quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Cem anos de solidão


A saga dos Buendía, ao longo dos cem anos de sua existência, é um misto de antropologia e imaginação. A obra Cem anos de solidão, do autor espanhol Gabriel García Marquez traz incrustadas em si as marcas do realismo fantástico quando fala em tapedes voadores, chuvas de 4 anos ou mulheres de mais de 140 anos, como o caso de Pilar Ternera. Contudo, estripa das profundezas do ser humano seu universo mais cru e verdadeiro. Desprendido das amarras do convencionalismo, o autor naturaliza acontecimentos que muitas vezes nem sonhamos em conceber dentro de nossos muros de moralidade.


Os processos de urbanização e politização de Macondo também podem nos servir como uma projeção de modelos destes mesmos processos correntes na sociedade. A guerra também tem seu espaço garantido sendo explorada de forma sarcástica e fatídica. Separei algumas passagens do texto relatadas a seguir e grifei partes ou expressões que achei interessante:


"José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo de casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
- A terra é redonda como uma laranja".
(p. 10)

"Não conseguiram que comesse, durante vários dias. Ninguém entendia como não tinha morrido de fome, até que os índios, que percebiam tudo, descobriram que Rebeca só gostava de comer a terra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das paredes com as unhas".
(p. 43)

"Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpatizava com a atitude liberal, no que se refere aos direitos dos filhos naturais, mas, de qualquer maneira, não entendia como se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não se podiam tocar com as mãos".
(P. 89/90)
"- Lembre-se, compadre – disse a ele – que não sou eu quem o está fuzilando, e sim a revolução.
O General Moncada nem sequer se levantou do catre ao vê-lo entrar.
- Vá à merda, compadre – respondeu.
Até aquele momento, desde a sua volta, o Coronel Aureliano Buendía não se permitira uma oportunidade de olhá-lo com o coração. Assombrou-se de quanto tinha envelhecido, do tremor de suas mãos, da resignação um pouco rotineira com que esperava a morte, e então experimentou um profundo desprezo por si mesmo, que confundiu com um princípio de misericórdia.
- Você sabe melhor que eu – disse – que todo tribunal de guerra é uma farsa, e que na verdade você vai pagar os crimes dos outros, porque desta vez nós vamos ganhar a guerra a qualquer preço. Você no meu lugar não teria feito a mesma coisa?
O General Moncada endireitou o corpo para limpar os grossos óculos de tartaruga com as fraldas da camisa. “Provavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile, porque afinal para gente como nós esta é a morte natural”. Colocou os óculos sobre a cama e tirou o relógio de bolso. “O que me preocupa – acrescentou – é que de tanto odiar os militares, de tato combatê-los, de tanto pensar neles, você acabou por ficar igual a eles. E não há ideal na vida que mereça tanta baixeza”. Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remedios e pôs junto com os óculos e o relógio.
- Nesse ritmo – concluiu – você não só será o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história, como também acabará por fuzilar a minha comadre Úrsula, tentando apaziguar a sua consciência".
(P. 145/146)

"Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos iguais entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares.
- Quer dizer – sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura – que só estamos lutando pelo poder.
- São reformas táticas – respondeu um dos delegados. – No momento, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois se vê.
Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir.
- É um contra-senso – disse. – Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base popular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação.
Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o interrompeu com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento lutamos pelo poder”. Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entregaram os delegados e se dispôs a assinar.
- Já que é assim – concluiu – não temos nenhum inconveniente em aceitar.
Os seus homens se olharam consternados.
- Desculpe, coronel – disse suavemente o Coronel Gerineldo Márquez – mas isto é uma traição.
O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso da sua autoridade.
- Entregue as suas armas – ordenou.
O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as armas na mesa.
- Apresente-se no quartel – ordenou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. – O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários.
Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emissários, dizendo:
- Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele.
Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusado de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na rede, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de clemência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Úrsula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, permaneceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo – disse serenamente – e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos”. Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu:
- É a mesma coisa que teria feito se você tivesse nascido com rabo de porco.
Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade".
(P. 153/154)

"Muito em breve se soube que o padre Antonio Isabel o estava preparando para a primeira comunhão. Ensinava-lhe o catecismo enquanto raspava o pescoço dos galos. Explicava com exemplos simples, enquanto colocavam nos ninhos as galinhas chocas, como ocorrera a Deus, no segundo dia da criação, que os pintos se formassem dentro do ovo. Já então o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que provavelmente o diabo tinha ganho a rebelião contra Deus e que era aquele quem estava sentado no trono celeste sem revelar a sua verdadeira identidade para enganar os incautos".
(P. 169)

"Realmente, Remedios, a bela, não era um ser deste mundo. Até com a puberdade já bem avançada, Santa Sofía de La Piedad teve de lhe dar banho e mudar de roupa, e mesmo quando se pode valer sozinha, tinha que vigiá-la para que não pintasse animaizinhos nas paredes, com uma varinha lambuzada com o seu próprio cocô. Atingiu os vinte anos sem aprender ler e escrever, sem se servir dos talheres na mesa, passeando nua pela casa, porque a sua natureza reagia contra qualquer espécie de convencionalismo".
(P. 179)



"Não fale de política”, dizia-lhe o coronel. “O que nos interessa é vender peixinhos”. O falatório público de que não queria mais saber da situação do país porque estava ficando rico com a oficina, provocou as gargalhadas de Úrsula, quando chegou aos seus ouvidos. Com o seu incrível senso prático, ela não podia entender o comércio do coronel, que trocava os peixinhos por moedas de ouro, e em seguida transformava as moedas de ouro em peixinhos, e assim sucessivamente, de modo que tinha que trabalhar cada vez mais à medida que vendia, para satisfazer um círculo vicioso exasperante. Na verdade, o que interessava a ele não era o negócio e sim o trabalho. Precisava de tanta concentração para engastar escamas, incrustar minúsculos rubis nos olhos, laminar barbatanas e montar nadadeiras que não sobrava um só vazio para encher com a desilusão da guerra. Tão absorvente era a atenção que lhe exigia o preciosismo da artesania que em pouco tempo envelheceu mais do que em todos os anos de guerra, e a posição lhe entortou a espinha dorsal e a milimetria lhe gastou a vista, mas a concentração implacável o premiou com a paz de espírito".
(P. 180/181)

"Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. “É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria”".
(P. 193)


"Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação, atrás do cemitério".
(P. 204)

"A outra guerra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento".
(P. 217)

"Os últimos veteranos de quem se teve notícia apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória".
(P. 218)


"Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de perder alguma coisa. De modo que quando ouviu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcanças: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisa perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las".
(P. 221)

"Fechou-se com tranca dentro de si mesmo..."
(P. 234)


"A leitura ocupou a atenção que antes destinava aos fuxicos de namoro ou aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse como disciplina, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comentar mistérios que eram do domínio público".
(P. 244/245)


"Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se transformou numa nova forma de silêncio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofía de La Piedad".
(P. 276)





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