quarta-feira, 9 de março de 2016

Os cem melhores contos brasileiros do século - Ítalo Moriconi (Seleção), 2001.

   O conto é um gênero literário a parte. É, sobretudo, uma narrativa curta que traz ao leitor, ou melhor, atira-lhe nos peitos algo que choca, algo que o obriga a reflexão, algo que tira-lhe o chão, que inspira a crítica. É rápido e profundo, o bom conto é uma facada. 
   Apesar de alguns contos dos quais não gostei do estilo, outros que não entendi pelo excesso de referências ou alegorias, no balanço geral dos cem, posso dizer que os contos de que gostei foram maioria esmagadora. Essa seleção de contos brasileiros feita por Ítalo Moriconi ficou realmente ótima.
   No mais, o livro tem o mérito de dar um panorama geral da história do conto nacional. É possível perceber as transformações das mentalidades, as transformações tecnológicas da sociedade, espiar os contextos político-econômicos. Além de poder desnudar autores, percebê-los através de seus personagens. 
   Para quem gosta de literatura nacional essa obra figura como uma verdadeira antologia, e ainda introduz ao leitor diversos autores nacionais de quem talvez nunca tenha ouvido falar.

O troféu facada, ou soco no estômago, dessa obra vai para o conto Negrinha do Monteiro Lobato, só a leitura dele já valeu a obra. Na sequencia, pretendo publicá-lo aqui no blog integralmente.

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Seguem algumas passagens que me marcaram nos contos...


Você imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver, que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino, entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade. Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai. Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado, ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta. É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência. Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora, é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu. [O santo que não acreditava em Deus, João Ubaldo Ribeiro]

Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia. [Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá, Bernardo Elis]

Dasdores sente-se livre em meio às tarefas, e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as donas-de-casa.) [Presépio, Carlos Drummond de Andrade] (Feminismo, mulheres na literatura, o conto completo)

(...) e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. [Tangerine-Girl, Rachel de Queiroz]

O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes. [A moralista, Dinah Sileira de Queiroz]
É melhor não dizer, só o que é espontâneo interessa, e a simples hesitação já estraga a espontaneidade. [Entre irmãos, José J. Veiga]
(...) e me olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que eu sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?, eu não preciso de ninguém, deixa o cara pensar, na hora de pegar para capar é que eu quero ver. [A força humana, Rubem Fonseca]
Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente. [O burguês e crime, Carlos Heitor Cony]

   Tô morrendo de fome, disse Pereba.
   De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
   Não conte comigo, disse Pereba. Lembra do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.
   Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
[Feliz ano novo, Rubem Fonseca]
   Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim, você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que a distância e a correspondência alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)? [Correspondência completa, Ana Cristina Cesar]

Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. [Guardador, João Antônio]

Se audiência fosse um pouco mais qualificada, ele discorreria também um pouco mais sobre os problemas do país, que provinham do atraso do povo, a desonestidade e incompetência dos políticos, agravadas pelo gigantismo do Estado. Na intimidade do lar, ele apontava ainda causas como as condições climáticas, uma colonização de degredados e a mistura de raças. Ele era um homem da iniciativa privada numa posição de comando intermediário, embora achasse que ganhava pouco, o que era amenizado pela perspectiva de subir alguns degraus, desde que fosse perseverante e duro até o ponto da inflexibilidade. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
É claro que não existe a beleza sem que a observe. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) não existem coincidências, mas causalidades necessárias. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
(...) um modelo psicanalítico se validava pela maior ou menor possibilidade de um paciente ajustar-se dentro dele, como num pijama de molde adequado, e residiria aí, precisamente, a possibilidade de cura, se se pode falar em cura quando se trata de uma coisa volátil como a mente, que, como a alma, não ocupa propriamente um espaço. [Um discurso sobre o método, Sérgio Sant’Anna]
— Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coisas, inclusive você mesmo. [Alguma coisa urgentemente, João Gilberto Nol]
A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplêndido que julgamos ser. [Hell’s Angels, Márcia Denser]
Do que é feita uma vida humana senão de pequenos ritos, cerimônias e celebrações? [Toda Lana Turner tem seu Johnny Stompanato, Sonia Coutinho]
(...) já passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos. [O japonês dos olhos redondos, Zulmira Ribeiro Tavares]

Quem não tem o que fazer, faz colher de pau e enfeita o cabo. [Os mínimos carapinas do nada, Autran Dourado]

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