segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que o Tio Sam realmente quer - Noam Chomsky, 1999.


Li esse livro como demanda da faculdade, e posso dizer que foi um soco no estômago. É um estudo revelador sobre as ações norte-americanas no período do pós-guerra (2ªGM), sobre as intervenções destes no mundo todo, sobre o apoio clandestino a uma série de ditaduras e conflitos como nos casos da Nicarágua, El Salvador, Panamá, Guatemala, Sudeste Asiático, enfim, pelo mundo todo; intervenções que contaram com verdadeiras atrocidades ao ser humano.

Dentre tantos, deparei-me com o absurdo que sucede. É um trecho do Estudo de Planejamento Político 23 [EPP 23], elaborado em 1948, pelo Departamento de Estado dos EUA, redigido pelo então encarregado George Kennan. Na verdade é absurdo, mas nem tanto. Nem tanto, porque a gente já sabe bem como funcionam as coisas por trás dos panos, e ficar chocado não é exatamente a reação.

Esse documento foi concebido como ultra secreto, mais como um diálogo entre os estrategistas americanos do pós-guerra, que objetivavam claramente a hegemonia e monopólio da economia mundial. Essa história dos EUA dominar o mundo parece meio clichê já, mas é interessante perceber como eles realmente estavam articulados no sentido de elaboração de metas e estratégias de dominação, no sentido de ações concretas, para que a gente saia um pouco daquele plano de idéias vagas de conspiração.


Segue um trecho:

Precisamos parar de falar de vagos e irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevação do padrão de vida e democratização. Não está longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Então, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor. 

"Seguindo essas mesmas linhas, numa reunião de embaixadores americanos na América Latina, em 1950, Kennan observou que a maior preocupação da política externa norte-americana devia ser 'a proteção das nossas (isto é, da América Latina) matérias-primas. Devemos combater a perigosa heresia que, segundo informava a Inteligência americana, estava se espalhando pela América Latina: “A idéia de que o governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo'. Os estrategistas americanos chamam esta idéia de comunismo. [...] se elas apóiam tal heresia, elas são comunistas."




Ficha de leitura completa:



Os objetivos principais da política externa dos EUA

>> A proteção do nosso território.


A relação entre os EUA e os outros países remonta às origens da história da América, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de águas, comecemos então por aí. Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruição de nossos rivais industriais, aos EUA ela propiciava enormes benefícios. Nosso território jamais foi atacado, e a produção americana mais que triplicou. p. 9

Aqueles que determinam a política norte-americana sabiam muito bem que os EUA sairiam da Segunda Guerra como a primeira potência global da história, tanto assim que, durante e depois da guerra, já planejavam cuidadosamente como moldar o mundo do pós-guerra. p. 9-10

>> A “Grande Área”


[...] grupos de estudos do Departamento de Estado e do Conselho de Relações Exteriores desenvolveram planos para o mundo pós-guerra nos termos do que eles denominaram a “Grande Área” [se possível o mundo inteiro], para que esta fosse subordinada às necessidades da economia norte-americana.  A divisão das funções e setores específicos da nova ordem mundial seria a seguinte:

- Países industrializados: grandes oficinas, trabalhando sob a supervisão norte-americana.

- Terceiro Mundo: fonte de matérias-primas e mercado consumidor para as sociedades industriais capitalistas.

 p. 15-16

A Guerra do Vietnã emergiu da necessidade de garantir esse papel de serviçal. Os vietnamitas nacionalistas não quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaça não era a de que eles iriam conquistar alguém, mas que eles poderiam dar um exemplo perigoso de independência nacional, que inspiraria outros países na região. p. 16

>> A restauração da ordem tradicional


Os estrategistas do mundo pós-guerra logo perceberam que ia ser imprescindível, para o bem das empresas americanas, que as outras sociedades ocidentais se refizessem dos prejuízos da guerra, para que pudessem importar mercadorias manufaturadas dos EUA, e assim fornecerem oportunidades de investimentos. p. 18

A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominação das empresas, com a divisão e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da reconstrução sendo colocado inteiramente nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres. p. 18

[...] isso requeria extrema violência, mas, entre outras, isso era feito por meio de medidas mais suaves, como subverter eleições ou esconder alimentos extremamente necessários. p. 18

Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a “ameaça” na Europa não era a agressão soviética, mas a resistência anti-fascista operária e camponesa com seus ideais democráticos radicais, o poder político e a atração dos partidos comunistas locais. p. 19

Outro aspecto da repressão à resistência anti-fascista foi o recrutamento de criminosos de guerra, como Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na França. Lá, ele recebeu o apelido de “açougueiro de Lyon”. Embora ele tivesse sido responsável por crimes hediondos, o Exército dos EUA encarregou-o da espionagem na França. p. 23

Mais tarde, quando se tornou difícil, ou impossível, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles esconderam-se nos EUA ou na América Latina, muitas vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas. Lá, eles se tornaram conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos EUA, [...] traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores - ensinando a camponeses latino-americanos técnicas de tortura inventadas pela Gestapo. p. 23-24

>> Nosso compromisso com a democracia


[...] a principal ameaça à nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo do Terceiro mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os “regimes nacionalistas” que atendem às “exigências populares de elevação imediata dos baixos padrões de vida das massas” e produção de bens que satisfaçam às suas necessidades básicas. p. 24

As metas: evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um golpe de sorte eles chegassem ao poder, retirá-los e instalar ali governos que favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produção para exportação e o direito de remessa de lucros para fora do país. p. 24-25

Os EUA esperam contar com a força e fazer alianças com os militares, de modo que se pode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do controle. p. 25

Outro problema apontado nesses documentos secretos, é o excessivo liberalismo dos países do Terceiro Mundo [...], onde os governos não estão suficientemente comprometidos com o controle de idéias, restrições de viagens e onde o sistema judicial é tão deficiente que exige prova para acusação de crimes. 25-26

[...] ligeira e superficial encenação de interesse humano em relação aos trabalhadores → efeito psicológico. [...] para manter as massas da América Latina na linha, “há que adulá-las um pouco, para fazê-las pensar que você gosta delas”. p. 26

Somos radicalmente opostos à democracia se seus resultados não podem ser controlados. O problema com as democracias verdadeiras é que elas podem fazer seus governantes caírem na heresia de responderem às necessidades de sua própria população, em vez das dos investidores norte-americanos. p. 26-27

[...] enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro é com a “empresa capitalista privada”. p. 27

>> A ameaça do bom exemplo


Desde a Revolução Bolchevique de 1917, até a queda dos governos comunistas do Leste Europeu, no final da década de 1980, era possível justificar qualquer ataque norte-americano como defesa contra a ameaça soviética. p. 29

Os estrategistas norte-americanos, desde fins dos anos 1940, até os dias de hoje, têm advertido que “uma maçã podre pode estragar todo o lote”. p. 31

[...] o que os EUA querem é “estabilidade”, segurança para “as classes dominantes e liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos democráticos formais, ok. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. p. 32

A menos que você entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro Mundo, a política externa norte-americana parece ser uma série de erros ocasionais, inconsistentes e confusos. Na verdade, nossos líderes têm sido mais que bem-sucedidos, dentro dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a eles atribuídas. p. 36

Devastação no exterior

>> Nossa política de boa vizinhança


Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos inteiramente de lado a preocupação com os “objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização?” p. 37

“a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuída para os governos latino-americanos que torturam seus cidadãos”. Não tem nada a ver com quanto o país precisa de ajuda, somente com sua disposição em servir à riqueza e ao privilégio. p. 37

[...] há estreita correlação em todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana, ambas se correlacionam com a melhoria das condições de operações das empresas. p. 37

A Aliança para o Progresso fortificou o sistema vigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportação e reduzem as colheitas de subsistência, [...] a produção de carne aumentou, enquanto o consumo de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo produz um “milagre econômico” onde o PNB sobe enquanto a maioria da população morre de fome. Quando se segue tal orientação política, a oposição popular inevitavelmente aumenta, o que, então, se reprime com terror e tortura. p. 38

O primeiro passo é o uso da polícia [...]. Se a “grande cirurgia” for necessária, nós contamos com o Exército. Quando não conseguimos mais controlar o Exército, é tempo de derrubar o governo. p. 39

Os países que tentaram inverter as regras tornaram-se alvo da hostilidade e da violência dos EUA. p. 39

Mantenha boas relações com os oficiais certos e eles derrubarão o governo para você. p. 39-40

Eu penso, falando do ponto de vista legal, que há um motivo bem sólido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos têm sido verdadeiros criminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra. p. 40-41

Um controle militar aberto não é mais necessário, pois já existem novas técnicas disponíveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetário Internacional (o qual, assim como o Banco Mundial, empresta fundos às nações do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida em larga escala pelas potências industriais).
Em retribuição aos seus empréstimos, o FMI impõe a “liberalização”: uma economia aberta à penetração e ao controle estrangeiros, além de profundos cortes nos serviços públicos, em geral para a maior parte da população, etc. p. 41

A dívida e o caos econômico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras do FMI serão obedecidas. p. 42

>> O bandido de aluguel do mundo


Nós devemos ser “mercenários bem dispostos”, pagos pelos nossos rivais por nossos amplos serviços prestados, usando nosso “monopólio de poder” no “mercado de segurança” para manter “nosso controle sobre o sistema econômico mundial”. Deveríamos administrar um plano de proteção global, vendendo “proteção” para outras potências ricas, que nos pagariam uma “recompensa de guerra”. p. 97

Quando o Estado está comprometido com tais políticas, deve de alguma forma buscar uma maneira de distrair a população, para impedi-la de ver o que está acontecendo ao seu redor. Não há muitas maneiras de fazer isso. As mais comuns são inspirar medo a inimigos terríveis que estão prestes a nos subjugar e reverenciar nossos grandes líderes, que nos salvam a tempo do desastre. p. 98

Essas não são leis da natureza. Os processos e as instituições que as engendram podem ser mudados. Mas isso exigiria profundas mudanças culturais, sociais e institucionais que não aconteceriam a curto prazo, inclusive mudanças nas estruturas democráticas, que vão além da seleção periódica de representantes do mundo empresarial para dirigir os negócios nacionais e internacionais. p. 99

Lavagem cerebral interna

>> Como funcionava a Guerra Fria


Naturalmente, tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de gerenciamento global, chamado Guerra Fria, foi estabelecido. p. 102

No lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções na Europa Oriental (...). No lado americano, as intervenções eram no mundo inteiro, refletindo o status alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da história. p. 103

Cada superpotência controlava seu inimigo principal - sua própria população - aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. p. 103

Numa avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito entre a URSS e os EUA, sob o qual os EUA conduziram suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço seu próprio império interno e seus satélites na Europa Oriental - cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência em seu próprio domínio. p. 104

Entretanto, se esta fase singular terminou, os conflitos Norte-Sul continuam. Um dos lados pode ter se retirado do jogo, mas os EUA procedem como antes - na realidade mais livremente - com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. p. 105

>> A guerra contra certas drogas

Um dos substitutos do extinto Império do Mal tem sido a ameaça representada pelos traficantes de drogas da América Latina. p. 106

Assim como a ameaça soviética, tais inimigos fornecem uma boa desculpa para a presença militar americana onde haja atividade rebelde ou outros distúrbios.
Assim, internacionalmente, “a guerra às drogas” fornece um pretexto para intervenções. Internamente tem pouco a ver com as drogas, mas muito a ver com a distração da população, aumentando a repressão nos centros urbanos e apoiando o ataque às liberdades civis. p. 107

A estreita correlação entre o comércio de drogas e o terrorismo internacional não é nenhuma surpresa. As operações clandestinas necessitam de muito dinheiro, que deve ser lavado. E elas (as operações) precisam de criminosos eficientes. E por aí vai. p. 112

>> Socialismo, o falso e o verdadeiro

Pode-se questionar o significado do termo “socialismo”, mas se ele tem algum significado, este é, antes de tudo, o controle de produção pelos próprios trabalhadores, não pelos donos e dirigentes que os comandam e tomam decisões, seja em empresas capitalistas ou em Estados totalitários. p. 118

Em qualquer significado mais profundo do termo socialismo, os bolcheviques apressaram-se, mais uma vez, em destruir os componentes socialistas nele existentes. Desde então, nenhuma divergência socialista foi permitida. p. 118

Os bolcheviques chamaram seu sistema de socialista para explorar o prestígio moral do socialismo.
O Ocidente adotou a mesma prática por uma razão oposta: difamar ideais libertários, associando-os com os calabouços bolcheviques para minar a crença popular de que seria possível o progresso em direção a uma sociedade mais justa (...). p. 120


>> A mídia

Sejam chamadas de “liberais” ou de “conservadoras”, as principais mídias são grandes empresas pertencentes e interligadas a conglomerados maiores ainda. p. 120

(...) “vazamento de informações”, por exemplo, são amiúde maquinações produzidas enganosamente por autoridades, em cooperação com a mídia, que finge nada saber. p. 121

Para servir aos interesses dos poderosos, a mídia deve apresentar um quadro toleravelmente realista do mundo. p. 121-122

A mídia é apenas uma parte de um sistema doutrinário maior: as outras partes são os jornais de opinião, as escolas e as universidades, as pesquisas acadêmicas, e assim por diante. p. 122

Esses setores do sistema doutrinário servem para distrair a grande massa e reforçar os valores sociais básicos: a passividade, a submissão às autoridades, as predominantes virtudes da avareza e da ganância pessoal, a falta de consideração com os outros, o medo de inimigos reais e imaginários. p. 123

O futuro

>> As coisas mudaram

É importante reconhecer o quanto o cenário mudou nestes últimos trinta anos em conseqüência dos movimentos populares, que se organizaram de forma solta e caótica em torno de certas questões como os direitos civis, a paz, o feminismo, o meio ambiente e outros temas de interesse humano. p. 125

Atualmente, a intervenção clássica não é mais considerada uma opção. Os métodos limitam-se ao terror clandestino, mantido oculto da população interna, ou à demolição “rápida e fulminante” de “inimigos muito mais fracos”, após uma enorme campanha de propaganda, expondo-os como monstros de poder indescritível. p. 126

Em outras áreas também há mais abertura e entendimento, mais ceticismo e questionamento da autoridade. Logicamente, as últimas tendências são uma faca de dois gumes. Elas podem levar ao pensamento independente, à organização popular e a pressões mais que necessárias por transformações institucionais. Ou podem fornecer uma base popular de pessoas amedrontadas para novos líderes autoritários. p. 127

>> O que se pode fazer

(...) uma das coisas que se pode fazer para lhes tornar a vida incomoda é não ser passivo e aquiescente. (...) Manifestar-se, escrever cartas e votar podem ser ações bastante significativas, dependendo da situação. Mas o ponto principal é ser persistente e organizado. p. 127-128

Pode-se também fazer sua própria pesquisa. Não confie apenas na história convencional dos livros e textos de ciência política. p. 129



Referência:

CHOMSKY, Noam. O que o Tio Sam realmente quer. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. 

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