segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que o Tio Sam realmente quer - Noam Chomsky, 1999.


Li esse livro como demanda da faculdade, e posso dizer que foi um soco no estômago. É um estudo revelador sobre as ações norte-americanas no período do pós-guerra (2ªGM), sobre as intervenções destes no mundo todo, sobre o apoio clandestino a uma série de ditaduras e conflitos como nos casos da Nicarágua, El Salvador, Panamá, Guatemala, Sudeste Asiático, enfim, pelo mundo todo; intervenções que contaram com verdadeiras atrocidades ao ser humano.

Dentre tantos, deparei-me com o absurdo que sucede. É um trecho do Estudo de Planejamento Político 23 [EPP 23], elaborado em 1948, pelo Departamento de Estado dos EUA, redigido pelo então encarregado George Kennan. Na verdade é absurdo, mas nem tanto. Nem tanto, porque a gente já sabe bem como funcionam as coisas por trás dos panos, e ficar chocado não é exatamente a reação.

Esse documento foi concebido como ultra secreto, mais como um diálogo entre os estrategistas americanos do pós-guerra, que objetivavam claramente a hegemonia e monopólio da economia mundial. Essa história dos EUA dominar o mundo parece meio clichê já, mas é interessante perceber como eles realmente estavam articulados no sentido de elaboração de metas e estratégias de dominação, no sentido de ações concretas, para que a gente saia um pouco daquele plano de idéias vagas de conspiração.


Segue um trecho:

Precisamos parar de falar de vagos e irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor. 

"Seguindo essas mesmas linhas, numa reunião de embaixadores americanos na América Latina, em 1950, Kennan observou que a maior preocupação da política externa norte-americana devia ser 'a proteção das nossas (isto é, da América Latina) matérias-primas. Devemos combater a perigosa heresia que, segundo informava a Inteligência americana, estava se espalhando pela América Latina: “A idéia de que o governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo'. Os estrategistas americanos chamam esta idéia de comunismo. [...] se elas apóiam tal heresia, elas são comunistas."




Ficha de leitura completa:



Os objetivos principais da política externa dos EUA

>> A proteção do nosso território.


A relação entre os EUA e os outros países remonta às origens da história da América, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de águas, comecemos então por aí. Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos rivais industriais, aos EUA ela propiciava enormes benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que triplicou. p. 9

Aqueles que determinam a política norte-americana sabiam muito bem que os EUA sairiam da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que, durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo do pós-guerra. p. 9-10

>> A “Grande Área”


[...] grupos de estudos do Departamento de Estado e do Conselho de Relações Exteriores desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que eles denominaram a “Grande Área” [se possível o mundo inteiro], para que esta fosse subordinada às necessidades da economia norte-americana.  A divisão das funções e setores específicos da nova ordem mundial seria a seguinte:

- Países industrializados: grandes oficinas, trabalhando sob a supervisão norte-americana.

- Terceiro Mundo: fonte de matérias-primas e mercado consumidor para as sociedades industriais capitalistas.

 p. 15-16

A Guerra do Vietnã emergiu da necessidade de garantir esse papel de serviçal. Os vietnamitas nacionalistas não quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaça não era a de que eles iriam conquistar alguém, mas que eles poderiam dar um exemplo perigoso de independência nacional, que inspiraria outros países na região. p. 16

>> A restauração da ordem tradicional


Os estrategistas do mundo pós-guerra logo perceberam que ia ser imprescindível, para o bem das empresas americanas, que as outras sociedades ocidentais se refizessem dos prejuízos da guerra, para que pudessem importar mercadorias manufaturadas dos EUA, e assim fornecerem oportunidades de investimentos. p. 18

A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominação das empresas, com a divisão e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da reconstrução sendo colocado inteiramente nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres. p. 18

[...] isso requeria extrema violência, mas, entre outras, isso era feito por meio de medidas mais suaves, como subverter eleições ou esconder alimentos extremamente necessários. p. 18

Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a “ameaça” na Europa não era a agressão soviética, mas a resistência anti-fascista operária e camponesa com seus ideais democráticos radicais, o poder político e a atração dos partidos comunistas locais. p. 19

Outro aspecto da repressão à resistência anti-fascista foi o recrutamento de criminosos de guerra, como Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na França. Lá, ele recebeu o apelido de “açougueiro de Lyon”. Embora ele tivesse sido responsável por crimes hediondos, o Exército dos EUA encarregou-o da espionagem na França. p. 23

Mais tarde, quando se tornou difícil, ou impossível, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles esconderam-se nos EUA ou na América Latina, muitas vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas. Lá, eles se tornaram conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos EUA, [...] traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores - ensinando a camponeses latino-americanos técnicas de tortura inventadas pela Gestapo. p. 23-24

>> Nosso compromisso com a democracia


[...] a principal ameaça à nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo do Terceiro mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os “regimes nacionalistas” que atendem às “exigências populares de elevação imediata dos baixos padrões de vida das massas” e produção de bens que satisfaçam às suas necessidades básicas. p. 24

As metas: evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um golpe de sorte eles chegassem ao poder, retirá-los e instalar ali governos que favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produção para exportação e o direito de remessa de lucros para fora do país. p. 24-25

Os EUA esperam contar com a força e fazer alianças com os militares, de modo que se pode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do controle. p. 25

Outro problema apontado nesses documentos secretos, é o excessivo liberalismo dos países do Terceiro Mundo [...], onde os governos não estão suficientemente comprometidos com o controle de idéias, restrições de viagens e onde o sistema judicial é tão deficiente que exige prova para acusação de crimes. 25-26

[...] ligeira e superficial encenação de interesse humano em relação aos trabalhadores → efeito psicológico. [...] para manter as massas da América Latina na linha, “há que adulá-las um pouco, para fazê-las pensar que você gosta delas”. p. 26

Somos radicalmente opostos à democracia se seus resultados não podem ser controlados. O problema com as democracias verdadeiras é que elas podem fazer seus governantes caírem na heresia de responderem às necessidades de sua própria população, em vez das dos investidores norte-americanos. p. 26-27

[...] enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro é com a “empresa capitalista privada”. p. 27

>> A ameaça do bom exemplo


Desde a Revolução Bolchevique de 1917, até a queda dos governos comunistas do Leste Europeu, no final da década de 1980, era possível justificar qualquer ataque norte-americano como defesa contra a ameaça soviética. p. 29

Os estrategistas norte-americanos, desde fins dos anos 1940, até os dias de hoje, têm advertido que “uma maçã podre pode estragar todo o lote”. p. 31

[...] o que os EUA querem é “estabilidade”, segurança para “as classes dominantes e liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos democráticos formais, ok. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. p. 32

A menos que você entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro Mundo, a política externa norte-americana parece ser uma série de erros ocasionais, inconsistentes e confusos. Na verdade, nossos líderes têm sido mais que bem-sucedidos, dentro dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a eles atribuídas. p. 36

Devastação no exterior

>> Nossa política de boa vizinhança


Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos inteiramente de lado a preocupação com os “objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização?” p. 37

“a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos latino-americanos que torturam seus cidadãos”. Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio. p. 37

[...] há estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana, ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. p. 37

A Aliança para o Progresso fortificou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, [...] a produção de carne aumentou, enquanto o consumo de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo produz um “milagre econômico” onde o PNB sobe enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular inevitavelmente aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. p. 38

O primeiro passo é o uso da polícia [...]. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército, é tempo de derrubar o governo. p. 39

Os países que tentaram inverter as regras tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos EUA. p. 39

Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. p. 39-40

Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra. p. 40-41

Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos, em geral para a maior parte da população, etc. p. 41

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas. p. 42

>> O bandido de aluguel do mundo


Nós devemos ser “mercenários bem dispostos”, pagos pelos nossos rivais por nossos amplos serviços prestados, usando nosso “monopólio de poder” no “mercado de segurança” para manter “nosso controle sobre o sistema econômico mundial”. Deveríamos administrar um plano de proteção global, vendendo “proteção” para outras potências ricas, que nos pagariam uma “recompensa de guerra”. p. 97

Quando o Estado está comprometido com tais políticas, deve de alguma forma buscar uma maneira de distrair a população, para impedi-la de ver o que está acontecendo ao seu redor. Não há muitas maneiras de fazer isso. As mais comuns são inspirar medo a inimigos terríveis que estão prestes a nos subjugar e reverenciar nossos grandes líderes, que nos salvam a tempo do desastre. p. 98

Essas não são leis da natureza. Os processos e as instituições que as engendram podem ser mudados. Mas isso exigiria profundas mudanças culturais, sociais e institucionais que não aconteceriam a curto prazo, inclusive mudanças nas estruturas democráticas, que vão além da seleção periódica de representantes do mundo empresarial para dirigir os negócios nacionais e internacionais. p. 99

Lavagem cerebral interna

>> Como funcionava a Guerra Fria


Naturalmente, tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de gerenciamento global, chamado Guerra Fria, foi estabelecido. p. 102

No lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções na Europa Oriental (...). No lado americano, as intervenções eram no mundo inteiro, refletindo o status alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da história. p. 103

Cada superpotência controlava seu inimigo principal - sua própria população - aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. p. 103

Numa avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito entre a URSS e os EUA, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência em seu próprio domínio. p. 104

Entretanto, se esta fase singular terminou, os conflitos Norte-Sul continuam. Um dos lados pode ter se retirado do jogo, mas os EUA procedem como antes - na realidade mais livremente - com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. p. 105

>> A guerra contra certas drogas

Um dos substitutos do extinto Império do Mal tem sido a ameaça representada pelos traficantes de drogas da América Latina. p. 106

Assim como a ameaça soviética, tais inimigos fornecem uma boa desculpa para a presença militar americana onde haja atividade rebelde ou outros distúrbios.
Assim, internacionalmente, “a guerra às drogas” fornece um pretexto para intervenções. Internamente tem pouco a ver com as drogas, mas muito a ver com a distração da população, aumentando a repressão nos centros urbanos e apoiando o ataque às liberdades civis. p. 107

A estreita correlação entre o comércio de drogas e o terrorismo internacional não é nenhuma surpresa. As operações clandestinas necessitam de muito dinheiro, que deve ser lavado. E elas (as operações) precisam de criminosos eficientes. E por aí vai. p. 112

>> Socialismo, o falso e o verdadeiro

Pode-se questionar o significado do termo “socialismo”, mas se ele tem algum significado, este é, antes de tudo, o controle de produção pelos próprios trabalhadores, não pelos donos e dirigentes que os comandam e tomam decisões, seja em empresas capitalistas ou em Estados totalitários. p. 118

Em qualquer significado mais profundo do termo socialismo, os bolcheviques apressaram-se, mais uma vez, em destruir os componentes socialistas nele existentes. Desde então, nenhuma divergência socialista foi permitida. p. 118

Os bolcheviques chamaram seu sistema de socialista para explorar o prestígio moral do socialismo.
O Ocidente adotou a mesma prática por uma razão oposta: difamar ideais libertários, associando-os com os calabouços bolcheviques para minar a crença popular de que seria possível o progresso em direção a uma sociedade mais justa (...). p. 120


>> A mídia

Sejam chamadas de “liberais” ou de “conservadoras”, as principais mídias são grandes empresas pertencentes e interligadas a conglomerados maiores ainda. p. 120

(...) “vazamento de informações”, por exemplo, são amiúde maquinações produzidas enganosamente por autoridades, em cooperação com a mídia, que finge nada saber. p. 121

Para servir aos interesses dos poderosos, a mídia deve apresentar um quadro toleravelmente realista do mundo. p. 121-122

A mídia é apenas uma parte de um sistema doutrinário maior: as outras partes são os jornais de opinião, as escolas e as universidades, as pesquisas acadêmicas, e assim por diante. p. 122

Esses setores do sistema doutrinário servem para distrair a grande massa e reforçar os valores sociais básicos: a passividade, a submissão às autoridades, as predominantes virtudes da avareza e da ganância pessoal, a falta de consideração com os outros, o medo de inimigos reais e imaginários. p. 123

O futuro

>> As coisas mudaram

É importante reconhecer o quanto o cenário mudou nestes últimos trinta anos em conseqüência dos movimentos populares, que se organizaram de forma solta e caótica em torno de certas questões como os direitos civis, a paz, o feminismo, o meio ambiente e outros temas de interesse humano. p. 125

Atualmente, a intervenção clássica não é mais considerada uma opção. Os métodos limitam-se ao terror clandestino, mantido oculto da população interna, ou à demolição “rápida e fulminante” de “inimigos muito mais fracos”, após uma enorme campanha de propaganda, expondo-os como monstros de poder indescritível. p. 126

Em outras áreas também há mais abertura e entendimento, mais ceticismo e questionamento da autoridade. Logicamente, as últimas tendências são uma faca de dois gumes. Elas podem levar ao pensamento independente, à organização popular e a pressões mais que necessárias por transformações institucionais. Ou podem fornecer uma base popular de pessoas amedrontadas para novos líderes autoritários. p. 127

>> O que se pode fazer

(...) uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incomoda é não ser passivo e aquiescente. (...) Manifestar-se, escrever cartas e votar podem ser ações bastante significativas, dependendo da situação. Mas o ponto principal é ser persistente e organizado. p. 127-128

Pode-se também fazer sua própria pesquisa. Não confie apenas na história convencional dos livros e textos de ciência política. p. 129



Referência:

CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. 

Contos de Fantasmas - Daniel Defoe, séc. XVIII.


Esse livro é bem pequeno, dá pra ler em um ou dois dias. É composto por contos curtinhos sobre fantasmas e acontecimentos misteriosos e inexplicáveis, que cercam o nosso imaginário desde há tanto tempo e ainda nos dias de hoje. Gosto bastante dessa temática, como os leitores do blog podem perceber, hehe, e é muito interessante vê-la através de um autor do século XVIII, como Defoe.

DEFOE, Daniel. Contos de fantasmas. Trad. Henrique de Araújo Mesquita. Porto Alegre: L&PM, 2001. 136 p.

"E parece-me estranho que tenhamos a tendência a negar a veracidade de fatos porque não podemos resolver coisas de que não possuímos noções certas ou demonstrativas." p. 27 




segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O vampiro Lestat: Anne Rice, 1984

Bem, me demorei em novo post porque realmente minhas últimas leituras não foram dignas de indicação. Não que fossem ruins, mas reservo esse espaço para leituras que tenho certeza que vão fazer a diferença para os bons leitores.
Esse livro é o segundo da série "As crônicas vampirescas" da escritora Anne Rice. Já li alguns dela, meio aleatoriamente, e de uns tempos para cá estou empenhada não apenas em ler todos todos os seus títulos, mas também em tê-los a todos. Como o $ ainda não dá em árvore, e eu ainda não dedico meu dinheiro à compra compulsiva de livros, estou comprando vagarosamente. Já tenho quatro. E também gosto de comprar livros usados, não somente por serem baratos, mas porque é quase um sentimento de adoção que me acomete, rs rs, verdade seja dita. Na compra desse livro dei a sorte grande, consegui a primeira edição em português por uma verdadeira pechincha.
Sinceramente, achei esse livro bem melhor do que o Entrevista com o Vampiro, apesar de evidentemente ser menos famoso. Ele é uma das peças fundamentais para se conseguir compreender as crônicas na sua integridade. O livro não apenas conta detalhadamente a história de Lestat, como também revela em totalidade as histórias dos vampiros Armand, Marius e Gabrielle. Sem mencionar a história dos poderosos progenitores Akasha e Enkil, a história da origem dos vampiros, da perspectiva da própria Akasha. 
A escritora faz uma viagem completa por todos os cenários históricos onde as histórias dos diferentes personagens se passam, e mostra como os vampiros estiveram relacionados com as crenças e com a religiosidade ao longo dos séculos.
Como é de seu costume, Rice impregna sua narrativa com passagens filosóficas e questionamentos metafísicos, característica da autora que transforma sua leitura em muito mais do que um simples entretenimento, num verdadeiro instrumento de reflexão.



RICE, Anne. O Vampiro Lestat. 1ª edição. São Paulo: Marco Zero, 1989.


E havia também alguma coisa de vampiresca na música de rock. Ela certamente soava como sobrenatural. Estou me referindo à maneira como a eletricidade pode sustentar para sempre uma única nota; ao modo como as harmonias são superpostas até você sentir-se dissolvido no som. Terrivelmente eloqüente esta música. O mundo não tinha visto nada semelhante antes. p. 11


[...] as pessoas mais simples desta época se orientavam por uma vigorosa moralidade secular tão forte quanto qualquer moralidade religiosa que eu já conhecera. Os intelectuais carregavam as bandeiras. Mas pessoas inteiramente comuns em toda a América se preocupavam apaixonadamente com a “paz”, os “pobres” e “o planeta”, como se estivessem possuídas por um zelo místico.
Tencionavam acabar com a fome neste século. Erradicariam as doenças a qualquer preço. Questionavam ferozmente a pena de morte e o aborto. E combatiam as ameaças da “poluição ambiental” e da “guerra de holocausto”, com tanta violência quanto em épocas passadas combateram a bruxaria e a heresia.
Quanto à sexualidade, já não era mais uma questão de superstição e medo. Ela estava sendo despojada dos últimos traços de religiosidade. Era por isso que as pessoas andavam meio nuas. Era por isso que se beijavam e se abraçavam nas ruas. Agora conversavam sobre ética, responsabilidade e beleza do corpo. A procriação e as doenças venéreas estavam sob controle.
Ah, o século XX. Ah, o giro da grande roda. Superara os sonhos mais desvairados este futuro. Transformara em tolos os profetas sinistros de épocas passadas.
Eu pensava muito nessa inocente moralidade secular, nesse otimismo. Neste mundo brilhantemente iluminado onde o valor da vida humana era maior do que havia sido antes. p. 13-14
           

E conhecerei pessoas como você, pessoas que tenham alguma coisa na cabeça e que saibam conversar, e nos sentaremos nos cafés, beberemos juntos, discutiremos com ardor e passaremos o resto de nossas vidas em uma excitação divina. p. 44

            
Até o mais convicto dos ateus provavelmente acredita que a morte lhe trará alguma resposta. p. 49

            
Não sei. Chegou como uma coisa que veio de fora e se instalou em mim. Num minuto era uma idéia, no outro era real. Creio que se pode atrair esse tipo de coisa, mas não se pode fazê-la vir. p. 51


Naturalmente, tudo que esses jovens burgueses realmente desejavam era tornarem-se aristocratas. Compravam títulos e ligavam-se pelo matrimônio a famílias nobres sempre que podiam. E é uma das pequenas ironias da História que eles tenham participado da Revolução e ajudado a destruir a classe à qual, de fato, gostariam de ter se juntado. p.57


[...] eu posso viver sem Deus. Posso até viver com a idéia de que não existe vida depois da morte. Mas não creio que pudesse continuar se não acreditasse na possibilidade da bondade. p.61


Então, deitei prostrado sobre as pedras, não mais murmurando orações, mas sim aquelas súplicas desarticuladas que fazemos diante de tudo que é poderoso, de tudo que é sagrado, de tudo que possa ou não existir com que nome for. p. 80


Quero saber, por exemplo, por que a beleza existe, por que a natureza continua a criá-la, e qual é a ligação entre a vida de uma tempestade de relâmpagos com os sentimentos que ela desperta dentro de cada um de nós? Se Deus não existe, se essas coisas não estão unificadas em um sistema metafórico, então por que exercem tamanho poder simbólico sobre nós? p. 226-7

            
Teria sido este o perigo que senti o tempo todo, o gatilho do meu medo? Mesmo enquanto admitia isto, eu já estava me rendendo, e me pareceu que as grandes lições da minha vida foram todas elas aprendidas através da renúncia ao medo. p. 228


- Quando o mundo dos homens cair em ruínas, a beleza tomará conta de tudo. As árvores crescerão novamente onde havia apenas ruas; as flores recobrirão os campos que são agora um pantanal de choupanas. Este será o propósito do mestre satânico, ver a relva selvagem e as densas florestas cobrirem todos os vestígios das grandes cidades até que nada permaneça delas.
- E por que chama tudo isto de satânico? Por que não chamar de caos? Pois é isto o que seria.
- Porque este é o nome que os homens dariam. Eles inventaram Satã, não foi? Satânico é apenas o nome que eles dão ao comportamento daqueles que tentam perturbar o ordenado mundo no qual desejam viver. [...] É claro que Deus não é necessariamente antropomórfico. Nem tampouco, o que, em nosso colossal egocentrismo e sentimentalismo, poderíamos chamar de “uma pessoa decente”. Mas pode existir um Deus. Satã, contudo, foi uma invenção humana, um nome dado às forças que procuram aniquilar a ordem civilizada das coisas. O primeiro homem a estabelecer as leis - seja ele Moisés ou algum antigo rei egípcio como Osíris - foi também o criador do diabo. O diabo é aquele que tenta alguém a quebrar as leis. E nós somos verdadeiramente satânicos porque não obedecemos a nenhuma lei que proteja o homem. Então por que não fazer a subversão total? Por que não fazer uma fogueira do mal para consumir todas as civilizações da terra? p. 261-2

            
Não sei por que continuo. Eu não busco a verdade. Não acredito nela. Não espero que você me revele nenhum antigo segredo, qualquer que seja ele. Mas acredito em alguma coisa. Talvez simplesmente na beleza do mundo onde vivo ou na própria vontade de viver. p. 264


[...] toda a velha poesia fazia sentido quando se olhava para alguém a quem se amou. p. 275


Que é bom, que faz algum bem, que contém alguma bondade! Meu Deus, mesmo se este mundo fosse inteiramente desprovido de sentido, certamente ainda haveria lugar para a bondade. É bom comer, beber, rir... estar junto... p. 279


Pouquíssimos seres neste mundo realmente buscam o conhecimento. Mortais ou imortais, poucos realmente questionam. Ao contrário, eles geralmente tentam extrair do desconhecimento as respostas que já modelaram em suas próprias mentes - justificativas, confirmações, fórmulas reconfortantes sem as quais não poderiam continuar vivendo. Questionar realmente é abrir a porta para um furacão. A resposta pode destruir a indagação e o questionador. p.294


Fala-se muito neste século sobre a nobreza do selvagem, sobre a força corruptora da civilização, sobre o modo como devemos encontrar nosso caminho de volta para a inocência perdida. Bem, isto na verdade é bobagem. Povos verdadeiramente primitivos podem se revelar monstruosos nas suas crenças e expectativas. Eles não podem entender a inocência assim como as crianças. Mas a civilização finalmente produziu homens que se comportam inocentemente. Pela primeira vez eles olham ao redor de si mesmo e dizem: “Mas que diabo é tudo isto aqui?” p. 294

            
Ser ateu é provavelmente o primeiro passo para a inocência, libertar-se da sensação de pecado e subordinação, do falso pesar pelas coisas destinadas a serem perdidas. p. 295


Mas, aos quarenta, já vivera o bastante para saber que a maioria das pessoas que encontramos pelas tabernas podem parecer interessantes no início, mas depois tornam-se insuportavelmente aborrecidas. p. 309


E eu sabia apenas o que todos os homens sabem, que o ciclo do inverno e da primavera, de todas as coisas que crescem, contém no seu próprio interior alguma sublime verdade que restaura sem necessidade de mitos ou linguagem. p. 316

            
Enquanto o Império Romano aproximava-se do seu fim, todos os antigos deuses do mundo pagão passaram a ser vistos como demônios pelos cristãos em ascensão. Era inútil dizer a eles, enquanto os séculos passavam, que seu Cristo nada mais era do que um outro Deus da Floresta, morrendo e ressuscitando, assim como Dionísio ou Osíris tinham feito antes dele, e que a Virgem Maria era na verdade a Boa Mãe novamente entronizada. Era deles uma nova era de crença e convicção, e nela nós nos tornamos os demônios, afastados do que eles acreditavam, enquanto o antigo conhecimento era esquecido ou mal compreendido. p. 355


E no mundo de hoje o vampiro é apenas um Deus Maligno. Ele é um Filho das Trevas. Ele não pode ser outra coisa além disso. Se ele exerce algum poder de atração sobre a mente dos homens é apenas porque a imaginação humana é um lugar secreto povoado de memórias primitivas de desejos inconfessáveis. A mente de cada homem é um Jardim Selvagem, no qual florescem e morrem todos os tipos de criaturas, onde cânticos são entoados e coisas imaginadas, para serem depois todos rejeitados e condenados. p.356

            
Velhas verdades e antigas magias, revolução e invenção, tudo conspira para desviar nossa atenção da paixão que, de uma maneira ou de outra, termina por nos derrotar a todos. p. 377


Os cientistas de hoje são médicos-feiticeiros eternamente em guerra um contra o outro. Nunca estão de acordo, mesmo nas questões mais elementares. Você teria de espalhar este pedacinho de pele sobrenatural para todos os microscópios do mundo e mesmo assim provavelmente o público não acreditaria em uma só palavra. p. 407


Agora eu sabia tudo aquilo que não encontrara nas páginas dos livros que lera sobre os músicos de rock - este louco casamento entre o primitivo e o científico, este frenesi religioso. Nós, sem dúvida, estávamos no antigo bosque. Todos nós estávamos com os deuses. p. 414

...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Dean R. Koontz - Lágrimas do Dragão, 1993

Um dos aspectos mais interessantes deste livro é que toda a história se passa num período que compreende menos de 24 horas e, por isso mesmo, ele acaba sendo muito dinâmico. O autor vai costurando retalhos da história de cada personagem  até o momento em que suas vidas finalmente se encontram - numa conclusão realmente enervante. Assediados por aparições de um ser com poderes sobrenaturais, os personagens vivem um verdadeiro terror psicológico nas mãos de um lunático que pensa estar se tornando o novo Deus "castigador" e purificador da humanidade. Confusos, eles tentarão entender a natureza do que se passa. No limiar entre a loucura e uma nova realidade totalmente assustadora, eles enfrentarão uma frenética corrida contra o tempo na luta pela sobrevivência.
Com descrições de arrepiar e causar enjoos, o livro é uma obra de terror das melhores, escrita por um autor já consagrado no ramo.

KOONTZ, Dean. Lágrimas do dragão. Rio de Janeiro: Record, 1995. 383 p.


Os jornalistas eletrônicos nem sempre têm motivos lógicos ou justificativas verossímeis para dizer e fazer algumas das coisas que dizem e fazem. Para muitos deles, relatar as notícias não é um compromisso sagrado nem um serviço público, é show business, onde luzes e estardalhaço são mais necessários que fatos e números. p. 93

Um esbarrão com a morte era um grande esclarecedor de pensamentos e sentimentos. p. 94

A vida é engraçada. Tantas conexões com outras pessoas, das quais nem fazemos idéia, fios invisíveis nos ligando a gente que há muito esquecemos e a alguns que não encontraremos durante anos - se é que encontraremos algum dia. p. 120

“Algumas vezes a vida pode ser amarga como lágrimas de dragão. Mas se as lágrimas de dragão são amargas ou doces depende inteiramente de como cada homem percebe o gosto”. Em outras palavras, a vida é dura, até mesmo cruel, mas também é aquilo que você faz dela. p. 120

Elementos criminosos, sociopatas. Eles têm um monte de nomes. Como as pessoas feitas de vagens, em Invasores de Corpos, eles andam entre nós e passam por seres humanos comuns, civilizados. Mas mesmo havendo muitos, ainda são uma pequena minoria, e são qualquer coisa, menos comuns. Sua civilização é um verniz, maquiagem teatral escondendo o selvagem escamoso e rastejante do qual evoluímos, a antiga consciência reptiliana. p. 143

Esses são os anos noventa, o cotilhão do pré-milênio, a nova Idade das Trevas, quando qualquer coisa pode acontecer e geralmente acontece, quando o impensável não é comente pensável, mas aceito, quando cada milagre da ciência é contrabalançado por um ato de barbárie humana que não faz praticamente ninguém erguer a sobrancelha. Cada realização tecnológica brilhante é contrabalançada por mil atrocidades de ódio e estupidez humana. Para cada cientista que busca a cura do câncer existem cinco mil facínoras querendo marretar o crânio de uma senhora de idade até transformá-lo em suco de maçã, só pelos trocados que ela tem na bolsa. p. 148

Quando varrido pela tempestade,
abrace o caos.
 p. 165

A verdade é que ele achava difícil admitir que amava qualquer pessoa, homem ou mulher, até mesmo seus pais, porque o amor era uma coisa muito complicada. Implicava obrigações, compromissos, envolvimentos, troca de emoções. Quando você admitia que amava pessoas, tinha de deixá-las entrar mais profundamente em sua vida, e elas traziam todos os seus hábitos confusos, seus gostos promíscuos, suas opiniões turvas e suas atitudes desorganizadas. p. 191

Hoje em dia, se sua vida se ferra, se você fracassa com a família e os amigos, nunca é culpa sua. Você é um bêbado? Bom, talvez seja uma predisposição genética. É um adúltero compulsivo, tem cem parceiros sexuais por ano? Talvez não tenha se sentido amado na infância, talvez seus pais nunca lhe tenham dado todo o carinho que você precisava. Tudo isso é besteira.
Você arrebenta a cabeça de um balconista ou espanca uma senhora até a morte em troca de vinte pratas? Bom, você não é um mau sujeito, não tem culpa! Seus pais é que têm culpa, a sociedade é que tem culpa, toda a cultura ocidental tem culpa, mas não você, nunca você, que idiotice sugerir uma coisa dessas, que insensatez, que coisa mais fora de moda!
Você pode abandonar a esposa e os filhos sem pagar pensão às crianças, roubar milhões de seus investidores, transformar em geléia o cérebro de um cara só porque ele é gay ou se mostrou desrespeitoso com você, jogar o bebê no incinerador de lixo porque tem outras idéias sobre a alegria de ser mãe, fraudar os impostos, o seguro social, vender drogas a crianças da escola primária, abusar da própria filha e mesmo assim dizer que você é a vítima. Todo mundo é vítima hoje em dia. Ninguém é agressor. Não importa a atrocidade que você cometa, pode implorar simpatia, reclamar que é vítima de racismo, de racismo às avessas, de sexismo, preconceito de idade, de classe, preconceito contra pessoas gordas, pessoas feias, pessoas burras, pessoas inteligentes. Por isso roubou bancos ou explodiu a cabeça daquele tira, porque é uma vítima, há milhões de modos de ser vítima. É, certo, você desvaloriza as reclamações honestas das vítimas de verdade, mas que diabo, a gente só vive uma vez, é preciso participar da ação e, afinal de contas, quem se importa com aquelas vítimas de verdade? Pelo amor de Deus, eles são perdedores.

p. 205 -206

Sob a casca dura de cinismo que alimentara com tanto amor durante tanto tempo, ela evidentemente guardava, como qualquer pobre-diabo do mundo, a esperança de que era diferente e que viveria para sempre. p. 287

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Aldous Huxley - Admirável mundo novo, 1932


Ando relendo alguns livros, lendo-os com os olhos de hoje que são realmente bastante distintos dos de ontem, e assim o serão dos de amanhã. É absolutamente impressionante como nossas impressões mudam a respeito das mesmas leituras. Esse livro se mostrou completamente diferente. Li pela primeira vez durante minha adolescência e admiti um sentido totalmente diverso para a obra. Inspiração de rebeldia contra o sistema, de inconformação, de rejeição dos papéis sociais, dos dogmas. Me colocava, então, como uma operária indignada por ser manipulada, revoltosa pela realidade plástica.
Hoje, muito diferente, muito. Não digo que concordaria com uma sociedade como a que Aldous nos coloca - longe disso -, mas desta vez acabei refletindo sobre mil e uma outras coisas daquele modelo social em relação ao caos e degradação em que vivemos na sociedade de hoje. Vi, sim, muitos aspectos positivos, e, claro, mantenho minha resistência quanto ao condicionamento. Mas e por que mantenho essa resistência? Essa segunda leitura fez com que me questionasse sobre isso. De qualquer forma, algumas questões que ficam: o que é de fato liberdade? que liberdade é essa proclamada e defendida da qual tanto nos gabamos,  e pela qual  oferecemos impulsiva resistência ao mundo de condicionamento sistemático e aberto que Huxley nos mostra? que moralidade é essa que faz com que o Estado Mundial nos escandalize tanto? não estamos nós a defender uma liberdade que não existe? e, pior, não estamos nós, através de uma negação moralista, a alimentar um condicionamento muito pior, um condicionamento mascarado, velado, que incorre violentamente para a miséria dos seres humanos de nossa era?
 

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2003. 314 p.


Lema do Estado Mundial: Comunidade, Identidade, Estabilidade.

Considerem o cavalo. - Os rapazes o consideraram. - Maduro aos seis anos; o elefante, aos dez. Enquanto, aos treze anos, um homem ainda não está sexualmente amadurecido, e não é adulto antes dos vinte anos. Daí, naturalmente, esse fruto do desenvolvimento
retardado: a inteligência humana. p. 23

- E esse é o segredo da felicidade e da virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar. P. 24-25

Aqueles que se sentem desprezados fazem bem em ostentar um ar de desprezo. P. 47

Estabilidade. Estabilidade. Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem estabilidade individual. P. 55

Cada um pertence à todos. P. 56

As palavras podem ser como os raios x, se as usarmos adequadamente: penetram em tudo. A gente lê e é trespassado. P. 87

Porque tinha tantas coisas insensatas e excruciantes pelas quais podia exaltar-se. É preciso estar ferido e perturbado sem o que não se acham as expressões verdadeiramente boas, penetrantes, as frases de raios x. p. 224

“Um homem envelhece; percebe em si mesmo aquela sensação radical de fraqueza, de atonia, de mal-estar que acompanha o avançar da idade; e, sentindo-se assim, julga estar apenas doente, aquieta seus temores com a idéia de que esse estado penoso é devido a alguma causa particular, da qual espera curar-se como de uma moléstia. Vãs imaginações! A moléstia é a velhice; e trata-se de uma doença horrível. Dizem que é o medo da morte, e do que vem depois da morte, que leva os homens a se voltarem para a religião à medida que os anos se acumulam. Todavia, a experiência pessoal me trouxe a convicção de que, completamente à parte de tais temores e imaginações, o sentimento religioso tende a desenvolver-se porque, à medida que as paixões se acalmam, que a fantasia e a sensibilidade vão sendo menos excitadas e menos excitáveis, a razão é menos perturbada em seu exercício, menos obscurecida pelas imagens, desejos e distrações que a absorviam; então Deus emerge como se tivesse saído de trás de uma nuvem; nossa alma vê, sente a fonte de toda luz, volta-se natural e inevitavelmente para ela; porque, tendo começado a esvair-se dentro de nós tudo aquilo que dava ao mundo das sensações sua vida e seu encanto, não sendo mais a existência material sustentada por impressões externas e internas, sentimos a necessidade de nos apoiarmos em algo que permaneça, que nunca nos traia – uma realidade, uma verdade, absoluta e eterna. Sim, voltamo-nos inevitavelmente para Deus; pois esse sentimento religioso é por natureza tão puro, tão delicioso para a alma que o experimenta, que compensa todas as nossas outras perdas”. P. 282-83

Os deuses são justos. Sem dúvida. Mas o seu código de leis é ditado, em última instância, pelas pessoas que organizam a sociedade; a Providência recebe a palavra de ordem dos homens. P. 286

- Mas Deus é a razão de ser de tudo o que é nobre, belo, heróico. Se tivesse um Deus...
- Meu jovem amigo, a civilização não tem nenhuma necessidade de nobreza ou de heroísmo. Essas coisas são sintomas de incapacidade política. Numa sociedade convenientemente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade para ser nobre ou heróico. É preciso que as coisas se tornem profundamente instáveis para que tal oportunidade possa apresentar-se. Onde houver guerras, onde houver obrigações de fidelidade múltiplas e antagônicas, onde houver tentações a que se deva resistir, objetos de amor pelos quais se deva combater ou que seja preciso defender, aí, evidentemente, a nobreza e o heroísmo terão algum sentido. Mas não há guerras em nossos dias. Toma-se o maior cuidado em evitar amores extremados seja por quem for. Não há nada que se assemelhe a obrigações de fidelidade antagônicas; todos são condicionados de tal modo que ninguém pode deixar de fazer o que deve. E o que se deve fazer é, em geral, tão agradável, deixa-se margem a tão grande número de impulsos naturais, que não há, verdadeiramente, tentações a que se deva resistir. E se alguma vez, por algum acaso infeliz, ocorrer de um modo ou de outro qualquer coisa de desagradável, bem, então há o soma, que permite uma fuga da realidade. E sempre há o soma para acalmar a cólera, para nos reconciliar com os inimigos, para nos tornar pacientes e nos ajudar a suportar os dissabores. No passado, não era possível alcançar essas coisas senão com grande esforço e depois de anos de penoso treinamento moral. Hoje, tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama e pronto. Todos podem ser virtuosos agora. Pode-se carregar consigo mesmo, num frasco, pelo menos a metade da própria moralidade. O cristianismo, eis o que é o soma. p. 287-88

- Mas eu gosto dos inconvenientes.
- Nós, não. Preferimos fazer as coisas confortavelmente.
- Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.
- Em suma – disse Mustafá Mond -, o senhor reclama o direito de ser infeliz.
- Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio. – Eu reclamo o direito de ser infeliz.
- Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; no direito de ter sífilis e câncer; no direito de não ter quase nada que comer; no direito de ter piolhos; no direito de viver com a apreensão constante do que poderá acontecer amanhã; no direito de contrair a febre tifóide; no direito de ser torturado por dores indizíveis de toda espécie.
Houve um longo silêncio.
- Eu os reclamo todos – disse finalmente o Selvagem.
Mustafá Mond deu de ombros.
- À vontade – respondeu.
p. 291




quinta-feira, 30 de junho de 2011

O caso de Charles Dexter Ward - H. P. Lovecraft, 1927

Criei um tópico especial para o [Lovecraft], mas como essa história é uma romance, e por isso mais extensa, decidi dedicar uma postagem só para ela.
Esse livro realmente me fez arrepiar o pêlo. Um curioso jovem - Charles Dexter - resolve desenterrar (até que acaba por literalmente o fazê-lo) a história de seus antepassados, e após incansável investigação, ele descobre um ancestral macabro em sua linhagem, cujas referências foram sistematicamente extintas dos registros. De pesquisador entusiasta, Charles passa a escravo de uma obsessão que toma formas sobrenaturais. Ao dar continuidade às hediondas "experiências" e estudos de seu tetravô, ele invoca forças e entidades de um mundo totalmente desconhecido que já não pode controlar. 

"Os sais essenciais dos animais podem ser preparados e preservados de modo que um homem engenhoso pode ter toda a Arca de Noé em sem seu próprio escritório e fazer surgir a bela forma de um animal das cinzas deste a seu bel prazer, e, pelo mesmo método, dos sais essenciais do pó humano, sem criminosa necromancia, um filósofo pode fazer reviver a forma de qualquer ancestral falecido das cinzas em que seu corpo se tornou.



LOVECRAFT, H. P. O caso de Charles Dexter Ward. Porto Alegre: L&PM, 1988. 144 p.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Cultura do medo - Barry Glassner, 1999

Esse livro inspirou o documentário do Michael Moore, Tiros em Columbine, vencedor do Oscar de 2003. 
Eu iria além a respeito de ter "inspirado", porque me parece que a obra do Moore é o livro na forma de documentário, com mais ênfase em alguns dos aspectos de que o livro trata.
Enfim, o autor é um sociólogo, e sua obra vem acompanhada de extensas notas referenciais, com todas as fontes que utilizou em sua pesquisa.
O tema central do livro são os medos que se arraigaram em nossa sociedade, medos que na maioria das vezes são pouco ou nada refletidos e quase sempre infundados, plantados pelos diversos tipos de mídia na forma de alarmismos que fazem com que nós nos sintamos cada vez mais ameaçados, vulneráveis e inseguros.
Obra fundamental para nos ajudar no entendimento e compreensão do nosso contexto sócio-cultural, faz com que afinemos nossa crítica em relação as informações externas que nos chegam.

GLASSNER, Barry. Cultura do medo : por que tememos cada vez mais o que deveríamos temer cada vez menos. São Paulo: Francis, 2003. 342 p.


Tão importante quanto o que se diz na mídia são os silêncios, o que não se diz. p. 17

Os telejornais sobrevivem com base em manchetes alarmistas. Nos noticiários locais, onde os produtores vivem à custa da máxima “se tem sangue, não tem pra ninguém”, histórias sobre drogas, crimes e desastres constituem a maioria das notícias levadas ao ar. p. 31

A resposta sucinta a por que os americanos cultivam tantos medos ilegítimos é a seguinte: muito poder e dinheiro estão à espera daqueles que penetram em nossas inseguranças emocionais e nos fornecem substitutos simbólicos. Este livro fornece uma resposta mais extensa, identificando os verdadeiros vendilhões dos nossos medos, seus métodos de marketing e os incentivos que o nosso saldo precisa adquirir. p. 40

Grandes porcentagens não têm necessariamente grandes números por trás delas. p. 51

Relativamente a quase todos os temores americanos atuais, em vez de se enfrentar problemas sociais perturbadores, a discussão pública concentra-se em indivíduos perturbados. p. 53

Veja uma quantidade suficiente de brutalidade na TV e você começará a acreditar que está vivendo em um mundo cruel e sombrio, em que você se sente vulnerável e inseguro. p. 100

O medo cresce, acredito, proporcionalmente à culpa inconfessa. Ao se cortar gastos com programas educacionais, médicos e antipobreza para os jovens, comete-se grande violência contra eles. Porém, em vez de se enfrentar a responsabilidade coletiva, projeta-se a violência contra os próprios jovens e contra estranhos que se imagina que irão atacá-los. p. 137

Esse tipo de asserção ratifica uma observação atribuída a Harry Truman: “Não há nada novo no mundo exceto a história que não se conhece”. p. 140

As crianças podem apresentar uma variação biológica em seus níveis de atividade. No entanto, se for para considerar um alto nível de atividade como distúrbio de déficit de atenção, isso dependerá da nossa concepção em relação à sala de aula ideal. [Kenneth Gergen, 1997]
A nossa consideração também depende da prática médica ideal, como sugerem outros cientistas sociais e especialistas em ética médica. Do ponto de vista dos convênios de saúde da década de 1990, esse ideal às vezes resume-se a gastar o mínimo possível para eliminar os sintomas de um paciente. Por que proporcionar longas terapias individuais ou familiares para tratar de problemas de crescimento ou emocionais da criança ou problemas da família quando, com uma simples receita, é possível se livrar de comportamentos que perturbam os pais e professores? p. 144

Provavelmente a dependência dos políticos em relação à indústria farmacêutica para o levantamento de fundos para as campanhas eleitorais e a dependência da imprensa em relação à mesma indústria para receitas publicitárias têm algo a ver com aquelas formas de consumo abusivo que eles deploram. p. 243

Não deveria haver mistério sobre onde grande parte do dinheiro e força de trabalho pode ser encontrada - na própria cultura do medo. Desperdiçamos dezenas de bilhões de dólares e horas de trabalho todos os anos com perigos basicamente míticos, como fúria no trânsito, em celas de prisão ocupadas por pessoas que representam pouco ou nenhum perigo para os outros, em programas idealizados para proteger jovens de perigos que poucos deles jamais enfrentam, em indenizações para vítimas de doenças metafóricas e em tecnologias para fazer com que as viagens aéreas - que já são mais seguras do que outros meios de transporte - fiquem ainda mais seguras.
Podemos optar por redirecionar alguns desses recursos para combater perigos sérios que ameaçam grande número de pessoas. Na época das eleições, podemos escolher candidatos que apresentam programas em vez de alarmismos.
Ou podemos continuar a acreditar em invasores marcianos. p. 331