quinta-feira, 24 de março de 2011

Música ao longe - Érico Veríssimo, 1933



Neste livro o autor segue narrando a vida da personagem Clarissa, também protagonista do livro anterior que traz seu nome como título. Essa história continua no livro Um lugar ao Sol, de 1936, que também é explêndido, mas não é o tema aqui. Essa narrativa é singela, realista, romântica. Vasco, primo de Clarissa, é um dos personagens mais cativantes que eu já li. Arisco, o Gato do Mato, como é chamado, tem um posição radical mediante os melindres dos tradicionalismos aristocráticos. Mais uma vez com a vantagem de referência gaúcha, a obra mostra um cenário interiorano decadente, onde os grandes latifundiários vão ficando à míngua na medida em que os valores sociais vão sendo invertidos com a introdução das novas relações econômicas impostas pelo capitalismo ainda incipiente. Em 1934, Música ao longe foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis, sendo considerado um dos primeiros romances regionalistas gaúcho. Boa leitura!


VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. 38ª edição. São Paulo: Globo, 1995. 240 p.

                Clarissa caminha à cadência dos pensamentos... O engraçado é que a gente fica moça, compreende melhor as coisas, estuda nos livros mas continua sentindo mais ou menos o que sentia quando criança. Certas impressões custam a se apagar. p. 6

                Quero escrever neste diário tudo o que penso, tudo o que sinto. Mas a gente nunca escreve tudo o que pensa, tudo o que sente. Por que será que só somos sinceros pensando? p. 10

Se o teto alto de estuque devolvesse as vozes que subiram para ele no passado... Se o espelho tornasse a refletir as imagens perdidas... p. 17

De que vale este vestido branco de organdi? De que vale este quadro laqueado de verde-claro? De que vale esse espelho? E aquelas flores? E aqueles quadrinhos nas paredes? De que serve esta vontade que a gente tem de ver e de fazer coisas bonitas? De que vale este desejo de ter bons amigos, de viver no meio de gente alegre? De que vale tudo isso, se os “outros” não compreendem? Se os outros não correspondem, meu Deus! p. 42

Eu pensava: o mundo está errado. Todos deviam ter dinheiro. Não devia existir gente rica e gente pobre. Mas a verdade é que existia mesmo. E se os ricos distribuíssem o dinheiro com os pobres? Por exemplo, os vizinhos ricos podiam vender o automóvel e dar dinheiro para a vizinha pobre. O automóvel não fazia falta... Eu disse isso ao tio Couto, ele franziu a testa e perguntou se eu estava ficando comunista. Não entendi a pergunta. Hoje entendo. Sei mais ou menos o que é comunismo. O vigário aqui de Jacarecanga fez hoje um sermão contra os comunistas. O que não compreendo é como depois ele disse que todos eram filhos de Deus e todos mereciam igual dose de felicidade. Não compreendo. p. 44

Mas a culpa é minha. Eu não devia observar tanto, pensar tanto. Se vivesse mais no ar era mais feliz. Quando a gente quer olhar tudo, acaba descobrindo o que há de feio no mundo. p. 50-51

E vêm outras histórias. Revoluções, combates nas coxilhas abertas, no inverno, o minuano cortando como navalha, e gemendo como um ferido abandonado no campo. Entreveros, correrias, cabeças esfaceladas, cavalos com a boca espumando. Cargas de Cavalaria, o barulho das patas, os urros dos guerreiros. As lagoas que se tingem de sangue. Lenços vermelhos e verdes. Lanças enristadas, palas voando. E combates e mais combates. E nomes, coronéis, generais, soldados... E outros degolamentos. E frases de entusiasmo: “Aquilo é que era homem, seu!” “Macho legítimo!” “Indio taura!”.
[...] Clarissa pensa... Ah! Como tudo aquilo é horrível, feio, sujo, assustador. Que quadro brutal: um cavalo correndo e espumando, levando no lombo um homem de cara de demônio, com lança estendida, estendida para destripar o inimigo... Por que os homens por todos os lados só falam em valentia e brigas, nos antepassados que mataram e nos descendentes que ainda hão de matar? Está gente não saberá fazer mais nada senão matar? Onde fica o amor? Onde a delicadeza? p. 55-56

- Sabem mesmo que o mundo não existe? Tirem os olhos ao homem: ele não vê mais o mundo. Tirem-lhe o olfato: ele não sentirá mais os cheiros do mundo. Vão lhe tirando todos os sentidos: o tato, o gosto... Que fica no fim? Nada. O homem não vê, não ouve, não sente cheiros, nem contatos, nem nada. Logo, o mundo não existe: é uma ilusão dos sentidos. p. 72

A Terra é um enorme bicho. Vejam os vulcões. São tumores por onde jorra o pus das lavas. E esse passeio maravilhoso que o bicho faz através do infinito? Formidável! Os demais planetas e sóis são outros bichos. Se um dia eles inventarem de guerrear estamos bem aviados. Vai ser um cataclismo nunca visto. O mundo é um bicho. Agora descubro uma definição melhor para o homem. O homem é um bicho, um parasita do grande bicho. Alimenta-se dele como o carrapato se alimenta do gado. Mas um belo dia o bicho come o parasita. É quando o homem morre e vai para debaixo da terra. p. 105

Mas será que a gente não pode fazer mais do que ter pena? Não haverá um remédio para a pobreza? Se todos tivessem, boa vontade, acho que o mundo melhorava sem comunismo nem essas outras histórias que os jornais falam todos os dias. Mas infelizmente por toda parte eu só encontro gente com disposição de brigar e prejudicar o próximo. p. 121

Mas o meu quarto é o lugar melhor do mundo. Aqui tudo é meu, aqui ninguém se mete, aqui não há caras tristes. [...] Não preciso de ninguém. Se todos me abandonam, tenho o meu quarto, os meus livros e o meu outro “eu” que conversa comigo. p. 156

Vasco então disse que achava essas histórias de farroupilhismos e bravatas e gauchismos muito engraçadas e ridículas. Respondi que não havia nada de engraçado nem ridículo e que os meninos precisavam conhecer a História da sua terra. Eu devia ter ficado calada, porque Vasco se pôs sério de repente e começou a falar, a falar, a falar, despejando um verdadeiro discurso em cima de mim. Demos mais de dez voltas ao redor da praça e o Gato do Mato, sempre falando. Disse que era muito malfeito ensinar às crianças que guerras e revoluções são coisas bonitas, que os heróis são só os generais e os soldados que matam. Disse que enquanto nós professoras ensinarmos na escola que foram os brasileiros que ganharam a batalha do Passo do Rosário, que o Brasil é mais corajoso, mais belo e mais adiantado que a Argentina ou do que o Chile – não poderá haver paz. Disse mais que as crianças vão se criando acostumadas a ouvir elogios à guerra e aos guerreiros e acabam achando que matar é a coisa mais natural e necessária deste mundo.
Quando ele parou um instante para tomar fôlego, eu aproveitei a pausa e disse que os meninos deviam aprender a amar a Pátria. Quando falei em Pátria, Vasco ficou aceso de novo e disse que essa idéia de pátria que nós temos é uma bobagem, que todos os homens são irmãos, são iguais e que por falarem línguas diferentes, terem olhos e cabelos de cor diversa não quer dizer que devam andar se estripando em guerras. [...] Disse que as guerras que nós pensamos que rebentam por causa do famoso patriotismo, são geralmente provocadas pelos vendedores de armamentos e por outros grandes negociantes que podem irar partido das bagunças internacionais. p. 202

- A vida é essa, - diz Vasco. – Uns têm automóveis e outros não têm. Os que têm jogam poeira nos que não têm. E assim o mundo marcha. p. 210

- Tu és comunista?
- Sou um ser humano. – Pausa. – Acho que a vida está torta e sofro porque não posso endireitar ela. Por isso é que quero fugir. p. 210

- Não adianta falar... – diz Vasco. – O mundo é assim. Nós fomos feitos deste jeito... A gente só se impressiona e sofre com o que sente de verdade. Quando a ferida é nos outros não dói em nós. A vida é assim. O melhor é fugir. p. 214

Olha para os alunos. Hoje eles são meninos. Amanhã serão homens e mulheres adultos, esquecidos de que estiveram juntos sob o mesmo teto, no colégio, alguns sentados no mesmo banco. Serão namorados e namoradas, maridos e mulheres, amigos ou inimigos. Uns irão embora para terras distantes e nunca mais voltarão. E já não terão estas caras contentes e lisas. Haverá rostos enrugados, bocas retorcidas e palavras feias e amargas saindo delas. Novas revoluções virão. Moisés que hoje dá um pouco de sua merenda a Carlos, na hora do recreio, amanhã estará atracado com ele, aos sopapos, por causa duma promissória, duma palavra, duma mulher ou dum pedaço de pão. Pedro sai da aula abraçado com Heitor. Amanhã cada qual terá o seu partido político, haverá um guerra civil e Pedro e Heitor se encontrarão no campo, e se espicaçarão a lançaços e a tiros, e lutarão com coragem e ferocidade, porque um dia, quando eles eram crianças, uma professora inconsciente lhes ensinou que matar pela sua bandeira é a coisa mais sublime, a suprema glória da vida.
E então ela pensa num mundo de palavras de amor e solidariedade para dizer, em vez da preleção patriótica que preparou em casa com cuidado, exaltando os heróis, frisando bem as datas, falando em patriotismo, coragem, ideal e sacrifício.
Vai falar. Vai despejar uma torrente de amor e ternura. Mas na porta aparece o vulto de D. Ermelinda, fiscalizando.
Com voz apagada Clarissa diz:
- Então, não esqueçam. Vinte de setembro, data duma das maiores revoluções brasileiras: a Revolução dos Farrapos. p. 221

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