terça-feira, 1 de abril de 2014

O dilema moral do homicídio: um paralelo entre Dóstoiévski e Graciliano Ramos

“Só mesmo a literatura, que é a expressão da vida no que ela oferece de beleza e feiúra, de falso ou verdadeiro, de virtuoso ou de maligno, poderia reproduzir as maldades e as paixões humanas. Paralelamente, o leitor se defronta com os aspectos mais dolorosos e trágicos da vida, evidenciados em perfis de personagens degenerados ou doentes dos nervos, ou até mesmo personagens primeiramente inocentes, mas que delinqüiram pela força das circunstâncias.” [MESSA, 2002]


  

Ao ler Angústia (1936), do autor brasileiro Graciliano Ramos, é impossível não estabelecer uma correlação com a obra Crime e Castigo (1866), do russo Fiódor Dóstoiévski. Apesar das diferenças estruturais da trama, as duas obras se aproximam muito ao tratarem do homicídio a partir da trajetória do assassino.
Apesar de apresentarem motivações distintas – passional/material -, os dois autores descrevem com muita sensibilidade os devaneios sombrios que assolam as personagens em relação ao crime.



“Não é fácil cometer um crime. Você tem que driblar seus inimigos internos, responsabilidade, valores ético-morais, juízo crítico, sentimento de culpa, noção de monstruosidade, coisas que são realidade no seu organismo, como estômago, fígado e coração.” [MELO, 1994]

Os autores traduzem para a linguagem escrita, o discurso da mente homicida, que se pensa entre a coerência e o desatino, o que nos fornece os valores e padrões morais e éticos de determinado tempo e espaço.




As duas obras apresentam uma detalhada narrativa dos processos emocionais, psicológicos e racionais pelos quais os personagens passam até chegar ao extremo dos crimes. Exploram a ideia de matar, o pensamento, a gestação do crime, ainda que inconsciente; a vontade de matar, as motivações e justificativas que as personagens usam em seu discurso interno; e o ato de matar.

Dóstoiévski vai além e nos traz de maneira mais contundente um debate ético e moral – quase filosófico – sobre o crime. Em Crime e Castigo, o crime é o começo de uma história que também pretende trabalhar a personagem em seu processo interno posterior ao crime, numa jornada redentora, o castigo. Graciliano é mais sutil, tratando da ânsia assassina a partir do caráter mais passional do crime, que é o ápice da trama.

Inicialmente, embora tivesse lido Crime e Castigo, Graciliano negou qualquer influência da obra russa. Influência que, segundo seu filho Ricardo Ramos, o autor teria reconhecido no leito de morte, em 1953.

Repasso abaixo alguns trechos emblemáticos das obras.

Em Angústia:




[...] a água empapa o chão, mole como terra de cemitério, qualquer coisa desagradável persegue-me sem se fixar claramente no meu espírito. Sinto-me aborrecido, aperreado.


Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em conseqüência misturo coisas atuais a coisas antigas.


Entro no quarto, procuro um refúgio no passado. Mas não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um molambo que a cidade puiu demais e sujou. Fumo.


Apronto-me, calço as meias pelo avesso e saio correndo. Paro sobressaltado, tenho a impressão de que me faltam peças do vestuário. Assaltam-me dúvidas idiotas. Estarei à porta de casa ou já terei chegado à repartição? Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer.


As aparências mentem. A terra não é redonda?


Eram notícias sem importância, mas julguei perceber nelas graves sintomas de decomposição social.


Medo da opinião pública? Não existe opinião pública. O leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo atrapalha-se e não sabe para que banda vai.


O isolamento em companhia de uma pessoa era mais opressivo que a solidão completa.


Em Crime e castigo:





- Dá-me licença que te faça uma pergunta a sério? – disse o estudante, ainda um pouco exaltado. – É claro que eu, há pouco, falava de brincadeira, mas olha: de um lado uma velha estúpida, imbecil, inútil, má, doente, que não dá proveito a ninguém, e que até, pelo contrário, a todos prejudica; que nem ela própria sabe para que vive e que amanhã acabará por morrer fatalmente… Compreendes? Compreendes? [...]Do outro lado energias jovens, frescas, que se gastam em vão, sem apoio, e isto aos milhares e em toda parte. Mil obras e boas iniciativas se poderiam fazer com o dinheiro que esta velha deixa ao mosteiro. Centenas, talvez milhares de existências conduzidas ao bom caminho; dezenas de famílias salvas da miséria, da dissolução, da ruína, da corrupção, dos hospitais venéreos… E tudo isso com o seu dinheiro. Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida… mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas… É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. Ela se alimenta da vida alheia, é má.





- Oh, que desmancha-prazeres! Os princípios! Tu te moves por princípios, como se fossem molas; não te atreves a atuar livremente; para mim, o fundamental é que o homem seja bom. E, francamente, reparando bem, em todas as classes não há muitas pessoas boas.


Que hei de eu dizer-lhes? Já há meio ano que convivo com Rodka: áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Generoso e bom ele é. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso, às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que beira a desumanidade; é assim mesmo, como se nele alternassem dois caracteres desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Não se interessa por uma coisa que em outra época o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso. [Perfil de Rodka segundo seu amigo Razumíkhin]


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Enfim, eis duas obras fantásticas e de grande importância literária esperando para serem degustadas por você que ainda não leu. Se leu, vale ler de novo, coisa que eu mesma quero fazer, já que escrever esse post me atiçou uma vontade danada.



E pra quem quiser, deixo aqui os links para download das obras em formato pdf:



Crime e Castigo

Angústia



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Referências do texto:



RAMOS, Graciliano. Angústia. RJ; SP: Editora Record. 239 P.


DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2007. 590 P.


MESSA, Fabio de Carvalho. O gozo estético do crime: Dicção homicida na literatura contemporânea. Tese de doutorado UFSC. Florianópolis, 2002.


Wikipédia: A Enciclopédia Livre.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi k.
ja tive com o livro crime e castigo nas mãos e não li. Mas agora que me senti motivada, vou lê-lo. Os livros de Fiódor Dóstoiévski são muito bons.
Parabens pelo Blog. Amei