Li esse livro como demanda da faculdade, e posso dizer que foi um soco no estômago. É um estudo revelador sobre as ações norte-americanas no período do pós-guerra (2ªGM), sobre as intervenções destes no mundo todo, sobre o apoio clandestino a uma série de ditaduras e conflitos como nos casos da Nicarágua, El Salvador, Panamá, Guatemala, Sudeste Asiático, enfim, pelo mundo todo; intervenções que contaram com verdadeiras atrocidades ao ser humano.
Dentre tantos, deparei-me com o absurdo que sucede. É um trecho do Estudo de Planejamento Político 23 [EPP 23], elaborado em 1948, pelo Departamento de Estado dos EUA, redigido pelo então encarregado George Kennan. Na verdade é absurdo, mas nem tanto. Nem tanto, porque a gente já sabe bem como funcionam as coisas por trás dos panos, e ficar chocado não é exatamente a reação.
Esse documento foi concebido como ultra secreto, mais como um diálogo entre os estrategistas americanos do pós-guerra, que objetivavam claramente a hegemonia e monopólio da economia mundial. Essa história dos EUA dominar o mundo parece meio clichê já, mas é interessante perceber como eles realmente estavam articulados no sentido de elaboração de metas e estratégias de dominação, no sentido de ações concretas, para que a gente saia um pouco daquele plano de idéias vagas de conspiração.
Segue um trecho:
Precisamos parar de falar de vagos e irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor.
"Seguindo essas mesmas linhas, numa reunião de embaixadores americanos na América Latina, em 1950, Kennan observou que a maior preocupação da política externa norte-americana devia ser 'a proteção das nossas (isto é, da América Latina) matérias-primas. Devemos combater a perigosa heresia que, segundo informava a Inteligência americana, estava se espalhando pela América Latina: “A idéia de que o governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo'. Os estrategistas americanos chamam esta idéia de comunismo. [...] se elas apóiam tal heresia, elas são comunistas."
Ficha de leitura completa:
Os objetivos principais da
política externa dos EUA
>>
A proteção do nosso território.
A
relação entre os EUA e os outros países remonta às origens da história da
América, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de águas,
comecemos então por aí. Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a
destruição de nossos rivais industriais, aos EUA ela propiciava enormes
benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais
que triplicou. p. 9
Aqueles
que determinam a política norte-americana sabiam muito bem que os EUA sairiam
da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que,
durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo do
pós-guerra. p. 9-10
>>
A “Grande Área”
[...]
grupos de estudos do Departamento de Estado e do Conselho de Relações
Exteriores desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que eles
denominaram a “Grande Área” [se possível o mundo inteiro], para que esta fosse
subordinada às necessidades da economia norte-americana. A divisão
das funções e setores específicos da nova ordem mundial seria a seguinte:
- Países industrializados: grandes oficinas, trabalhando sob a supervisão
norte-americana.
- Terceiro Mundo: fonte de matérias-primas e mercado consumidor para as
sociedades industriais capitalistas.
A
Guerra do Vietnã emergiu da necessidade de garantir esse papel de serviçal. Os
vietnamitas nacionalistas não quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser
esmagados. A ameaça não era a de que eles iriam conquistar alguém, mas que eles
poderiam dar um exemplo perigoso de independência nacional, que inspiraria
outros países na região. p. 16
>>
A restauração da ordem tradicional
Os
estrategistas do mundo pós-guerra logo perceberam que ia ser imprescindível,
para o bem das empresas americanas, que as outras sociedades ocidentais se
refizessem dos prejuízos da guerra, para que pudessem importar mercadorias
manufaturadas dos EUA, e assim fornecerem oportunidades de investimentos. p. 18
A
ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominação das
empresas, com a divisão e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da
reconstrução sendo colocado inteiramente nos ombros da classe trabalhadora e
dos pobres. p. 18
[...]
isso requeria extrema violência, mas, entre outras, isso era feito por meio de
medidas mais suaves, como subverter eleições ou esconder alimentos extremamente
necessários. p. 18
Os
estrategistas norte-americanos reconheceram que a “ameaça” na Europa não era a
agressão soviética, mas a resistência anti-fascista operária e camponesa com
seus ideais democráticos radicais, o poder político e a atração dos partidos
comunistas locais. p. 19
Outro
aspecto da repressão à resistência anti-fascista foi o recrutamento de
criminosos de guerra, como Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe
da Gestapo em Lyon, na França. Lá, ele recebeu o apelido de “açougueiro de Lyon”.
Embora ele tivesse sido responsável por crimes hediondos, o Exército dos EUA
encarregou-o da espionagem na França. p. 23
Mais
tarde, quando se tornou difícil, ou impossível, proteger esse valioso pessoal
na Europa, muitos deles esconderam-se nos EUA ou na América Latina, muitas
vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas. Lá, eles se tornaram
conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos EUA, [...]
traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores -
ensinando a camponeses latino-americanos técnicas de tortura inventadas pela
Gestapo. p. 23-24
>>
Nosso compromisso com a democracia
[...]
a principal ameaça à nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo
do Terceiro mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os “regimes nacionalistas” que atendem às
“exigências populares de elevação imediata dos baixos padrões de vida das
massas” e produção de bens que satisfaçam às suas necessidades básicas. p. 24
As
metas: evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um golpe de
sorte eles chegassem ao poder, retirá-los e instalar ali governos que
favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produção
para exportação e o direito de remessa de lucros para fora do país. p. 24-25
Os
EUA esperam contar com a força e fazer alianças com os militares, de modo que
se pode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do
controle. p. 25
Outro
problema apontado nesses documentos secretos, é o excessivo liberalismo dos
países do Terceiro Mundo [...], onde os governos não estão suficientemente
comprometidos com o controle de idéias, restrições de viagens e onde o sistema
judicial é tão deficiente que exige prova para acusação de crimes. 25-26
[...]
ligeira e superficial encenação de interesse humano em relação aos
trabalhadores → efeito psicológico. [...] para manter as massas da América
Latina na linha, “há que adulá-las um pouco, para fazê-las pensar que você
gosta delas”. p. 26
Somos
radicalmente opostos à democracia se seus resultados não podem ser controlados.
O problema com as democracias verdadeiras é que elas podem fazer seus
governantes caírem na heresia de responderem às necessidades de sua própria
população, em vez das dos investidores norte-americanos. p. 26-27
[...]
enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro é
com a “empresa capitalista privada”. p. 27
>>
A ameaça do bom exemplo
Desde
a Revolução Bolchevique de 1917, até a queda dos governos comunistas do Leste
Europeu, no final da década de 1980, era possível justificar qualquer ataque
norte-americano como defesa contra a ameaça soviética. p. 29
Os
estrategistas norte-americanos, desde fins dos anos 1940, até os dias de hoje,
têm advertido que “uma maçã podre pode estragar todo o lote”. p. 31
[...]
o que os EUA querem é “estabilidade”, segurança para “as classes dominantes e
liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos
democráticos formais, ok. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom
exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. p. 32
A
menos que você entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro
Mundo, a política externa norte-americana parece ser uma série de erros
ocasionais, inconsistentes e confusos. Na verdade, nossos líderes têm sido mais
que bem-sucedidos, dentro dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a
eles atribuídas. p. 36
Devastação no exterior
>>
Nossa política de boa vizinhança
Como
os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos
inteiramente de lado a preocupação com os “objetivos vagos e irreais tais como
os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização?” p. 37
“a
ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os
governos latino-americanos que torturam seus cidadãos”. Não tem nada a ver com
quanto o país precisa de ajuda,
somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio. p. 37
[...]
há estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda
norte-americana, ambas se correlacionam com a melhoria das condições de
operações das empresas. p. 37
A Aliança
para o Progresso fortificou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos
produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência,
[...] a produção de carne aumentou, enquanto o consumo de carne diminuiu.
Esse
modelo agroexportativo produz um “milagre econômico” onde o PNB sobe enquanto
a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política,
a oposição popular inevitavelmente aumenta, o que, então, se reprime com terror
e tortura. p. 38
O
primeiro passo é o uso da polícia [...]. Se a “grande cirurgia” for necessária,
nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército,
é tempo de derrubar o governo. p. 39
Os
países que tentaram inverter as regras tornaram-se alvo da hostilidade e da
violência dos EUA. p. 39
Mantenha
boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. p.
39-40
Eu
penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar
todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles
todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em
crimes de guerra. p. 40-41
Um
controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas
disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário
Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do
Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências
industriais).
Em
retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia
aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos
serviços públicos, em geral para a maior parte da população, etc. p. 41
A
dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral,
que as regras do FMI serão obedecidas. p. 42
>>
O bandido de aluguel do mundo
Nós
devemos ser “mercenários bem dispostos”, pagos pelos nossos rivais por nossos
amplos serviços prestados, usando nosso “monopólio de poder” no “mercado de
segurança” para manter “nosso controle sobre o sistema econômico mundial”.
Deveríamos administrar um plano de proteção global, vendendo “proteção” para
outras potências ricas, que nos pagariam uma “recompensa de guerra”. p. 97
Quando
o Estado está comprometido com tais políticas, deve de alguma forma buscar uma
maneira de distrair a população, para impedi-la de ver o que está acontecendo
ao seu redor. Não há muitas maneiras de fazer isso. As mais comuns são inspirar
medo a inimigos terríveis que estão prestes a nos subjugar e reverenciar nossos
grandes líderes, que nos salvam a tempo do desastre. p. 98
Essas
não são leis da natureza. Os processos e as instituições que as engendram podem
ser mudados. Mas isso exigiria profundas mudanças culturais, sociais e
institucionais que não aconteceriam a curto prazo, inclusive mudanças nas
estruturas democráticas, que vão além da seleção periódica de representantes do
mundo empresarial para dirigir os negócios nacionais e internacionais. p. 99
Lavagem cerebral interna
>>
Como funcionava a Guerra Fria
Naturalmente,
tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas
visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de
gerenciamento global, chamado Guerra Fria, foi estabelecido. p. 102
No
lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções
na Europa Oriental (...). No lado americano, as intervenções eram no mundo
inteiro, refletindo o status
alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da
história. p. 103
Cada
superpotência controlava seu inimigo principal - sua própria população -
aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. p. 103
Numa
avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito
entre a URSS e os EUA, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o
Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes
soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus
satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a
repressão e a violência em seu próprio domínio. p. 104
Entretanto,
se esta fase singular terminou, os conflitos Norte-Sul continuam. Um dos lados
pode ter se retirado do jogo, mas os EUA procedem como antes - na realidade
mais livremente - com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. p. 105
>>
A guerra contra certas drogas
Um
dos substitutos do extinto Império do Mal tem sido a ameaça representada pelos
traficantes de drogas da América Latina. p. 106
Assim
como a ameaça soviética, tais inimigos fornecem uma boa desculpa para a
presença militar americana onde haja atividade rebelde ou outros distúrbios.
Assim,
internacionalmente, “a guerra às drogas” fornece um pretexto para intervenções.
Internamente tem pouco a ver com as drogas, mas muito a ver com a distração da
população, aumentando a repressão nos centros urbanos e apoiando o ataque às
liberdades civis. p. 107
A
estreita correlação entre o comércio de drogas e o terrorismo internacional não
é nenhuma surpresa. As operações clandestinas necessitam de muito dinheiro, que
deve ser lavado. E elas (as operações) precisam de criminosos eficientes. E por
aí vai. p. 112
>>
Socialismo, o falso e o verdadeiro
Pode-se
questionar o significado do termo “socialismo”, mas se ele tem algum
significado, este é, antes de tudo, o controle de produção pelos próprios
trabalhadores, não pelos donos e dirigentes que os comandam e tomam decisões,
seja em empresas capitalistas ou em Estados totalitários. p. 118
Em
qualquer significado mais profundo do termo socialismo, os bolcheviques
apressaram-se, mais uma vez, em destruir os componentes socialistas nele
existentes. Desde então, nenhuma divergência socialista foi permitida. p. 118
Os
bolcheviques chamaram seu sistema de socialista
para explorar o prestígio moral do socialismo.
O
Ocidente adotou a mesma prática por uma razão oposta: difamar ideais
libertários, associando-os com os calabouços bolcheviques para minar a crença
popular de que seria possível o progresso em direção a uma sociedade mais justa
(...). p. 120
>>
A mídia
Sejam
chamadas de “liberais” ou de “conservadoras”, as principais mídias são grandes
empresas pertencentes e interligadas a conglomerados maiores ainda. p. 120
(...)
“vazamento de informações”, por exemplo, são amiúde maquinações produzidas
enganosamente por autoridades, em cooperação com a mídia, que finge nada saber.
p. 121
Para
servir aos interesses dos poderosos, a mídia deve apresentar um quadro
toleravelmente realista do mundo. p. 121-122
A
mídia é apenas uma parte de um sistema doutrinário maior: as outras partes são
os jornais de opinião, as escolas e as universidades, as pesquisas acadêmicas,
e assim por diante. p. 122
Esses
setores do sistema doutrinário servem para distrair a grande massa e reforçar
os valores sociais básicos: a passividade, a submissão às autoridades, as
predominantes virtudes da avareza e da ganância pessoal, a falta de
consideração com os outros, o medo de inimigos reais e imaginários. p. 123
O futuro
>>
As coisas mudaram
É
importante reconhecer o quanto o cenário mudou nestes últimos trinta anos em
conseqüência dos movimentos populares, que se organizaram de forma solta e
caótica em torno de certas questões como os direitos civis, a paz, o feminismo,
o meio ambiente e outros temas de interesse humano. p. 125
Atualmente,
a intervenção clássica não é mais considerada uma opção. Os métodos limitam-se
ao terror clandestino, mantido oculto da população interna, ou à demolição
“rápida e fulminante” de “inimigos muito mais fracos”, após uma enorme campanha
de propaganda, expondo-os como monstros de poder indescritível. p. 126
Em
outras áreas também há mais abertura e entendimento, mais ceticismo e
questionamento da autoridade. Logicamente, as últimas tendências são uma faca
de dois gumes. Elas podem levar ao pensamento independente, à organização
popular e a pressões mais que necessárias por transformações institucionais. Ou
podem fornecer uma base popular de pessoas amedrontadas para novos líderes
autoritários. p. 127
>>
O que se pode fazer
(...)
uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incomoda é não ser
passivo e aquiescente. (...) Manifestar-se, escrever cartas e votar podem ser
ações bastante significativas, dependendo da situação. Mas o ponto principal é
ser persistente e organizado. p. 127-128
Pode-se
também fazer sua própria pesquisa. Não confie apenas na história convencional
dos livros e textos de ciência política. p. 129
Referência:
CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.
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