz. Só é triste que muitas vezes se deva pagar por uma só falta. E a expiação não tem fim. Nos seus negócios com o homem, o destino nunca fecha a conta. p. 153

Definir é limitar. p. 158

Vá que fosse ilusão... Mas que poder, o da consciência! Que vida seria a dele, daí em diante, se os espectros dos seus erros o perseguissem dia e noite? p. 161

Os livros que o mundo tacha de imorais são os que mostram a sua imoralidade. p. 173

quinta-feira, 10 de março de 2011

As portas da percepção / Céu e Inferno - Aldous Huxley, 1954 - 1956


Esse livro, à grosso modo, trata da experiência no uso da mescalina, substância alucinógena extraída de um cacto. O autor, Huxley, fez uso dessa substância a fim de estudar o estado mental ao qual somos levados sob efeito da mescalina. Mas o livro traz uma proposta que vai além de um simples relatório de resultados e análises.  A obra tematiza o papel de todos os modificadores de consciência - sejam eles naturais ou químicos - na vida do homem, ao longo da história. Faz conexões com as religiões, e com os variados aspectos da vida em sociedade. Coloca questões interessantíssimas, sobre o que ele chama de céu e inferno, ou seja, um estado de transcendência mental e espiritual ao qual o usurário é levado por via do uso de alteradores / ampliadores dos sentidos. Huxley faz uma ligação entre o estado alterado de consciência e uma espécie de onisciência universal, um contato com a verdade absoluta do universo. Do mesmo modo, problematiza o conflito que tal estado encerra em si, na medida em que impõe ao homem um estado permanente de contemplação, o que impossibilitaria as ações fundamentais demandadas pela vida em sociedade. É curtinho, vale a leitura.



HUXLEY, Aldous. As portas da percepção; Céu e Inferno. Trad. Osvaldo de Araújo Souza. São Paulo: Globo, 2002. 169 p.

Quando cheguei à maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre0pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ – haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. [...] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos gnósticos da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.
[Henry Huxley – biólogo; inventor do termo agnóstico em meados do século XIX; avô de Aldous Huxley – Citado por Manuel da Costa Pinto no prefácio, p. 13]

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. p. 24


Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, Dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu – beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está ao nosso alcance; e isso subverte nosso senso de realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contado não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. p. 32-33

[...] importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. p. 41

E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? p. 47

[Em relação ao estado contemplativo que a mescalina proporcionar em contraposição ao estado ativo, da sobriedade]

Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. [...] seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais – por exemplo, quando se esforça em demais, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro -, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. p. 57

Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E na vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos serem humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais de percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos – o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos. 
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados. 
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida. A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalismo utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça. p. 66-67

O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atitude intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião – o álcool e as “pílulas inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”. 
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto mesmo as mais tolerantes jamais procuram converter a bebida ao cristianismo – isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de cerveja, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo. p. 72

Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta da Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender. p. 80



Céu e Inferno

A natureza primitiva guarda uma estranha similitude com esse mundo interior onde nossos desejos pessoais não são levados em conta nem são consideradas as preocupações constantes do homem em geral. p. 120

[...] Algo de natureza semelhante pode suceder após a morte. Depois de ter sido contemplado, de relance, o ofuscante esplendor da Realidade derradeira, e após ter vagado, de uma para outro lado, entre o céu e o inferno, a maioria das almas acabará por conseguir recolher-se àquela região mais tranqüila da mente onde lhe seja possível fazer uso dos seus e dos alheios desejos, recordações e predileções para construir um mundo bem semelhante ao que teve na Terra. p. 128

A pompa é uma arte visionária que tem sido usada, desde tempos imemoriais, como instrumento político. As suntuosas roupagens usadas por reis, papas e seus respectivos séquitos, militares e eclesiásticos, tinham uma finalidade bastante objetiva – impressionar as classes inferiores com um sentimento vívido da grandeza sobre-humana de seus senhores. Com o auxílio de belas roupas e de cerimônias solenes, a dominação de facto era transformada em reinado, não só de jure, mas até mesmo de jure divino. As coroas e tiaras; as variegadas jóias, cetins, sedas e veludos; os faustosos uniformes e vestimentas; as cruzes e medalhas; os punhos das espadas e os báculos; as plumas nos amplos chapéus e seus equivalentes clericais; aqueles enormes leques de penas que fazem com que qualquer audiência papal se pareça com um quadro da Aída – tudo isso são artifícios propiciadores de êxtase, destinados a transformar humaníssimos cavalheiros e damas em heróis, semideuses e serafins, proporcionando dessa forma uma boa dose de prazer inocente a todos, sem distinção: atores e espectadores. p. 148

O passado não é coisa fixa e inalterável. Suas realidades vão sendo redescobertas a cada geração, seus valores sofrem reavaliações, seus significados recebem novas definições, de acordo com as tendências e preocupações da época. Baseando-se nos mesmos documentos – bibliográficos, arquitetônicos e artísticos -, cada época concebe sua própria Idade Média, uma China a seu sabor, uma Hélade patenteada e com direitos de reprodução reservados. p. 155





terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Angústia (Gacriliano Ramos, 1936) & Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski, 1866)

Vou postar esses livros juntos, pois percebi uma grande influência de Dóstoiévski em Angústia, do Graciliano Ramos. Ambos os livros tratam de um crime - com naturezas distintas é bem verdade -, mas descrevem com verdadeira maestria os devaneios sombrios que sofrem as almas torturadas dos personagens depois de cometerem o crime de assassinato. As duas obras também apresentam uma detalhada narrativa dos processos emocionais e racionais pelos quais os personagens passam até chegar no extremo dos crimes.
Dóstoiévski nos traz de maneira mais contundente um debate ético e moral - quase filosófico - sobre o crime. Graciliano, por outro lado - não que também não o faça - , mas trata da ânsia assassina por um viés mais passional. 
As duas obras nós dão muito o que pensar e reavaliar.

RAMOS, Graciliano. Angústia. RJ; SP: Editora Record. 239 P.


[...] a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado. p. 13

Tenho-me esforçado por tornar-me criança - e em conseqüência misturo coisas atuais a coisas antigas. p. 17

Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo. p. 20

Não, não é o sino da igreja, é o relógio da sala de jantar. Oito e meia. Preciso vestir-me depressa, chegar à repartição às nove horas. Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer. Mexo-me, atravesso a rua a grandes pernadas. p. 22

E eu acredito em Moisés, que não escora as suas opiniões com a palavra do Senhor, como os antigos: cita livros, argumenta. Prega a revolução, baixinho, e tem os bolsos cheios de folhetos incendiários. De repente cala-se: foi o doutor chefe de polícia que apareceu e começou a cochichar com os políticos. O dedo de Moisés some-se entre as folhas do jornal, o revolucionário esconde-se por detrás do sorriso inexpressivo. Covardia. Mas afasto este pensamento severo. Moisés não tem jeito de herói: é apenas um sujeito bom e inteligente. p. 25

A noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum. p. 43

E divergi dele, porque o achei horrivelmente antipático. Ouviu-me atento e mostrou desejo de saber o quem eu era. Encolhi os ombros, olhei os quatro cantos, fiz um gesto vago, procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada.
- Luís da Silva, Rua do Macena, número tanto. Prazer em conhecê-lo. p. 44

- Que diabo vem fazer este sujeito? Murmurei com raiva no dia em que Julião Tavares atravessou o corredor sem pedir licença e entrou na sala de jantar, vermelho e com modos de camarada. Soltei a pena, Moisés dobrou o jornal, Pimentel roeu as unhas. E assim ficamos seis meses, roendo as unhas, o jornal dobrado, a pena suspensa, ouvindo opiniões muito diferentes das nossas. As de Moisés são francamente revolucionárias; as minhas são fragmentadas, instáveis e numerosas; Pimentel às vezes está comigo, outras vezes inclina-se para Moisés. Raramente discutíamos. O judeu cansava-se em dissertações longas, que eu aprovava ou desaprovava com a cabeça. Acontecia aprovar agora e reprovar depois. Quando bebia, tornava-me loquaz e discordava de tudo só por espírito de contradição:
- História? Esta porcaria não endireita. Revolução,o no Brasil! Conversa! Quem vai fazer revolução? Os operários? Espere por isso. Estão encolhidos, homem. E os camponeses votam com o governo, gostam do vigário. O que eu queria era convencer-me de que não tinha razão. Desejava que Moisés estirasse argumentos e seu Ivo se revoltasse.
- Números. Nada de tapeação. Estatística.
O judeu falava em milhões de desempregados, em consciência de classe, voltava-se para seu Ivo, que não compreendia a língua dele:
- Não entendo. Vosmecês são brancos, lá se arrumem. p. 47
  
Se me tivesse encomendado e pago um artigo de elogio à firma Tavares & Cia., eu teria escrito o artigo. E isto. Pratiquei neste mundo muita safadeza. Para que dizer que não pratiquei safadezas? Se eu as pratiquei! É melhor botar a trouxa abaixo e contar a história direito. Teria escrito o artigo e recebido o dinheiro. p. 50

Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas, com a tentação de destruir os objetos expostos. As mulheres que ali estavam em pasmaceira, admirando aquelas porcarias, mereciam chicote. Fui ao jornal, li os telegramas. Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social. p. 78

As aparências mentem. A terra não é redonda? p. 83

Absurdo pretender que uma pessoa passe a vida com os olhos fechados e vá abri-los exatamente na hora em que aparecemos diante dela. p. 102

Hábitos diferentes, necessidades novas. p. 104

Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Freqüentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro do chofer. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me.
- "Perdão! Perdão!" digo às pessoas que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócios, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Às vezes isso me perturba, tira-me o sono. Penso nos namorados que se atracam junto a uma vitrina, em posição incômoda, no operário que tem fome e ameaça o patrão, na criança que chora perdida, chamando a mamãezinha. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente. Não fiz nenhum esforço para observar o que se passava na multidão, ia de cabeça baixa, dando encontrões a torto e a direito nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra amarga, um suspiro - e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama. p. 129

Medo da opinião pública? Não existe opinião pública. O leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo atrapalha-se e não sabe para que banda vai. p. 156

Teria dito e repetido outra palavra que insistisse em vir-me à boca, dessas coisas que a gente diz à toa e conserva porque vieram espontaneamente e são insubstituíveis e absurdas. p. 176

O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa. p. 202
  

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2007. 590 P.


 - Dá-me licença que te faça uma pergunta a sério? - disse o estudante, ainda um pouco exaltado. - É claro que eu, há pouco, falava de brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que não dá proveito a ninguém, e que até, pelo contrário, a todos prejudica; que nem ela própria sabe para que vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente... Compreendes? Compreendes? [...]Do outro lado energias jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isto aos milhares e em toda parte. Mil obras e boas iniciativas se poderiam fazer com o dinheiro que esta velha deixa ao mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos... E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida... mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas... É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. Ela se alimenta da vida alheia, é má. p. 79

- Oh, que desmancha-prazeres! Os princípios! Tu te moves por princípios, como se fossem molas; não te atreves a atuar livremente; para mim, o fundamental é que o homem seja bom. E, francamente, reparando bem, em todas as classes não há muitas pessoas boas. p. 150

- Isso é mentira, esse sentido prático não existe - interveio Razumíkhin. - O sentido prático é difícil de criar, e não cai do céu aos trambolhões. E há quase duzentos anos que nós temos as costas voltadas a tudo quanto é prático... Idéias, sim, pululam - e encarou Piotr Pietróvitch -; o desejo do bem existe, embora sob uma forma pueril, e honestidade também se encontra, apesar de que, visíveis ou encobertos, abundam os velhacos; mas, pelo quanto ao sentido prático, não existe de maneira nenhuma. Quanto a senso prático, nada! p. 166

- Não, não é um lugar-comum! Se a mim, por exemplo, em outro tempo, me tivessem dito: "Ama o teu próximo", e eu o tivesse amado, que teria resultado disso? - continuou a dizer Piotr Pietróvitch, talvez com demasiada pressa. - O resultado seria eu ter rasgado o meu cafetã em dois, ter repartido com próximo, e ficaríamos os dois remediados, como diz o ditado russo: "Persegue várias lebres ao mesmo tempo e ficarás sem nenhuma". Mas a ciência diz: "Antes de mais ama-te a ti próprio, porque tudo no mundo está baseado no interesse pessoal. Se te amares a ti próprio farás os teus negócios como devem ser, e o teu cafetã permanecerá inteiro". O direito econômico diz-nos que quanto mais negócios particulares existem na sociedade e, por assim dizer, mais cafetãs inteiros, tanto melhor para a firmeza dos seus fundamentos e tanto melhor para a gestão do negócio coletivo. Por isso, cuidar única e exclusivamente de mim é precisamente a maneira de também cuidar dos outros e fazer com que o meu próximo receba algo mais do que um cafetã partido em dois, e isso sem ser devido a mercês particulares e únicas, mas como conseqüência do progresso geral. Idéia simplicíssima, mas que, por infelicidade, foi concebida muito tarde e acabou por ser suplantada pelos entusiasmos e pelos sonhos; apesar de que, segundo parece, não é preciso muita esperteza para compreender... p. 167
E por que me meti em discussões com aqueles malvados? Eu tinha jurado que não voltaria a discutir com eles! Mas eles dizem tantos absurdos! É impossível não discutir com eles! p. 223
Gostamos de nos regalarmos com a inteligência alheia! Da papinha já feita! Não é verdade? p. 224

Que hei de eu dizer-lhes? Já há meio ano que convivo com Rodka: áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Generoso e bom ele é. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso, às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que beira a desumanidade; é assim mesmo, como se nele alternassem dois caracteres desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Não se interessa por uma coisa que em outra época o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso. [Perfil de Rodka segundo seu amigo Razumíkhin]p. 238

- Imagina, Rodka, o que chegaram a discutir: se o crime existe ou não. Fartaram-se de disparatar.
- Que tem isso de extraordinário? É uma questão social vulgar – respondeu Raskólhnikov com ar distraído.
- Não foi assim que eles puseram a questão - observou Porfíri.
 - É verdade - concordou logo Razumíkhin, atrapalhando-se e exaltando-se, conforme o seu costume. - Olha, Rodka, primeiro escuta, e depois dá a tua opinião. Gostava que o fizesses. Eu, ontem, estava numa ansiedade, à tua espera, tinha-lhes prometido que tu irias... A coisa começou pelo ponto de vista dos socialistas. Já se sabe qual é: o crime é um protesto contra a anormalidade do regime social... isso e só isso, e é escusado procurar-lhe outras causas... Acabou-se!
- Mentira! - exclamou Porfíri Pietróvitch. Era notório que se entusiasmava, e sorria a cada instante, olhando para Razumíkhin.
- Qual mentira! Hei de mostrar-te livros; segundo eles, todos os crimes se devem ao ambiente deletério, e nada mais. Magnífica frase! De onde se deduz, diretamente, que, se a sociedade estivesse normalmente constituída, então acabariam imediatamente todos os crimes, visto que já não haveria contra que protestar e todos passariam instantaneamente a ser inocentes. Quanto à natureza, não a tomam em consideração, puseram-na no olho da rua, não toleram a natureza. Para eles não é a natureza que, desenvolvendo-se de um modo histórico, vivo, até o fim, acabará por transformar-se ela própria numa sociedade normal, mas, pelo contrário, será o sistema social que, brotando de alguma cabeça matemática, procederá em seguida a estruturar toda a humanidade e, num abrir e fechar de olhos, a tornará justa e inocente, mais depressa do que qualquer processo vivo, sem seguir nenhum caminho histórico e natural. Por isso eles sentem instintivamente aversão pela história: nela só se encontra monstruosidade e estupidez; deitam todas as culpas para cima da estupidez. E por isso também não amam o processo "vital" da vida; não querem nada com a "alma viva". A alma viva da vida tem exigências; a alma viva não obedece mecanicamente; a alma viva é suspeita; a alma viva é retrógrada. E, embora cheire a mortos, eles podem construir com a alma de borracha... que não será viva, nem terá vontade, será uma escrava e não se revoltará... E chegam ao resultado de idealizar um simples amontoado de tijolos, sim, a distribuição de corredores e quartos do falanstério. O falanstério está pronto; mas a vossa natureza ainda não o está para o falanstério; anseia pela vida, o processo vital ainda não terminou, ainda é cedo para a cova. É impossível saltar com a lógica apenas por cima da natureza. A lógica pressupõe três casos, ao passo que há milhões deles. Pois façam tábua rasa desses milhões e reduzam tudo ao simples problema do conforto! Essa é a solução mais fácil do enigma. Duma clareza sedutora, e evita o incômodo de pensar. Porque o essencial é isso: não ter que pensar. Todos os mistérios da vida podem compendiar-se em duas folhas de papel impresso.
- Ei-lo no seu elemento! É preciso ter mão dele! - gracejou Porfíri. - Imagine seis pessoas metidas num quarto e, além disso, previamente encharcadas em álcool... Já pode fazer uma idéia! Não, meu amigo, tu mentes: o meio significa muito na criminalidade, isso afirmo-te eu.
- Eu também sei que influi muito; mas dize-me: um quarentão desonra uma menina de dez anos; foi o meio que o induziu a isso?
- Pois sim; no estrito sentido da palavra, pode dizer-se que foi o meio – observou Porfíri com uma grave firmeza -; pode explicar-se o crime, em grande parte, pela menina, e, em grande parte também, pelo meio. Razumíkhin ficou furioso. p. 281-282
Que vem a ser isso de fugir? Isso é pura fórmula; o essencial não é isso; não só ele não me escapa por não ter para onde fugir, como também não me escapa por razões psicológicas, he... he! Esta frasezinha, hein? Não me escapa pela lei da natureza, ainda que tivesse para onde fugir. Já reparou numa borboleta à volta da luz? Bem, pois da mesma maneira se porá ele a dar voltas e voltas em meu redor, como em torno de uma vela; a liberdade deixará de ser-lhe agradável, começará a matutar, a viver numa inquietação, a ficar preso nas suas próprias redes e a sofrer angústias mortais... E isso ainda não é tudo: ele próprio, espontaneamente, me proporcionará alguma prova matemática, do gênero de dois e dois são quatro... assim que eu lhe consinta um intervalo mais longo... E não fará mais do que traçar círculos e mais círculos cada vez mais apertados à minha volta, até que... pumba! Num desses vôos me virá cair na boca e eu engoli-lo-ei com todo o gosto, he... he! Não lhe parece? p. 371

Também pode ser que, em grande parte, tivesse obedecido a esse orgulho especial que faz com que em algumas cerimônias sociais, obrigatórias para todos, dentro dos nossos costumes de vida, muitos pobres esgotem as suas últimas forças e até o último copeque apenas com o fim de não fazerem pior do que os outros e de que os outros não façam má opinião acerca deles. p. 410
Além disso reconhecia que os homens não mudam e não há quem seja capaz de mudá-los, e que não vale a pena uma pessoa incomodar-se em vão. p. 452
Eu cheguei até lá pelo raciocínio e foi isso que me perdeu. Imaginas tu, por acaso, que eu não sabia que, por exemplo, se começasse a perguntar a mim próprio e a examinar: "Tenho ou não o direito de possuir o poder?", era porque então, provavelmente, não tinha esse direito? Ou que, se fizesse a pergunta: "É um piolho ou um ser humano?", então, com certeza que o ser humano já não seria para mim um piolho, mas só para aquele a quem isso não tivesse passado pela imaginação e que fosse direito até lá, sem fazer essas perguntas? Quando eu levei tantos dias neste tormento: "Napoleão faria isto ou não?", já eu compreendia claramente que não era um Napoleão... Todo, todo o suplício desse palavreado o sofri; eu queria matar sem casuística, matar para mim, para mim só. Não queria mentir nisto, nem a mim próprio! Não foi para ajudar a minha mãe que eu matei... Que absurdo! Também não foi para me tornar um benfeitor da humanidade, uma vez que dispusesse já de meios e poder, que eu matei. Que absurdo! Matei, simplesmente; matei só para mim, para mim apenas, e, se em conseqüência disso eu me tivesse podido tornar um benfeitor, ou tivesse passado toda a vida, como a aranha, apanhando presas na teia e alimentando-me dos seus sucos vitais, para mim tudo isso teria sido indiferente... E também não precisava de dinheiro, nem isso era o principal; quando matei, precisava mais de outra coisa do que de dinheiro... Tudo isso o sei eu agora... Vê se me compreendes; pode ser que, se tivesse de percorrer as mesmas pegadas, já não tornasse a repetir o crime. Eu precisava de conhecer outra coisa, outra coisa me puxava pelo braço: então, eu precisava de saber, e de saber o mais depressa possível, se eu também era um piolho, como todos, ou um homem. Estava capacitado para transgredir a lei ou não estava? Tinha ousadia para ultrapassar os limites, para tomar este poder, ou não? Era eu uma criatura trêmula ou tinha o direito? p. 453-454

Eu estou convencido de que isso é uma doença como tudo o que ultrapassa os limites, e aí ultrapassa-se infalivelmente. Mas repare: em primeiro lugar, cada um tem os seus limites, este tem um, aquele outro, e, além disso, em tudo é preciso ter comedimento, embora isto seja um cálculo reles; mas que se há de fazer? Se procedermos de outra maneira, não nos resta mais nada senão darmos um tiro na cabeça. p. 508
[...] nunca ponha as mãos no fogo quando se trata de coisas entre marido e mulher ou entre apaixonados. Há sempre aí um cantinho, que permanece ignorado para toda a gente, e que só eles, os dois, conhecem. p. 516
No fracasso tudo parece estúpido. p. 559
Será a falta de coragem e o medo da morte pudessem obrigá-lo a viver? p. 562
Eu me conduzo para com o senhor como para um homem enobrecido pela ilustração. Olhe, as parteiras diplomadas multiplicaram-se excessivamente... - Refiro-me a essas mulheres de cabelo cortado - continuou o tagarela do Iliá Pietróvitch. - Eu lhes pus o nome de parteiras e acho que é uma denominação muito apropriada. He, he! Introduzem-se na Academia, estudam anatomia; ora vamos lá a ver, diga-me: se eu adoecer, chamarei uma moça para que me trate? He, he! - Iliá Pietróvitch pôs-se a rir, muito satisfeito da sua esperteza. - Suponhamos que se trata de uma ânsia intensa de se instruírem; mas que se instruam e pronto. Para que abusar? Por que ofender as pessoas decentes? p. 570
"Em que, em que", pensava, "era a minha idéia mais estúpida que outras idéias e teorias que correm e se entrechocam pelo mundo, e assim farão, enquanto o mundo existir? O que é preciso é encarar o caso com olhos completamente independentes, amplos e livres de influências cotidianas, para que a minha idéia não pareça já tão... absurda. Oh, negadores e sábios do valor de meia tigela! Por que parais a meio do caminho? Ora vejamos: por que é que a minha conduta vos parece tão ignominiosa? Por que fui um... criminoso? Que significa a vossa criminalidade? A minha consciência está tranqüila. É certo que se consumou um crime de pena capital; é certo que se infringiu a letra da lei e se derramou o sangue; pois bem... Tomem a minha cabeça pela letra da lei... e basta! É certo que, nesse caso, até muitos benfeitores da humanidade, que não receberam o poder por herança, mas o conquistaram, teriam merecido castigo desde os seus primeiros passos. Mas esses indivíduos seguiram para diante e depois tiveram razão, ao passo que eu não resisti e, portanto, não tinha direito a dar esse passo." Era unicamente nisto que ele se reconhecia culpado: em não ter persistido e em ter ido denunciar-se.
Sofria também perante esta idéia: "Por que não se suicidara então? Por que estivera ali, à beira da água, e optara por ir denunciar-se? Dar-se-ia o caso de que o desejo de viver fosse tão forte e fosse tão difícil vencê-lo? Preferia ver nisso simplesmente o peso cego do instinto, do qual não pudera desprender-se, e que também não tinha forças para rebaixar (devido à sua fraqueza e insignificância). Olhava para os seus companheiros de presídio e ficava espantado. Como todos eles amavam a vida, como a apreciavam! Parecia-lhe até que no presídio ainda a amavam e estimavam mais do que quando estavam livres. Quantos sofrimentos terríveis e mortificações não suportavam alguns deles, por exemplo, os vagabundos! Mas significaria assim tanto, para eles, um pequeno raio de sol, um bosque calmo, uma fonte fresca, além, na espessura, vislumbrada três anos atrás, e com a visita da qual o vagabundo sonha como com um encontro com a sua amada, e a vê em sonhos com a erva verde à volta e um passarinho cantando numa árvore! p. 583


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O resto é silêncio - Érico Veríssimo, 1943

Já faz algum tempo que li esse livro, mas lembro como fiquei encantada com ele. Não é uma das obras mais conhecidas do Veríssimo, mas sem dúvida ganha lugar entre as melhores. O eixo central da história parte de um suposto suicídio de uma moça, que cai de cima de um prédio. Uma das coisas mais legais de ler Veríssimo, nesse caso principalmente, é que o espaço onde acontece a história é a cidade de Porto Alegre, nas redondezas da Praça da Alfândega. O prédio em questão é o Edifício Imperial, onde foi o antigo Cinema Imperial. Lembro-me que à época da leitura, eu passava lá em frente e ficava olhando pro alto do prédio, realizando a história. Também sempre fico olhando pra praça e imaginando que ela foi um importante espaço de reflexão do autor, me sinto comovida com isso. Mas enfim, a história é multidimensional, na medida em que parte de um fato específico e vai mostrando vários núcleos de personagens e como cada um teve contato com o acontecido e a impressão que tiveram. E, claro, a história é cercada de um realismo singelo e tocante, com passagens imensamente filosóficas, daquela filosofia verdadeira, de todo dia, e não daquela plástica, teórica e puramente ideológica.
Segue fichamento:



-“Olha o mundo com uma curiosidade temperada de indolência e com uma malícia misturada de ternura. É tolerante e tem horror à violência. Nutre um respeito sagrado  pela liberdade de pensamento e expressão do próximo. Prefere a contemplação à ação e quase  sempre está ausente do lugar em que seu corpo se encontra. Vê e interpreta a vida mais como poeta que como profeta. Ama a limpidez e a simplicidade de expressão. Não gosta de palavras grandes e dos gestos dramáticos. Exteriormente parece um homem frio, reservado e calculista; por dentro... um sentimental e um romântico que tem pudor tanto da lágrima como da risada aberta. Como romancista, preocupa-se principalmente com seres e problemas humanos. É muito ignorante e não me parece forte em matéria de idéias gerais. Acho-o, no entanto, dotado duma intuição quase milagrosa e duma imaginação colorida. Diante do problema da morte, sua atitude é de perplexidade. Reconhece o mistério, sim, mas concorda em que não nos é lícito quebrar o Grande Silêncio para dizer uma puerilidade.” (pág. 61)

“Tônio agora olhava o crepúsculo. O horizonte passava do ouro novo para o ouro velho que pouco a pouco ia tomando tonalidades de cobre.” (pág. 59)

“No momento em que o drama da guerra deixa pequenos e apagados todos os dramas da literatura, que interesse poderá oferecer a história dum homem ou grupo de homens? Será lícito repisar os velhos e melancólicos problemas da vida quotidiana? Por outro lado, era o seu próprio espírito que produzia o contraveneno: Acima dos ditadores, de toda violência, de todas as guerras, existe algo de mais forte, algo de eterno: É a vontade que o povo tem de sobreviver, de acreditar, de renovar-se. Há ainda o drama essencial do homem, que pertence a todas as épocas, que mora na alma de cada criatura, que está presente em cada simples minuto da vida. Acontece ainda – refletia Tônio – que nossas almas têm estranhas veredas. Podemos ouvir ou ler, chocados em maior ou menos grau, a notícia dum massacre de crianças, e esquecer o fato no instante seguinte, continuando a viver como se nada tivesse acontecido. No entanto, se na rua um amigo estimado nos nega o cumprimento, voltamos para casa abalados e passamos uma noite insone a nos revolver na cama e a pensar no ‘fato’, com uma impressão de catástrofe.” (pág. 55)

“Arte pelo amor da vida. Pinta-se, compõe-se música, escreve-se romance ou poesia, faz-se escultura, enfim, praticam-se todas as formas de arte, parece-me, num desejo de imitar a vida, corrigi-la, compreendê-la, ampliá-la ou fruí-la da maneira mais sensualmente larga. E não devemos esquecer que nisso, como em tudo mais, há sempre a presença do mistério.” (pág. 62)
-“Penso que as criaturas humanas querem antes de mais nada durar e ser felizes, principalmente durar. Para a maioria não se trata apenas de durar aqui na terra, mas de continuar na ‘outra vida’, passar do plano do tempo para o da eternidade. Creio que a função principal do romancista é contar a história do homem na sua luta em prol da sobrevivência e da felicidade...” (pág. 63)
-“Se um escritor tem uma história para narrar – disse – não vejo razão para que não a conte em termos claros, a fim de que o maior número possível de pessoas a leia e compreenda. Não participo desse desejo orgulhoso e aristocrático de hermetismo... Acho desonesto o truque de turvar as águas para dar a impressão de profundidade. Não, Nora, a vida já é suficientemente complexa... a gente não deve inventar complicações artísticas.” (pág. 71)

“Aqueles efebos pareciam os ‘donos da música’. Sentavam-se quase sempre no chão, as pernas dobradas à maneira oriental, as mãos enlaçando os joelhos. Gostavam de Debussy, de Ravel e tinham delíquios quando falavam em Serge Lifar ou em Nijinsky. Aquelas reuniões eram uma feira de vaidades, de sensibilidades assanhadas. Notava-se naquela gente um desejo de parecer boêmia e original, de fugir a tudo quanto fosse burguês. Havia também as modas. A época de Bach, por exemplo. De repente como que descobriam o homem e cada qual tentava classificá-lo, explicá-lo. Cantarolavam trechos de tocatas, fugas e prelúdios. Alguém ia para o piano. Havia orgias de Bach. Depois Bach passava a ser um velho maníaco, um matemático frio e  lá surgia uma onda de Prokofief. Como podiam aquelas criaturas ser tão artificiais? Contemplando-as, em cada gesto, em cada testa, em cada olhar, Marina via escrita em berrantes maiúsculas a palavra EU. Por todos os lados – EU. Vaidades superexitadas, desejos de fama, malícia e maldade ali se misturavam desconcertantemente com ingenuidades inacreditáveis. Teriam esses ‘artistas’ vergonha de serem humanos? Seria que durante as vinte e quatro horas de cada dia nunca tiravam as máscaras, não faziam gestos humildes, não diziam ou pensavam coisas simples, quotidianas? Marina sabia que sim. No fundo não passavam de pobres diabos que andavam atrás do dinheiros para o fim do mês e dum alimento para as suas vaidades.” (pág. 112/113)

“Quisera ter fé religiosa ou acreditar firmemente em alguma doutrina política... Mas tinha uma incapacidade absoluta para se enquadrar em partidos ou seitas. Reconhecia, com certa má vontade, que era indispensável uma fé firme para realizar grandes coisas. Se ele tivesse essa fé num deus ou numa idéia, haveria de orientar seus livros no sentido dessa fé política ou religiosa, não porque achasse que a arte deve ter uma coloração sectária, mas porque reconhecia estar o mundo vivendo um momento excepcional em que a ninguém é lícito ficar indiferente. O mundo estava doente. Era necessário curá-lo para que depois as criaturas humanas pudessem entregar-se à bela e simples tarefa de viver, de prosseguir na sua busca de beleza e de bondade. Mas... e se não houvesse cura possível? Se o homem, por uma lei inelutável, tivesse de ser sempre o lobo do homem?” (pág.169)

“D. Herta parecia resolvida a levar adiante a palestra.
- E a guerra doutor, cada vez mais braba, não?
Ximeno Lustosa depôs a xícara, tirou os óculos, limpou as lentes no guardanapo e disse, com voz dogmática:
- A guerra é uma barbárie.
E continuou a mastigar o seu pão-cabrito, com ar de quem havia resolvido o magno problema, dizendo sobre ele a palavra definitiva.” (pág.207)

“- Nunca nos livramos por completo das cinzas do borralho – prosseguiu o escritor. – É por essa razão que não podemos gozar a festa de maneira completa. Pensamos nas pobres criaturas que ficaram na cozinha, ou que estão olhando o baile do lado de fora. E temos pena. Pena e medo... não sei. Talvez remorso.
Rita arregalou os olhos:
- Remorso de quê? Dançar não é nenhum crime.
- Quando não se dança pisando nos outros – disse Nora.
- Temos ainda a história dos sapatinhos que Cinderela deixou na escada – continuou Tônio. – E as pobres criaturas que torturam os próprios pés, que são capazes até de cortá-los a faca, para que eles consigam entrar nos sapatos encantados. Todos querem ser a ‘eleita’ do príncipe.” (pág. 222)

“O liberalismo redundou no capitalismo e foi o capitalismo que deu origem ao socialismo. Levar o socialismo a sério é o mesmo... o mesmo que, por exemplo, adorar a sulfanilamida como uma divindade só porque ela pode combater uma infecção.” (Fala de Marcelo, pág. 292)

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda... e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou... Por acaso você sabe?” (pág. 299)


“Tônio viu uma expressão dolorosa no rosto do filho. Adivinhou-lhe os pensamentos e os sentimentos. Na alma de Gil havia um menino morto. De resto todos traziam um morto na memória. Cada ser humano tinha a sua princesa morta. Tônio descobria uma acentuada tendência necrófila na maioria das pessoas. Apegadas a coisas e seres defuntos. Em vez de imaginar que os seus mortos continuavam a viver em alguma parte do universo, como um espírito, uma idéia, uma árvore, uma flor, um fruto, um talo de relva ou uma pedra, ficavam-se a idolatrar e arrastar ao longo de toda a vida um cadáver, um corpo em processo de dissolução, um esqueleto, uma imagem macabra”. (pág. 385)

“Quantos milhares de homens tinham lutado, sofrido e morrido para manter as fronteiras da pátria? Que soma de sacrifício, de fé, esperança e coragem havia sido necessária para que o Brasil continuasse como território e como nação?
Sim, ele não devia esquecer os homens que tinham construído cidades e desbravado sertões, repelido o invasor e criado ou consolidado uma tradição.
A essas reflexões o espírito de Tônio se enchia de quadros e cenas, vultos e clamores. Ele via o primeiro trigal e a primeira charqueada. Pensava na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados, nas mulheres de olhos tristes a esperar os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo. Imagina os invernos de minuano, as madrugadas de geada, as soalheiras do verão e glória das primaveras. As lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas, nos sovacões da  terra, nos aldeamentos dos índios e nas missões. As povoações novas que surgiam e as antigas que cresciam, transformando-se em cidade. Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convidavam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude monotonia da rotina campeira – parar rodeio, laçar, domar, carnear, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar, colher. Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pragas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, os horizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão, o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tristes e pacientes, esperando, vendo o tempo passar com o vento, e o vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distâncias.
Havia ainda mulheres de luto pelos homens mortos na última guerra quando chegaram os primeiros colonos da Alemanha e mais tarde da Itália. De novo processaram-se misturas. Vieram novas revoluções. Cresceram as cidades e os cemitérios. Os primeiros trilhos da estrada de ferro foram deitados no solo do Rio Grande. Ergueram-se os primeiros postes telegráficos. E o vento eterno levou para as nuvens a fumaça das locomotivas.
Os olhos do escritor tornaram a pousar na platéia. Para quantas daquelas criaturas a sinfonia possuía um sentido, dizia alguma coisa? Ele via ali no teatro muitos netos, bisnetos e trinetos dos colonos alemães e italianos. Eram industriais, negociantes, médicos, advogados, engenheiros, jornalistas. O sangue alemão e italiano cruzara-se com o da gente da terra. O resultado fora aquela diversidade de tipos, nomes e feições.
A guerra – refletiu Tônio – como os cataclismas pré-históricos que revolveram a crosta terrestre, misturando as camadas geológicas, para maior confusão dos arqueólogos, tinha agora de tal modo sacudido o mundo, que ali no São Pedro se viam refugiados poloneses, judeus, alemães, checoslovacos e austríacos ombro a ombro com descendentes de heróis e caudilhos, bugres e contrabandistas, tropeiros, peões e estância e soldados. E toda aquela gente escutava a mensagem que um homem feio e atribulado escrevera numa terra distante, havia quase cento e cinqüenta anos.
E desse estofo – concluía Tônio – era feito o Brasil. Ele acreditava no futuro de sua terra e de sua gente. Estava serenamente certo de que algo de belo e grandioso se encontrava ainda pela frente...
A orquestra nesses instante rompeu num compasso marcial. (402/403)

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