sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O amor nos tempos do cólera - Gabriel García Márquez, 1982


Sem dúvida um dos mais belos livros que já li. Nos leva para além da concepção absurda e predominante de que se é jovem pra sempre. Não se é, e nem por isso a vida deixa de ser menos vida. Uma história belíssima e humanamente real. Palmas eternas ao mestre García Marquez.


GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. O amor nos tempos do cólera. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985. 429 p.



"Coisa bem diferente teria sido a vida para ambos se tivessem sabido a tempo que era mais fácil contornar as grandes catástrofes matrimoniais do que as misérias minúsculas de cada dia. Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada." P. 39



"Abalou-a um pensamento vago: "As pessoas que a gente ama deviam morrer com todas as suas coisas."" P. 69



"Lembrou a ele que os fracos não entram jamais no reino do amor, que é um reino impiedoso e mesquinho, e que as mulheres só se entregam aos homens de ânimo resoluto, porque lhes infundem a segurança pela qual tanto anseiam para enfrentar a vida." P. 86



"Está bem, me caso com o senhor se me promete que não me fará comer berinjela." P. 94



"Seu padrinho o homeopata, que participava por casualidade da conversação, não achava que as guerras fossem um inconveniente. Achava que não passavam de pendências de pobres jungidos como bois pelos senhores da terra, contra soldados descalços jungidos pelo governo.
- A guerra está na montanha – disse. – Desde que eu sou eu, nas cidades não nos matam com tiros, e sim com decretos." P. 96-97



"Ela lhe parecia tão bela, tão sedutora, tão diferente da gente comum, que não compreendia que ninguém se transtornasse como ele com as castanholas dos seus saltos nas pedras do calçamento, ou tivesse o coração descompassado com os ares e suspiros de suas mangas, ou não ficasse louco de amor o mundo inteiro com os ventos de sua trança, o vôo de suas mãos, o ouro do seu riso. Não perdera um gesto seu, nem um indício do seu caráter, mas não se atrevia a se aproximar dela pelo medo de desfazer o encanto." P. 129



"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado." P. 134



"Impressionaram-na sua simplicidade e sua seriedade, e a raiva cultivada com tanto amor durante tantos dias se apaziguou de pronto." P. 155



"Na plenitude de suas relações, Florentino Ariza se perguntara qual dos dois estados seria o amor, o da cama turbulenta ou o das tardes aprazíveis dos domingos, e Sara Noriega o tranqüilizou com o argumento singelo de que tudo que fizessem nus era amor. Disse: “Amor da alma da cintura para cima e amor do corpo da cintura para baixo.”" P. 246



" - Por obra e graça de um casamento, de interesse com um homem que não ama – interrompeu Sara Noriega. – É a maneira mais baixa de ser puta." P. 248



"Isso era a vida. O amor, caso houvesse, era uma coisa à parte: uma outra vida." P. 251


"A vida mundana, que tantas incertezas lhe trazia antes de conhecê-la, não passava de um sistema de pactos atávicos, de cerimônias banais, de palavras previstas, com o qual se entretinham uns aos outros na sociedade para não se assassinarem." P. 261



"A vida ainda havia de confrontá-los com outras provas mortais, sem dúvida, mas já não tinha importância: estavam na outra margem." P. 278


"Mas aquela tarde perguntou a si mesmo com sua infinita capacidade de ilusão se uma indiferença tão encarniçada não seria um subterfúgio para dissimular um tormento de amor." P. 284



"- Vou fazer cem anos, e já vi mudar tudo, até a posição dos astros no universo, mas ainda não vi mudar nada neste país – dizia. – Aqui se fazem novas constituições, novas leis, novas guerras cada três meses, mas continuamos na Colônia." P. 329



"Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: “O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.”" P. 334



"Mas a raiva voltava sempre, e em breve percebeu que o desejo de esquecê-lo era o mais forte estímulo para se lembrar dele." P. 349



“A humanidade, como os exércitos em campanha, avança na velocidade do mais lento.” 385



"Sem perceber, começava a protelar seus problemas na esperança de que a morte os resolvesse." P. 390

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Morangos mofados - Caio Fernando Abreu, 1982


ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. 145 p.


OS SOBREVIVENTES
(Para ler ao som de Ângela Ro-Ro)
Para Jane Araújo, a Magra
Sri Lanka, quem sabe? ela me pergunta, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? Uma certa saudade, e você em Sri Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodca nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha-de-centro em junco indiano que apóia nossos fatigados pés descalços ao fim de mais outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sociopolíticos existenciais e bababá em comum só podiam era dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta Que foi que aconteceu, que foi meu deus que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro e não queria lembrar, mas não me saía da cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, e não sei se você acreditou. Eu quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanto tesão mental espiritual moral existencial e nenhum físico, eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, eu enfiava fundo o dedo na boceta noite após noite e pedia mete fundo, coração, explode junto comigo, me fode, depois virava de bruços e chorava no travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, meu bem, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo o nome da fanchona? Vita, isso, Vita Sackville-West e o veado do marido dela, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados não, me passa a vodca, o quê? e eu lá tenho grana para comprar wyborowas? não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral não tenho nada contra qualquer coisa que soe a uma tentativa. Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha angst, saco, mas ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, ah não me venha com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda, burra, alienada e completamente feliz. Podia ter dado certo entre a gente, ou não, eu nem sei o que é dar certo, mas naquele tempo você ainda não tinha se decidido a dar o rabo nem eu a lamber boceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castafieda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50 em Paris, 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun little darling, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54,80 a gente aqui mastigando esta coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem esquecer esse azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê? não é plágio do Pessoa não, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesusinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, na beira do rio, deve haver uma porra de rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, sabe, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos, fiz seis anos de análise, já pirei de clínica,lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário & positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, voltei a isso que dizem que é o normal, e cadê a causa, meu, cadê a luta, cadê o po-ten-ci-al criativo? Mato, não mato, atordôo minha sede com sapatinhas do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, neste apartamento que pago com o suor do po-ten-ci-al criativo da bunda que dou oito horas diárias para aquela multinacional fodida. Mas, eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, e eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca que só umedece com vodca, me passa o cigarro, não, não estou desesperada, não mais do que sempre estive, nothing special, baby, não estou louca nem bêbada, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, ah não se preocupe, meu bem, depois que você sair tomo banho frio, leite quente com mel de eucalipto, gin-seng e lexotan, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a banchá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o cvv às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas tipo preciso-tanto-uma-razão-para-viver-e-sei-que-essa-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá e me lamurio até o sol pintar atrás daqueles edifícios sinistros, mas não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma? Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede, preciso tanto tanto tanto, cara, eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e velha demais e completamente bêbada, eu não tinha estas marcas em volta dos olhos, eu não tinha estes vincos em torno da boca, eu não tinha este jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que nada, que ela está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho ao acaso o noturno número dois em mi bemol de Chopin, eu quero deixá-la assim, dormindo no escuro sobre este sofá amarelo, ao lado das papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta e pede que eu ponha Ângela outra vez, e eu viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois abraçados, fragmentos azedos sobre as línguas misturadas, mas ela puxa a descarga e vai me empurrando para a sala, para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor repetindo não se esqueça então de me mandar aquele cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita com você, ela diz, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez, que leve para longe da minha boca este gosto podre de fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Por trás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Ângela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo e repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto até que o elevador chegue axé, axé, axé, odara!
p. 13-18


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ALÉM DO PONTO
Para Lívio Amaral
“Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse o táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos, beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos”. P. 34
[...] não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. P. 35


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TERÇA-FEIRA GORDA
Para Luiz Carlos Góes
“Eu era só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também”. P. 46

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EU, TU, ELE
Para Raquel Salgado
“Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar”. P. 53

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TRANSFORMAÇÕES
(Uma fábula)
Para Domingos Lalaiana Jr.
“Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim”. P. 66

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SARGENTO GARCIA
À memória de Luiza Felpuda
“Para onde ia a parte das coisas que não cabia na própria coisa? Para o fundo do meu olho, esperando o ofuscamento para vir à tona outra vez? Ou entre as próprias coisas-coisas, no espaço vazio entre o fim de uma parte e o começo de outra pequena parte da coisa inteira? Como um por trás do real, feito espírito de sombra ou luz, claro-escuro escondido no mais de-dentro de um tronco de árvore ou no espaço entre um tijolo e outro ou no meio de dois fiapos de nuvem, onde?” p. 77

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NATUREZA VIVA
Para Orlando Bernardes
“[...] as pessoas falam coisas, e por trás do que falam há o que sentem, e por trás do que sentem há o que são e nem sempre se mostra”. P. 103


“Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, noites afora, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele”. P. 106-107

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A convidada - Simone de Beauvoir - 1943


Grande obra da Simone de Beauvoir. Esse foi seu primeiro livro, publicado em 1943. Realmente um livro e tanto. Ela consegue dissecar a alma humana, tanto a masculina, quanto a feminina, mostrando que são, sim, bastante diferentes. Entretanto, essas diferenças entre homens e mulheres apenas deveriam servir pra nutrir relações de extremo respeito e admiração mútua. Seu romance é fortemente inundado por passagens filosóficas e reflexivas, abordando limiares bastante frágeis da mente humana. Dotada de um realismo fantástico e genuíno, a obra nos dá a sem preço perspectiva feminina sobre assuntos delicados e polêmicos, sobretudo a de uma mulher com profundo vigor intelectual como Simone, que desde sempre se propôs a questionar valores e convenções sociais, especialmente em relação às mulheres. É uma romance tenso, bastante existencial, que muitas vezes faz com que fiquemos vagando pelos limites da consciência humana.
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“E eu estou aqui, no coração da minha vida”. P. 13

“É divertido pensar em como são as coisas em nossa ausência [...] É como tentar pensar que estamos mortos. Na verdade nunca o conseguimos; sempre achamos que estamos num canto, vendo tudo”. P. 14

“Continuo a pensar, apesar de tudo, que não sou feita da massa com que se constroem as vítimas”. P. 56

“Você, no fundo, está procedendo como todas as pessoas que afirmam não ter preconceitos: pretendem que só obedecem por gosto pessoal. Mas tudo isso são histórias”. P. 57

“Não é a mentira que me incomoda. O que acho monstruoso é que as pessoas tomem decisões sobre elas próprias dessa forma, como por decreto”. P. 67

“[...] O dia passara a espera dessas horas e agora elas corriam vazias e constituíam apenas uma espera [...] Tudo, afinal, era uma corrida sem objetivo. Somos lançados indefinidamente para o futuro, mas quando este se torna presente, é preciso fugir”. P. 90

“Para você, a colaboração intelectual consiste numa aprovação idiota de todas as suas opiniões”. P. 95

“Talvez seja porque amo demais. Quis dar mais do que aquilo que você podia receber. E, quando somo sinceros, dar é uma maneira de exigir”. P. 97

“[...] se os remorsos apagassem tudo, as coisas seriam muito fáceis”. P. 129

“Ora, uma decisão, quando começamos a duvidar dela, torna-se perturbadora”. P. 153

“Não há nada, em parte alguma, que se deva invejar, lamentar ou temer. O passado, o futuro, o amor, a felicidade, tudo isso não passa de sons que emitimos com a boca”. P. 155

“As palavras nada mais podem fazer do que nos aproximar do mistério, sem o tornarem menos impenetrável”. P. 159

“O amor não é um segredo vergonhoso. Parece-me uma fraqueza não querer olhar de frente o que se passa dentro de nós”. P. 244

“[...] só poderemos lutar contra a sociedade de maneira social”. P. 282

“Se eu tivesse verdadeiramente importância para alguém, talvez conseguisse valer um pouco mais para mim próprio. Assim, não chego a dar valor à minha vida nem a meus pensamentos”. P. 313

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Referência:
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BEAUVOIR, Simone de. A convidada. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986. 488 p.
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quinta-feira, 21 de maio de 2009

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes (Parte I e II - 1605/1615)







Sempre tive certa relutância com esses “super-clássicos”. Seja porque alguns não me disseram nada ou pela linguagem superultramegarebuscada de outros, enfim. Sem falar naqueles em que, de um parágrafo, dez palavras têm de ser pesquisadas no dicionário. Claro que nada disso impede a leitura, mas convenhamos que seja preciso estar inspirado para resolver pegar o livro. Ler no metrô? Absolutamente impossível. Peguei o Quixote porque, além de ser um clássico, muitos professores de História já haviam falado dele. Então resolvi me aventurar. Para minha surpresa foram novecentas e tantas páginas muito agradáveis de ler, além de ter substancialmente enriquecido meu vocabulário e, claro, meu referencial dos séculos XVI e XVII. Realmente RI em muitas passagens, é difícil fazer isso com livros. De repente, você se pega rindo indefinidamente de algo no livro, e é uma sensação muito particular. Recomendo esta edição que li porque reúne as duas partes e também porque possui belíssimas gravuras do grande artista Gustave Doré que realmente incitam a imaginação. A edição também possui um prefácio dedicado a história do autor Miguel de Cervantes, que teve uma vida bastante tempestuosa e irônica. Então, para quem quiser se aventurar, lá vai meu incentivo. 


Referência Bibliográfica:

CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960. 1149 p.



Aqui vão algumas passagens selecionadas:


“[...] e pior fora ainda o perigo de se fazer poeta, que, segundo dizem, é enfermidade incurável e pegadiça”. p. 107


“[...] coisa mal feita e piormente pensada, por deverem ser os historiadores muito pontuais, verdadeiros, e nada apaixonados, sem que nem interesse, nem temor, nem ódio, nem afeição, os desviem do caminho direito da verdade, que é a filha legítima de quem historia, êmula do tempo, depósito dos feitos, testemunha do passado, exemplo e conselho do presente, e ensino do futuro”. p. 126


“Não eram seus adornos, como os que ao presente se usam, exagerados, com a púrpura de Tiro, e com a por tantos modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecida; com o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem ensinado. Então expressavam-se os conceitos amorosos da alma simples, tão singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinha ainda misturado a fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha-se nos seus limites próprios, sem que ousassem turbá-la nem ofendê-la o favor e interesse, que tanto hoje a enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz o julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para serem julgadas”. p. 136


"A tua falsa promessa, e aminha certa desventura me levam a sítios donde antes chegarão aos teus ouvidos novas da minha morte, do que as razões das minhas queixas. Deixaste-me, ó ingrata, por quem tem mais; porém não vale mais do que eu; mas, se a virtude fôra riqueza que se estimasse, não invejara eu ditas alheias, nem chorara desditas próprias. O que levantou a tua formosura hão-no derribado as tuas obras. Por ela entendi que eras anjo, e por elas reconheço que és mulher. Fica-te em paz, causadora da minha guerra, e o céu permita que os enganos do teu esposo te fiquem sempre encobertos, para que tu não fiques para sempre arrependida do que fizeste, e eu não tome vingança do que não desejo". p. 232


"A pena é ainda mais livre que a fala para bem expressar mistérios do coração". p. 241


"Sucedeu o que é de costume; nos moços o amor quase nunca o é; é sim um apetite, que, por se não endereçar senão ao deleite, apenas o obtém, logo diminiu e acaba. São estes uns limites postos pela própria natureza aos falsos amores; os verdadeiros seguem outra regra; estes duram sempre". p. 242


"[...] a virtude mais é perseguida pelos maus, do que amada pelos bons". p. 464


"Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam". p. 518


"— Senhor, as tristezas não se fizeram para os brutos, e sim para os homens; mas se os homens sentem demasiadamente, embrutecem". p. 582


"[...] e ainda que a da poesia é menos útil do que deleitosa, não é das que desonram os que a possuem. A poesia, no meu entender, senhor fidalgo, é como uma donzela meiga, juvenil e formosíssima, que se desvelam em enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e todas com ela se hão-de autorizar; mas esta donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada nas esquinas das praças, nem pelos desvãos dos palácios. É feita por uma alquimia de tamanha virtude, que quem souber tratá-la pode mudá-la em ouro puríssimo". p. 616


"[...] o vinho em excesso, nem guarda segredos, nem cumpre promessas". p. 790


"[...] pelas obras se revela a vontade de quem as pratica". p. 922


"As esperanças duvidosas devem fazer os homens atrevidos, mas não temerários". p. 931




quinta-feira, 23 de abril de 2009

Feliz Ano Novo - 1975. Rubem Fonseca.


Feliz Ano Novo foi minha primeira leitura de Rubem Fonseca e, pra ser honesta, eu realmente estava virgem de qualquer expectativa a seu respeito, pois não sabia exatamente o gênero ou impressões na sua escrita. Poderia ir correndo no Google e achar alguns parágrafos definindo o autor, mas não o quis fazer. O que, creio, ter sido positivo. É um livro de contos, e, aos primeiros viajantes, sim, a primeira história, que intitula o livro inclusive, é bastante visceral, despida de qualquer escrúpulo moral ou lingüístico, como a própria vida, diga-se. Os livros, de certa forma, servem para nos transportar a outras realidades que não a nossa. Rubem nos transporta para outras realidades, todavia, são outras não por não estarmos nelas, são outras porque teimamos em negá-las como nossas.
Aqui vão alguns trechos:
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Feliz Ano Novo:
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Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Corações Solitários:

Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defender é você mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça escândalo. Você não tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve. Te vira, gordinha.

Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer se não gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um homem sincero. Tu não és groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua.

Botando pra quebrar:

[...] o mundo estava cheio de otários que engoliam qualquer porcaria desde que o preço fosse caro.

Passeio Noturno
Parte II

A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.

Dia dos namorados:

Quando nasci me chamaram de Paulo, que é nome de papa, mas virei Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.

Agruras de um jovem escritor:

Era estudante de enfermagem, mas gostava mesmo era de cinema e poesia. Fernando Pessoa, Drummond, Camões (o lírico), aquela coisa manjada de sempre, Fellini, Godard, Buñuel, Bergman, sempre a mesma coisa, raios, sempre as mesmas figuras.

José, meu grande amor, adeus. Não posso obrigá-lo a me amar com o mesmo fervor que lhe dedico. Tenho ciúmes de todas as lindas mulheres que vivem à sua volta tentando seduzi-lo; tenho ciúmes das horas que você passa escrevendo o seu importante romance. Oh, sim, amor da minha vida, sei que o escritor precisa de solidão para criar, mas esta minh’alma mesquinha de mulher apaixonada não se conforma em partilhar você com outra pessoa ou coisa.

- E você? Sou assassino de mulheres – podia ter dito, sou escritor, mas isso é pior do que ser assassino, escritores são amantes maravilhosos por alguns meses apenas e maridos nojentos pela vida afora.
Intestino Grosso:

Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.

Já foi dito que o que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita.

O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.

Os filósofos dizem que o que perturba e alarma o homem não são as coisas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito delas, pois o homem vive num universo simbólico, e linguagem, mito, arte, religião são partes desse universo, são as variadas linhas que tecem a rede entrançada da experiência humana.

Meu slogan podia ser, também, aodte um animal selvagem e mate um homem. Isso não porque odeie, mas ao contrário, por amar meus semelhantes. Apenas tenho medo de que os seres humanos se transformem primeiro em devoradores de insetos e depois em insetos devoradores. Em suma, tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo, criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo, para os filhos comerem. Aliás é chegado o momento de fazermos, nós os artistas e escritores, um grande movimento cultural e religioso universal, no sentido de se criar o hábito de nos alimentarmos também com a carne dos nossos mortos, Jesus, Alá, Maomé, Moisés, envolvidos na campanha. Está havendo um terrível desperdício de proteínas. Swift e outros já disseram coisa parecida, mas estavam fazendo sátira. O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica, o Canibalismo Místico.”

Para cada Central Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da bomba explodir.

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Cem anos de solidão


A saga dos Buendía, ao longo dos cem anos de sua existência, é um misto de antropologia e imaginação. A obra Cem anos de solidão, do autor espanhol Gabriel García Marquez traz incrustadas em si as marcas do realismo fantástico quando fala em tapedes voadores, chuvas de 4 anos ou mulheres de mais de 140 anos, como o caso de Pilar Ternera. Contudo, estripa das profundezas do ser humano seu universo mais cru e verdadeiro. Desprendido das amarras do convencionalismo, o autor naturaliza acontecimentos que muitas vezes nem sonhamos em conceber dentro de nossos muros de moralidade.


Os processos de urbanização e politização de Macondo também podem nos servir como uma projeção de modelos destes mesmos processos correntes na sociedade. A guerra também tem seu espaço garantido sendo explorada de forma sarcástica e fatídica. Separei algumas passagens do texto relatadas a seguir e grifei partes ou expressões que achei interessante:


"José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo de casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
- A terra é redonda como uma laranja".
(p. 10)

"Não conseguiram que comesse, durante vários dias. Ninguém entendia como não tinha morrido de fome, até que os índios, que percebiam tudo, descobriram que Rebeca só gostava de comer a terra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das paredes com as unhas".
(p. 43)

"Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpatizava com a atitude liberal, no que se refere aos direitos dos filhos naturais, mas, de qualquer maneira, não entendia como se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não se podiam tocar com as mãos".
(P. 89/90)
"- Lembre-se, compadre – disse a ele – que não sou eu quem o está fuzilando, e sim a revolução.
O General Moncada nem sequer se levantou do catre ao vê-lo entrar.
- Vá à merda, compadre – respondeu.
Até aquele momento, desde a sua volta, o Coronel Aureliano Buendía não se permitira uma oportunidade de olhá-lo com o coração. Assombrou-se de quanto tinha envelhecido, do tremor de suas mãos, da resignação um pouco rotineira com que esperava a morte, e então experimentou um profundo desprezo por si mesmo, que confundiu com um princípio de misericórdia.
- Você sabe melhor que eu – disse – que todo tribunal de guerra é uma farsa, e que na verdade você vai pagar os crimes dos outros, porque desta vez nós vamos ganhar a guerra a qualquer preço. Você no meu lugar não teria feito a mesma coisa?
O General Moncada endireitou o corpo para limpar os grossos óculos de tartaruga com as fraldas da camisa. “Provavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile, porque afinal para gente como nós esta é a morte natural”. Colocou os óculos sobre a cama e tirou o relógio de bolso. “O que me preocupa – acrescentou – é que de tanto odiar os militares, de tato combatê-los, de tanto pensar neles, você acabou por ficar igual a eles. E não há ideal na vida que mereça tanta baixeza”. Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remedios e pôs junto com os óculos e o relógio.
- Nesse ritmo – concluiu – você não só será o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história, como também acabará por fuzilar a minha comadre Úrsula, tentando apaziguar a sua consciência".
(P. 145/146)

"Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos iguais entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares.
- Quer dizer – sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura – que só estamos lutando pelo poder.
- São reformas táticas – respondeu um dos delegados. – No momento, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois se vê.
Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir.
- É um contra-senso – disse. – Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base popular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação.
Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o interrompeu com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento lutamos pelo poder”. Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entregaram os delegados e se dispôs a assinar.
- Já que é assim – concluiu – não temos nenhum inconveniente em aceitar.
Os seus homens se olharam consternados.
- Desculpe, coronel – disse suavemente o Coronel Gerineldo Márquez – mas isto é uma traição.
O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso da sua autoridade.
- Entregue as suas armas – ordenou.
O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as armas na mesa.
- Apresente-se no quartel – ordenou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. – O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários.
Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emissários, dizendo:
- Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele.
Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusado de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na rede, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de clemência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Úrsula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, permaneceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo – disse serenamente – e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos”. Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu:
- É a mesma coisa que teria feito se você tivesse nascido com rabo de porco.
Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade".
(P. 153/154)

"Muito em breve se soube que o padre Antonio Isabel o estava preparando para a primeira comunhão. Ensinava-lhe o catecismo enquanto raspava o pescoço dos galos. Explicava com exemplos simples, enquanto colocavam nos ninhos as galinhas chocas, como ocorrera a Deus, no segundo dia da criação, que os pintos se formassem dentro do ovo. Já então o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que provavelmente o diabo tinha ganho a rebelião contra Deus e que era aquele quem estava sentado no trono celeste sem revelar a sua verdadeira identidade para enganar os incautos".
(P. 169)

"Realmente, Remedios, a bela, não era um ser deste mundo. Até com a puberdade já bem avançada, Santa Sofía de La Piedad teve de lhe dar banho e mudar de roupa, e mesmo quando se pode valer sozinha, tinha que vigiá-la para que não pintasse animaizinhos nas paredes, com uma varinha lambuzada com o seu próprio cocô. Atingiu os vinte anos sem aprender ler e escrever, sem se servir dos talheres na mesa, passeando nua pela casa, porque a sua natureza reagia contra qualquer espécie de convencionalismo".
(P. 179)



"Não fale de política”, dizia-lhe o coronel. “O que nos interessa é vender peixinhos”. O falatório público de que não queria mais saber da situação do país porque estava ficando rico com a oficina, provocou as gargalhadas de Úrsula, quando chegou aos seus ouvidos. Com o seu incrível senso prático, ela não podia entender o comércio do coronel, que trocava os peixinhos por moedas de ouro, e em seguida transformava as moedas de ouro em peixinhos, e assim sucessivamente, de modo que tinha que trabalhar cada vez mais à medida que vendia, para satisfazer um círculo vicioso exasperante. Na verdade, o que interessava a ele não era o negócio e sim o trabalho. Precisava de tanta concentração para engastar escamas, incrustar minúsculos rubis nos olhos, laminar barbatanas e montar nadadeiras que não sobrava um só vazio para encher com a desilusão da guerra. Tão absorvente era a atenção que lhe exigia o preciosismo da artesania que em pouco tempo envelheceu mais do que em todos os anos de guerra, e a posição lhe entortou a espinha dorsal e a milimetria lhe gastou a vista, mas a concentração implacável o premiou com a paz de espírito".
(P. 180/181)

"Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. “É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria”".
(P. 193)


"Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação, atrás do cemitério".
(P. 204)

"A outra guerra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento".
(P. 217)

"Os últimos veteranos de quem se teve notícia apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória".
(P. 218)


"Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de perder alguma coisa. De modo que quando ouviu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcanças: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisa perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las".
(P. 221)

"Fechou-se com tranca dentro de si mesmo..."
(P. 234)


"A leitura ocupou a atenção que antes destinava aos fuxicos de namoro ou aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse como disciplina, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comentar mistérios que eram do domínio público".
(P. 244/245)


"Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se transformou numa nova forma de silêncio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofía de La Piedad".
(P. 276)