quinta-feira, 10 de março de 2011

As portas da percepção / Céu e Inferno - Aldous Huxley, 1954 - 1956


Esse livro, à grosso modo, trata da experiência no uso da mescalina, substância alucinógena extraída de um cacto. O autor, Huxley, fez uso dessa substância a fim de estudar o estado mental ao qual somos levados sob efeito da mescalina. Mas o livro traz uma proposta que vai além de um simples relatório de resultados e análises.  A obra tematiza o papel de todos os modificadores de consciência - sejam eles naturais ou químicos - na vida do homem, ao longo da história. Faz conexões com as religiões, e com os variados aspectos da vida em sociedade. Coloca questões interessantíssimas, sobre o que ele chama de céu e inferno, ou seja, um estado de transcendência mental e espiritual ao qual o usurário é levado por via do uso de alteradores / ampliadores dos sentidos. Huxley faz uma ligação entre o estado alterado de consciência e uma espécie de onisciência universal, um contato com a verdade absoluta do universo. Do mesmo modo, problematiza o conflito que tal estado encerra em si, na medida em que impõe ao homem um estado permanente de contemplação, o que impossibilitaria as ações fundamentais demandadas pela vida em sociedade. É curtinho, vale a leitura.



HUXLEY, Aldous. As portas da percepção; Céu e Inferno. Trad. Osvaldo de Araújo Souza. São Paulo: Globo, 2002. 169 p.

Quando cheguei à maturidade intelectual e comecei a perguntar-me se era ateu, teísta ou panteísta, materialista ou idealista, cristão ou livre0pensador, percebi que quanto mais aprendia e refletia menos fácil era a resposta, até que por fim cheguei à conclusão de que nada tinha a ver com nenhuma dessas definições, com exceção da última. A única coisa em que todas essas excelentes pessoas estavam de acordo era a única coisa em que eu discordava delas. Estavam bastante seguras de que tinham atingido uma certa ‘gnose’ – haviam, com maior ou menor sucesso, resolvido o problema da existência, enquanto eu estava bastante seguro do contrário e possuía uma convicção razoavelmente forte de que o problema era insolúvel. [...] Portanto, meditei e inventei o que me parece ser um rótulo adequado: ‘agnóstico’. Pensei nele como uma antítese sugestiva dos gnósticos da história da Igreja, que professavam conhecer coisas em que eu era ignorante.
[Henry Huxley – biólogo; inventor do termo agnóstico em meados do século XIX; avô de Aldous Huxley – Citado por Manuel da Costa Pinto no prefácio, p. 13]

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares. p. 24


Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, Dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu – beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está ao nosso alcance; e isso subverte nosso senso de realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contado não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. p. 32-33

[...] importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. p. 41

E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? p. 47

[Em relação ao estado contemplativo que a mescalina proporcionar em contraposição ao estado ativo, da sobriedade]

Era, na verdade, estranho sentir que eu não era a mesma coisa que esses braços e pernas lá de fora; que esse tronco, esse pescoço, essa cabeça mesma. [...] seja como for, o corpo parecia perfeitamente apto a tomar conta de si próprio. Na verdade, é ele quem sempre toma conta de si. Tudo que o ego consciente pode fazer é formular desejos, que são então transmitidos ao corpo por forças que ele controla muito pouco e absolutamente não compreende. Quando faz algo mais – por exemplo, quando se esforça em demais, quando se aborrece ou se torna apreensivo sobre o futuro -, reduz a eficiência dessas forças e pode mesmo fazer com que o debilitado corpo adoeça. p. 57

Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, algum dia seja capaz de passar sem paraísos artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma. A arte e a religião, os carnavais e as saturnais, a dança e a apreciação da oratória, tudo isso tem servido, na frase de H. G. Wells, de Portas na muralha. E na vida individual, para uso cotidiano, sempre houve drogas inebriantes. Todos os sedativos e narcóticos vegetais, todos os eufóricos derivados de plantas, todos os entorpecentes que se extraem de frutos ou raízes, todos, sem exceção, são conhecidos e vêm sendo sistematicamente empregados pelos serem humanos, desde épocas imemoriais. E a esses modificadores naturais de percepção, a ciência moderna adicionou sua cota de produtos sintéticos – o cloral, a benzedrina, os brometos e os barbituratos. 
A maior parte dessas substâncias não pode ser atualmente adquirida, a não ser mediante prescrição médica ou então ilegalmente e com graves riscos. O Ocidente só permite o uso irrestrito do fumo e do álcool. Todas as outras Portas químicas na muralha são rotuladas como estupefacientes e seus consumidores ilegais são viciados. 
Gastamos, hoje em dia, muito mais em cigarros e bebidas que em educação. E nada há de surpreendente nesse fato. O impulso para fugir a nós mesmos e ao que nos rodeia está presente em cada um de nós, quase todo o tempo. O estímulo para fazer algo pelas crianças só é forte nos pais, e, mesmo neles, tão-somente durante os poucos anos de vida escolar de seus filhos. Do mesmo modo, não nos surpreende a atitude geral com relação ao fumo e à bebida. A despeito das legiões sempre crescentes de alcoólatras inveterados, das centenas de milhares de pessoas que são anualmente mutiladas ou mortas por motoristas embriagados, os humoristas populares ainda armam situações jocosas girando em torno do álcool e dos que a ele se entregam. E, a despeito das provas ligando os cigarros ao câncer do pulmão, praticamente todo o mundo encara o hábito de fumar como algo quase tão normal e natural quanto comer. Do ponto de vista do racionalismo utilitário, isto pode parecer estranho, mas, para o versado em história, não seria de esperar outra coisa. Jamais a inabalável convicção na existência do Inferno conseguiu evitar que os cristãos fizessem aquilo que lhes sugeria a ambição, a luxúria ou a cobiça. O câncer pulmonar, os acidentes de tráfego e os milhões de criaturas miseráveis e criadoras de miséria em razão do alcoolismo são realidades ainda mais positivas que o Inferno no tempo de Dante. Mas tudo isso é remoto e secundário, se comparado com a realidade vívida e presente de uma ânsia por serenidade ou liberdade, por um cigarro ou uma taça. p. 66-67

O impulso para superar a personalidade autoconsciente é, como já o disse, um anseio capital da alma. Quando, seja por que razão, os seres humanos vêem baldados os seus esforços para superarem a si mesmos pelo culto, pelas boas ações e pela atitude intelectual, tornam-se propensos a recorrer às drogas substitutas da religião – o álcool e as “pílulas inocentes” no moderno Ocidente, o álcool e o ópio no Oriente, o haxixe no mundo maometano, o álcool e a maconha na América Central, o álcool e a coca nos Andes, o álcool e os barbituratos nas regiões mais adiantadas da América do Sul. Em Poisons sacrés, ivresses divines [Venenos sagrados, êxtases divinos], Philippe de Félice escreveu exaustivamente, e com riqueza de documentação, sobre os laços imemoriais que ligam a religião à ingestão de drogas. A seguir, ora resumindo, ora transcrevendo, apresento suas conclusões:
O emprego, para fins religiosos, de substâncias tóxicas, é “extraordinariamente difundido [...] As práticas estudadas neste volume podem ser observadas em qualquer região da Terra, tanto entre os povos primitivos como no seio daqueles que já atingiram um elevado índice de civilização. Não estamos, pois, lidando com fatos excepcionais que poderiam ser, com razão, postos à margem; mas com um fenômeno geral e, dentro da mais ampla acepção da palavra, humano; com um tipo de fenômeno que não pode ser desprezado por quem quer que busque descobrir que é a religião e quais as necessidades profundas a que ela tem de satisfazer”. 
As igrejas modernas, excluídas umas poucas seitas protestantes, toleram o álcool; no entanto mesmo as mais tolerantes jamais procuram converter a bebida ao cristianismo – isto é, sacramentar seu uso. O pio alcoólatra vê-se forçado a manter, em compartimentos estanques, sua religião e seu substituto para ela. A bebida não pode ser incluída na liturgia, a não ser nas religiões que não dêem valor ao decoro. O culto de Baco ou da divindade celta da cerveja eram festins ruidosos e dissolutos. Os ritos cristãos são incompatíveis com a embriaguez, ainda que de cunho religioso. Isso não prejudica os fabricantes de cerveja, mas é muito mau para o cristianismo. Um sem-número de pessoas deseja experimentar a autotranscendência, e gostaria de encontrá-la no tempo. Mas “as ovelhas famintas voltam-se para o céu e não são atendidas”. Tomam parte nos ritos, escutam os sermões, repetem as orações; mas sua sede não se aplaca. Desapontadas, voltam-se para a garrafa. Ao menos por certo tempo, e de certa forma, encontram o que querem. A igreja pode continuar a ser freqüentada; mas já não será mais do que o Banco Musical do Erewhon de Butler. Deus pode continuar a ser reconhecido como tal, mas a Ele só será concedida divindade no campo verbalístico, apenas em sentido estritamente figurado. O verdadeiro objeto de culto é a garrafa, e a única experiência religiosa é aquele estado de desregramento e belicosa euforia que se segue à ingestão do terceiro aperitivo. p. 72

Mas o homem que vem de cruzar de novo a Porta da Muralha jamais será igual ao que partira para essa viagem. Será, daí por diante, mais sábio, embora menos arraigado em suas convicções, mais feliz, ainda que menos satisfeito consigo mesmo, mais humilde em concordar com a própria ignorância, embora esteja em melhores condições para compreender a afinidade entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o insondável mistério que ele procura, sempre em vão, compreender. p. 80



Céu e Inferno

A natureza primitiva guarda uma estranha similitude com esse mundo interior onde nossos desejos pessoais não são levados em conta nem são consideradas as preocupações constantes do homem em geral. p. 120

[...] Algo de natureza semelhante pode suceder após a morte. Depois de ter sido contemplado, de relance, o ofuscante esplendor da Realidade derradeira, e após ter vagado, de uma para outro lado, entre o céu e o inferno, a maioria das almas acabará por conseguir recolher-se àquela região mais tranqüila da mente onde lhe seja possível fazer uso dos seus e dos alheios desejos, recordações e predileções para construir um mundo bem semelhante ao que teve na Terra. p. 128

A pompa é uma arte visionária que tem sido usada, desde tempos imemoriais, como instrumento político. As suntuosas roupagens usadas por reis, papas e seus respectivos séquitos, militares e eclesiásticos, tinham uma finalidade bastante objetiva – impressionar as classes inferiores com um sentimento vívido da grandeza sobre-humana de seus senhores. Com o auxílio de belas roupas e de cerimônias solenes, a dominação de facto era transformada em reinado, não só de jure, mas até mesmo de jure divino. As coroas e tiaras; as variegadas jóias, cetins, sedas e veludos; os faustosos uniformes e vestimentas; as cruzes e medalhas; os punhos das espadas e os báculos; as plumas nos amplos chapéus e seus equivalentes clericais; aqueles enormes leques de penas que fazem com que qualquer audiência papal se pareça com um quadro da Aída – tudo isso são artifícios propiciadores de êxtase, destinados a transformar humaníssimos cavalheiros e damas em heróis, semideuses e serafins, proporcionando dessa forma uma boa dose de prazer inocente a todos, sem distinção: atores e espectadores. p. 148

O passado não é coisa fixa e inalterável. Suas realidades vão sendo redescobertas a cada geração, seus valores sofrem reavaliações, seus significados recebem novas definições, de acordo com as tendências e preocupações da época. Baseando-se nos mesmos documentos – bibliográficos, arquitetônicos e artísticos -, cada época concebe sua própria Idade Média, uma China a seu sabor, uma Hélade patenteada e com direitos de reprodução reservados. p. 155





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