sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O resto é silêncio - Érico Veríssimo, 1943

Já faz algum tempo que li esse livro, mas lembro como fiquei encantada com ele. Não é uma das obras mais conhecidas do Veríssimo, mas sem dúvida ganha lugar entre as melhores. O eixo central da história parte de um suposto suicídio de uma moça, que cai de cima de um prédio. Uma das coisas mais legais de ler Veríssimo, nesse caso principalmente, é que o espaço onde acontece a história é a cidade de Porto Alegre, nas redondezas da Praça da Alfândega. O prédio em questão é o Edifício Imperial, onde foi o antigo Cinema Imperial. Lembro-me que à época da leitura, eu passava lá em frente e ficava olhando pro alto do prédio, realizando a história. Também sempre fico olhando pra praça e imaginando que ela foi um importante espaço de reflexão do autor, me sinto comovida com isso. Mas enfim, a história é multidimensional, na medida em que parte de um fato específico e vai mostrando vários núcleos de personagens e como cada um teve contato com o acontecido e a impressão que tiveram. E, claro, a história é cercada de um realismo singelo e tocante, com passagens imensamente filosóficas, daquela filosofia verdadeira, de todo dia, e não daquela plástica, teórica e puramente ideológica.
Segue fichamento:



-“Olha o mundo com uma curiosidade temperada de indolência e com uma malícia misturada de ternura. É tolerante e tem horror à violência. Nutre um respeito sagrado  pela liberdade de pensamento e expressão do próximo. Prefere a contemplação à ação e quase  sempre está ausente do lugar em que seu corpo se encontra. Vê e interpreta a vida mais como poeta que como profeta. Ama a limpidez e a simplicidade de expressão. Não gosta de palavras grandes e dos gestos dramáticos. Exteriormente parece um homem frio, reservado e calculista; por dentro... um sentimental e um romântico que tem pudor tanto da lágrima como da risada aberta. Como romancista, preocupa-se principalmente com seres e problemas humanos. É muito ignorante e não me parece forte em matéria de idéias gerais. Acho-o, no entanto, dotado duma intuição quase milagrosa e duma imaginação colorida. Diante do problema da morte, sua atitude é de perplexidade. Reconhece o mistério, sim, mas concorda em que não nos é lícito quebrar o Grande Silêncio para dizer uma puerilidade.” (pág. 61)

“Tônio agora olhava o crepúsculo. O horizonte passava do ouro novo para o ouro velho que pouco a pouco ia tomando tonalidades de cobre.” (pág. 59)

“No momento em que o drama da guerra deixa pequenos e apagados todos os dramas da literatura, que interesse poderá oferecer a história dum homem ou grupo de homens? Será lícito repisar os velhos e melancólicos problemas da vida quotidiana? Por outro lado, era o seu próprio espírito que produzia o contraveneno: Acima dos ditadores, de toda violência, de todas as guerras, existe algo de mais forte, algo de eterno: É a vontade que o povo tem de sobreviver, de acreditar, de renovar-se. Há ainda o drama essencial do homem, que pertence a todas as épocas, que mora na alma de cada criatura, que está presente em cada simples minuto da vida. Acontece ainda – refletia Tônio – que nossas almas têm estranhas veredas. Podemos ouvir ou ler, chocados em maior ou menos grau, a notícia dum massacre de crianças, e esquecer o fato no instante seguinte, continuando a viver como se nada tivesse acontecido. No entanto, se na rua um amigo estimado nos nega o cumprimento, voltamos para casa abalados e passamos uma noite insone a nos revolver na cama e a pensar no ‘fato’, com uma impressão de catástrofe.” (pág. 55)

“Arte pelo amor da vida. Pinta-se, compõe-se música, escreve-se romance ou poesia, faz-se escultura, enfim, praticam-se todas as formas de arte, parece-me, num desejo de imitar a vida, corrigi-la, compreendê-la, ampliá-la ou fruí-la da maneira mais sensualmente larga. E não devemos esquecer que nisso, como em tudo mais, há sempre a presença do mistério.” (pág. 62)
-“Penso que as criaturas humanas querem antes de mais nada durar e ser felizes, principalmente durar. Para a maioria não se trata apenas de durar aqui na terra, mas de continuar na ‘outra vida’, passar do plano do tempo para o da eternidade. Creio que a função principal do romancista é contar a história do homem na sua luta em prol da sobrevivência e da felicidade...” (pág. 63)
-“Se um escritor tem uma história para narrar – disse – não vejo razão para que não a conte em termos claros, a fim de que o maior número possível de pessoas a leia e compreenda. Não participo desse desejo orgulhoso e aristocrático de hermetismo... Acho desonesto o truque de turvar as águas para dar a impressão de profundidade. Não, Nora, a vida já é suficientemente complexa... a gente não deve inventar complicações artísticas.” (pág. 71)

“Aqueles efebos pareciam os ‘donos da música’. Sentavam-se quase sempre no chão, as pernas dobradas à maneira oriental, as mãos enlaçando os joelhos. Gostavam de Debussy, de Ravel e tinham delíquios quando falavam em Serge Lifar ou em Nijinsky. Aquelas reuniões eram uma feira de vaidades, de sensibilidades assanhadas. Notava-se naquela gente um desejo de parecer boêmia e original, de fugir a tudo quanto fosse burguês. Havia também as modas. A época de Bach, por exemplo. De repente como que descobriam o homem e cada qual tentava classificá-lo, explicá-lo. Cantarolavam trechos de tocatas, fugas e prelúdios. Alguém ia para o piano. Havia orgias de Bach. Depois Bach passava a ser um velho maníaco, um matemático frio e  lá surgia uma onda de Prokofief. Como podiam aquelas criaturas ser tão artificiais? Contemplando-as, em cada gesto, em cada testa, em cada olhar, Marina via escrita em berrantes maiúsculas a palavra EU. Por todos os lados – EU. Vaidades superexitadas, desejos de fama, malícia e maldade ali se misturavam desconcertantemente com ingenuidades inacreditáveis. Teriam esses ‘artistas’ vergonha de serem humanos? Seria que durante as vinte e quatro horas de cada dia nunca tiravam as máscaras, não faziam gestos humildes, não diziam ou pensavam coisas simples, quotidianas? Marina sabia que sim. No fundo não passavam de pobres diabos que andavam atrás do dinheiros para o fim do mês e dum alimento para as suas vaidades.” (pág. 112/113)

“Quisera ter fé religiosa ou acreditar firmemente em alguma doutrina política... Mas tinha uma incapacidade absoluta para se enquadrar em partidos ou seitas. Reconhecia, com certa má vontade, que era indispensável uma fé firme para realizar grandes coisas. Se ele tivesse essa fé num deus ou numa idéia, haveria de orientar seus livros no sentido dessa fé política ou religiosa, não porque achasse que a arte deve ter uma coloração sectária, mas porque reconhecia estar o mundo vivendo um momento excepcional em que a ninguém é lícito ficar indiferente. O mundo estava doente. Era necessário curá-lo para que depois as criaturas humanas pudessem entregar-se à bela e simples tarefa de viver, de prosseguir na sua busca de beleza e de bondade. Mas... e se não houvesse cura possível? Se o homem, por uma lei inelutável, tivesse de ser sempre o lobo do homem?” (pág.169)

“D. Herta parecia resolvida a levar adiante a palestra.
- E a guerra doutor, cada vez mais braba, não?
Ximeno Lustosa depôs a xícara, tirou os óculos, limpou as lentes no guardanapo e disse, com voz dogmática:
- A guerra é uma barbárie.
E continuou a mastigar o seu pão-cabrito, com ar de quem havia resolvido o magno problema, dizendo sobre ele a palavra definitiva.” (pág.207)

“- Nunca nos livramos por completo das cinzas do borralho – prosseguiu o escritor. – É por essa razão que não podemos gozar a festa de maneira completa. Pensamos nas pobres criaturas que ficaram na cozinha, ou que estão olhando o baile do lado de fora. E temos pena. Pena e medo... não sei. Talvez remorso.
Rita arregalou os olhos:
- Remorso de quê? Dançar não é nenhum crime.
- Quando não se dança pisando nos outros – disse Nora.
- Temos ainda a história dos sapatinhos que Cinderela deixou na escada – continuou Tônio. – E as pobres criaturas que torturam os próprios pés, que são capazes até de cortá-los a faca, para que eles consigam entrar nos sapatos encantados. Todos querem ser a ‘eleita’ do príncipe.” (pág. 222)

“O liberalismo redundou no capitalismo e foi o capitalismo que deu origem ao socialismo. Levar o socialismo a sério é o mesmo... o mesmo que, por exemplo, adorar a sulfanilamida como uma divindade só porque ela pode combater uma infecção.” (Fala de Marcelo, pág. 292)

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda... e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou... Por acaso você sabe?” (pág. 299)


“Tônio viu uma expressão dolorosa no rosto do filho. Adivinhou-lhe os pensamentos e os sentimentos. Na alma de Gil havia um menino morto. De resto todos traziam um morto na memória. Cada ser humano tinha a sua princesa morta. Tônio descobria uma acentuada tendência necrófila na maioria das pessoas. Apegadas a coisas e seres defuntos. Em vez de imaginar que os seus mortos continuavam a viver em alguma parte do universo, como um espírito, uma idéia, uma árvore, uma flor, um fruto, um talo de relva ou uma pedra, ficavam-se a idolatrar e arrastar ao longo de toda a vida um cadáver, um corpo em processo de dissolução, um esqueleto, uma imagem macabra”. (pág. 385)

“Quantos milhares de homens tinham lutado, sofrido e morrido para manter as fronteiras da pátria? Que soma de sacrifício, de fé, esperança e coragem havia sido necessária para que o Brasil continuasse como território e como nação?
Sim, ele não devia esquecer os homens que tinham construído cidades e desbravado sertões, repelido o invasor e criado ou consolidado uma tradição.
A essas reflexões o espírito de Tônio se enchia de quadros e cenas, vultos e clamores. Ele via o primeiro trigal e a primeira charqueada. Pensava na solidão das fazendas e ranchos perdidos nos escampados, nas mulheres de olhos tristes a esperar os maridos que tinham ido para a guerra ou para a áspera faina do campo. Imagina os invernos de minuano, as madrugadas de geada, as soalheiras do verão e glória das primaveras. As lendas que iam surgindo nos matos, nas canhadas, nos sovacões da  terra, nos aldeamentos dos índios e nas missões. As povoações novas que surgiam e as antigas que cresciam, transformando-se em cidade. Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convidavam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude monotonia da rotina campeira – parar rodeio, laçar, domar, carnear, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar, colher. Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pragas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, os horizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão, o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tristes e pacientes, esperando, vendo o tempo passar com o vento, e o vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distâncias.
Havia ainda mulheres de luto pelos homens mortos na última guerra quando chegaram os primeiros colonos da Alemanha e mais tarde da Itália. De novo processaram-se misturas. Vieram novas revoluções. Cresceram as cidades e os cemitérios. Os primeiros trilhos da estrada de ferro foram deitados no solo do Rio Grande. Ergueram-se os primeiros postes telegráficos. E o vento eterno levou para as nuvens a fumaça das locomotivas.
Os olhos do escritor tornaram a pousar na platéia. Para quantas daquelas criaturas a sinfonia possuía um sentido, dizia alguma coisa? Ele via ali no teatro muitos netos, bisnetos e trinetos dos colonos alemães e italianos. Eram industriais, negociantes, médicos, advogados, engenheiros, jornalistas. O sangue alemão e italiano cruzara-se com o da gente da terra. O resultado fora aquela diversidade de tipos, nomes e feições.
A guerra – refletiu Tônio – como os cataclismas pré-históricos que revolveram a crosta terrestre, misturando as camadas geológicas, para maior confusão dos arqueólogos, tinha agora de tal modo sacudido o mundo, que ali no São Pedro se viam refugiados poloneses, judeus, alemães, checoslovacos e austríacos ombro a ombro com descendentes de heróis e caudilhos, bugres e contrabandistas, tropeiros, peões e estância e soldados. E toda aquela gente escutava a mensagem que um homem feio e atribulado escrevera numa terra distante, havia quase cento e cinqüenta anos.
E desse estofo – concluía Tônio – era feito o Brasil. Ele acreditava no futuro de sua terra e de sua gente. Estava serenamente certo de que algo de belo e grandioso se encontrava ainda pela frente...
A orquestra nesses instante rompeu num compasso marcial. (402/403)

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