sexta-feira, 3 de junho de 2016

Pesadelo em Macondo

Nessa noite tive um sonho. Um sonho muito ruim. Horrível. Mas que me fez renovar meus sentimentos de gratidão pela vida maravilhosa que tenho.

Morávamos na nossa antiga casa, e começou a chover muito. Muitas goteiras surgiram e o teto de gesso começou a ceder, chovia muito dentro de casa. Corri, peguei bacias e mais bacias, mas não eram suficientes, chovia quase como na rua.
Chovia sobre os móveis, apodrecendo-os, chovia sobre os eletrônicos, estragando-os. A água escorria pelas paredes, derretendo-as. Um cenário digno da Macondo de Márquez . A fiação elétrica começou a ficar exposta, e nós, expostos aos choques. Minha vó, tentando se equilibrar numa água que já subia até seu joelho, levou um choque terrível que deu um clarão na casa inteira. Fui em seu socorro e, aliviada, vi ela dizendo que estava bem, ao mesmo tempo que me empurrava para fugirmos dali, dos choques. Os fios elétricos dançavam ao embalo do vento que invadiu nossa casa, já com as paredes desmoronadas. E nós tentávamos fugir daqueles fios de morte dançantes, mas era como se estivéssemos presas ali.
O sentimento todo foi de muito desamparo, de angústia aguda, de desespero. Muito triste.
Acordei de sobressalto naquela angústia dos sonhos, e o alívio que senti quando percebi que estava protegida debaixo das minhas cobertas quentes, sob o teto aconchegante da minha casa, foi indescritível.
Sempre sou muito grata por tudo que tenho na vida. Para aqueles que não me conhecem, meu maior medo na vida é virar mendiga. É bobo, é estranho, sei, e não sei o por quê. É algo que vem comigo desde a adolescência quando consegui meu primeiro emprego e achava que se perdesse aquele emprego nunca mais encontraria outro e acabaria na sarjeta como mendiga. E talvez Freud poderia dizer que é algo que vem comigo desde muito antes.

Por isso, valorizo muito uma coberta, uma boa refeição, um teto sobre minha cabeça, a saúde, minha e dos meus familiares amados. Não apenas me satisfaço, mas me regozijo com o que muitos dizem ser pouco, mas que eu considero ser tudo. E para alguns, talvez, isso soe como conformismo. Pra mim, soa como felicidade: sentir-se feliz exatamente com aquilo que se tem e não sofrer na ânsia por mais nada, exceto o desejo que esse sentimento se mantenha.  

Fonte: http://excahm.deviantart.com/art/Mugen-Stage-Rainy-Ruins-473004606

sábado, 19 de março de 2016

Fantasmas do século XX. Joe Hill, 2005.

Meu primeiro contato com Joe Hill foi através do filme Horns (2013). Fiquei surpresa ao saber que Joe Hill era filho de ninguém menos do que Stephen King. Não sabia que King tinha um filho com tamanho talento e que seguisse tão bem os passos do pai. 
Amei o filme, e fui procurar algo dele para ler, o primeiro escolhido foi Fantasmas do Século XX, de 2005, e, bem, o que dizer desse livro? Fantástico. A escrita de Joe é muito ágil, direta, limpa, o que deixa o ritmo de suas histórias alucinantes, ainda mais no caso dos contos. Não sou uma profunda conhecedora de histórias de terror, no sentido de que não domino os primeiros autores, as referências mais primitivas dos autores que leio, então é difícil dizer que as histórias são realmente originais. O que posso dizer é que, pra mim, os contos deste livro foram muito originais e criativos, superando os clichês do mundo da literatura de horror atuais.



Joe Hill
Foi uma gratíssima surpresa encontrar você, Joe Hill. É difícil não pensar que Stephen King já tem 68 anos, e chegará o dia em que não estará mais entre nós. É verdadeiramente confortador para os fãs de King saber que seu filho está aí, não para substituí-lo, mas para continuar a preencher nossas mentes com histórias mágicas e arrepiantes. 

Link para o download do epub





Horns (2013), filme baseado na obra Horns (2010) de Joe Hill

quarta-feira, 9 de março de 2016

Negrinha. Monteiro Lobato, 1920.

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

   Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

   Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo. Ótima, a dona Inácia.

   Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa: — Quem é a peste que está chorando aí?

   Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero. — Cale a boca, diabo!

   No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer... Assim cresceu Negrinha— magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta. — Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!

   Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.

   Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.

   Que ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...

   A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”... O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

   — Aí! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!... Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

   Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.

   Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.

   — “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.

   Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

   — Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias. — Traga um ovo.

   Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:

   — Venha cá!

   Negrinha aproximou-se.

   — Abra a boca!




   Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

   — Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.

   — Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá! — A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora — murmurou o padre. — Sim, mas cansa...

   — Quem dá aos pobres empresta a Deus.

   boa senhora suspirou resignadamente.

   — Inda é o que vale...

   Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

   Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.

   Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga.

   Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.

   — Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.

   — Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora. — Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco. Chegaram as malas e logo: — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.

   Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava mama ... que dormia...

   Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

   — É feita?... — perguntou, extasiada.

   E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la. As meninas admiraram-se daquilo.

   — Nunca viu boneca?

   — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?

   Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

   — Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

   — Negrinha.

   As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:

   — Pegue!

   Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.

   Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos. Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:

   — Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu. Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.

   Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! Assim foi — e essa consciência a matou.

   Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

   Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.

   Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.

   Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.

   Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma. Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.

   Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.

   Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.

   Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...

   E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

   — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

   Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. — “Como era boa para um cocre!"...

Monteiro Lobato

Os cem melhores contos brasileiros do século - Ítalo Moriconi (Seleção), 2001.

   O conto é um gênero literário a parte. É, sobretudo, uma narrativa curta que traz ao leitor, ou melhor, atira-lhe nos peitos algo que choca, algo que o obriga a reflexão, algo que tira-lhe o chão, que inspira a crítica. É rápido e profundo, o bom conto é uma facada. 
   Apesar de alguns contos dos quais não gostei do estilo, outros que não entendi pelo excesso de referências ou alegorias, no balanço geral dos cem, posso dizer que os contos de que gostei foram maioria esmagadora. Essa seleção de contos brasileiros feita por Ítalo Moriconi ficou realmente ótima.
   No mais, o livro tem o mérito de dar um panorama geral da história do conto nacional. É possível perceber as transformações das mentalidades, as transformações tecnológicas da sociedade, espiar os contextos político-econômicos. Além de poder desnudar autores, percebê-los através de seus personagens. 
   Para quem gosta de literatura nacional essa obra figura como uma verdadeira antologia, e ainda introduz ao leitor diversos autores nacionais de quem talvez nunca tenha ouvido falar.

O troféu facada, ou soco no estômago, dessa obra vai para o conto Negrinha do Monteiro Lobato, só a leitura dele já valeu a obra. Na sequencia, pretendo publicá-lo aqui no blog integralmente.

Download do Epub aqui

Seguem algumas passagens que me marcaram nos contos...


Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu. [O santo que não acreditava em Deus, João Ubaldo Ribeiro]

Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. [Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá, Bernardo Elis]

Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) [Presépio, Carlos Drummond de Andrade] (Feminismo, mulheres na literatura, o conto completo)

(...) e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. [Tangerine-Girl, Rachel de Queiroz]

O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes. [A moralista, Dinah Sileira de Queiroz]
É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade. [Entre irmãos, José J. Veiga]
(...) e me olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que eu sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?, eu não preciso de ninguém, deixa o cara pensar, na hora de pegar para capar é que eu quero ver. [A força humana, Rubem Fonseca]
Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente. [O burguês e crime, Carlos Heitor Cony]

   Tô morrendo de fome, disse Pereba.
   De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
   Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
   Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
[Feliz ano novo, Rubem Fonseca]
   Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)? [Correspondência completa, Ana Cristina Cesar]

Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. [Guardador, João Antônio]

Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
É claro que não existe a beleza sem que a observe. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) não existem coincidências, mas causalidades necessárias. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor possibilidade de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como a alma, não ocupa propriamente um espaço. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. [Alguma coisa urgentemente, João Gilberto Nol]
A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplêndido que julgamos ser. [Hell’s Angels, Márcia Denser]
Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações? [Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato, Sonia Coutinho]
(...) já passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos. [O japonês dos olhos redondos, Zulmira Ribeiro Tavares]

Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo. [Os mínimos carapinas do nada, Autran Dourado]

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A outra armadilha...

Em outras palavras, apostamos tudo no gozo, sem desconfiar que este poderia nos escravizar. Na verdade, escapamos à repressão imposta às gerações anteriores, mas nos tornamos vítimas do nosso ideário. O homem, forçado a ter uma atividade sexual intensa, e a mulher, para demonstrar liberdade, forçada a dizer sim a todas as propostas masculinas. Insensivelmente, passamos do sexo proibido ao sexo obrigatório. [Del Priore, 2013]



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Como fazer amigos e influenciar pessoas. Dale Carnegie, 1936.

Sempre tive certa reserva quanto à esse livro. Queria e não queria ler. Achava cafona, com um título canastrão que prometia, muito provavelmente, uma obra canastrona, cheia de clichês de auto-ajuda. Mas um dia eu simplesmente comecei a ler, assim, "só pra dar uma olhada", e daí não parei mais. Foi um dos melhores livros que li nos últimos anos, e não é exagero dizer que talvez possa figurar em um top 20 geral das minhas melhores leituras.
Claro que é um livro que também é voltado para o "mundo dos negócios", mas através de uma perspectiva das relações pessoais, reforçando valores como respeito, compreensão e empatia. Ou seja, a obra de Carnegie apresenta uma filosofia de vida aplicável em todas as esferas da vida em sociedade, e uma filosofia da qual sou bastante entusiasta.
Dale Carnegie teve uma origem extremamente humilde, e pouco estudo, o que, muito antes de ser obstáculo, foi a mola propulsora de seu sucesso como orador. Carnegie tornou-se um dos mais bem sucedidos e requisitados palestrantes de todos os tempos. Este livro é um dos frutos de seu trabalho como palestrante e consultor.




         A obra é muito objetiva e apresenta uma didática muito funcional  em que introduz os princípios fundamentais seguidos de exemplos práticos da sua aplicação. É uma daquelas obras que proporcionam aos leitores uma ampliação de sua percepção existencial. Foi um livro que me surpreendeu muito, e, acreditem, apesar deste título um tanto quanto cafona, vale muito a pena lê-lo, e inclusive relê-lo.

Para baixar a versão digital do livro clique aqui

Aqui, elenco alguns dos princípios básicos que Carnegie trabalha:

- Não critique, não condene, não se queixe;
- Faça um elogio honesto e sincero;
- Interesse-se sinceramente pelas outras pessoas;
- Lembre-se de que o nome de uma pessoa é, para ela, o som mais doce e mais importante que existe em qualquer idioma, por isso lembre o nome das pessoas, dê essa consideração à elas;
- Seja um bom ouvinte. Incentive os outros a falar sobre eles mesmos;
- Fale sobre assuntos que interessem a outra pessoa;
- Faça a outra pessoa sentir-se importante, mas faça-o sinceramente;
- O melhor meio de vencer uma discussão é evitá-la;
- Respeite a opinião alheia.
- Nunca diga: "Você está errado".
- Se errar, reconheça o erro imediatamente;
- Procure honestamente ver as coisas pelo ponto de vista alheio;
- Mostre-se simpático às ideias e desejos alheios;
- Fale de seus próprios erros antes de criticar os erros das outras pessoas;
- Não envergonhe as outras pessoas;
- Elogie o menor progresso e também cada novo progresso. Seja "caloroso na sua aprovação e generoso no seu elogio".
- Incentive as outras pessoas.







terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Guardião - Dean Koontz (Lightning, 1988)


Eu me surpreendi muito com este livro, e positivamente. Não fazia ideia de que fosse uma história sobre viagem no tempo, e isso acabou instigando muito minha curiosidade, prendeu muito minha atenção. Sempre desvendando um pouco mais a trama, de pouquinho em pouquinho, fazendo com que o leitor avente hipóteses o tempo inteiro.

Além de uma história de ficção científica, é também um drama. A primeira parte do livro conta a infância de Laura Shane, e é muito emocionante, não no sentido mais clichê da palavra, mas no sentido de soco do estômago mesmo. No sentido de te fazer pensar em situações reais, extremamente tristes e chocantes que acontecem por aí. Koontz revela uma narrativa muito sensível. 
Outro aspecto marcante do livro, são os traços de humor que possui, um humor muito perspicaz, que me fez rir realmente em muitas passagens. 

Destaque para a personagem Thelma Ackerson, melhor amiga de Laura, sua companheira de orfanato na infância e adolescência, que se torna uma bem sucedida comediante. Minha impressão é de que Thelma é uma personagem muito mais interessante do que a própria Laura Shane, com seu humor ácido e natural. 
Eu achei a primeira parte do livro o ponto alto da história. Apesar de toda a ação se desenvolver na segunda parte, é na primeira parte que a trágica trajetória de Laura Shane é narrada, e o espectro de sua personagem construído. 

Outra coisa muito bacana é o posfácio escrito por Koontz em 2003, onde ele desabafa e denuncia os problemas do mercado editorial de livros. Nesse texto, Koontz explica como funciona, quais as regras, e como os escritores sofrem com isso, muitas vezes tendo que modificar suas obras em nome de condições ridículas e sem sentido impostas por toda a cadeia do processo de publicação. 

"Muitos editores se mostram ainda mais satisfeitos com um escritor bem-sucedido quando ele, ou ela, escreve sempre o mesmo livro. [...] A maioria dos editores, embora não sejam todos, acredita que um autor bem-sucedido deve se manter fiel ao mesmo gênero literário, concebendo personagens, tramas e temas que são familiares aos leitores e adotando uma narrativa que reflete essencialmente o mesmo tom, livro após livro. O desejo pela reprodução do mesmo estilo é suscitado pela necessidade do editor desenvolver e manter o mesmo nicho de mercado para o autor, "rotulando-o", assim como a sopa Campbell ou o chocolate Nestlé. No entanto, a verdade é que esse desejo também é estimulado pela convicção da maioria dos editores de que o público é composto por um rebanho de carneiros e cada um pode, e deve, ser conduzido para o mesmo pasto em que esteve anteriormente. [...]
Com exceção dos último anos, a minha relação com os editores tem sido bastante conflituosa ao longo da minha carreira, pois eu acho extremamente monótono produzir o mesmo livro continuamente. Além do mais, os meus romances, em geral, não se enquadram inteiramente em um único gênero literário. Eu escrevo livro intergêneros, suspense misturado com romance e humor, às vezes, insiro algumas colheradas de ficção científica ou terror, e às vezes, um leve toque de páprica...".


É isso pessoal. Esse livro, como praticamente todos do Koontz, não tem disponível em e-book na rede. Mas se quiserem comprar, tem a partir de R$ 8,99 no Estante Virtual, só clicar aqui.


Abraço carinhoso aos leitores do blog. Até!