sexta-feira, 4 de junho de 2010

O lobo da estepe - Hermann Hesse, 1927



Todo mundo, em dados momentos, já se sentiu um pouco "lobo da estepe", fato que caracteriza o primeiro gancho que nos mantém presos ao livro. O lobo da estepe é existencialismo puro, e existencialismo do melhor. Embora o livro tenha em si um caráter um tanto quanto dramático, ainda assim nos inspira uma sensação de profunda esperança. A impressão que tive é a de ser levada ao fundo do poço, à decadência e ao desânimo mais profundos de um ser humano e, depois, quase que vertiginosamente, ascender ao mais belo e verdadeiro sentimento de esperança. É um livro muitíssimo curto em relação à tudo o que ele nos ensina, e ao enorme horizonte que nos abre. 




HESSE, Hermann. O lobo da estepe. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. 200 p. 

Quando se falava com ele e, o que era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, de vez que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade. P. 6

... o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! Lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: “Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!” E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas momices! P. 7

O ocupante daquele quarto devia ser um erudito; com isso concertava bem o cheiro de cigarro que impregnava todo o ambiente e as pontas caídas no chão e cinzeiros espalhados por toda a parte. Entretanto, a maior parte dos livros não era de conteúdo científico, mas obras de poetas de todos os tempos e países. P. 10

Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, tem sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças. O verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana a reside ali onde se chocam duas culturas ou duas religiões.. Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda a salvação e inocência ficam perdidos para ela. P. 19

AH! É difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tantos anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível. P. 26

... quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. P. 40

... é necessário esclarecer que não se devem considerar suicidas somente aqueles que se matam. Entre estes há suicidas que só o chegaram a ser por mero acaso, e de cuja essência do suicídio não fazem realmente parte. Entre os homens sem personalidade, sem características definidas, sem destino traçado, entre os homens incapazes e amorfos, há muitos que perecem pelo suicídio, sem por isso pertencerem ao tipo dos suicidas, ao passo que há muitos que devem ser considerados suicidas pela própria natureza de seu ser, os quais, talvez a maioria, nunca atentaram efetivamente contra a própria vida. P. 45

O "burguês, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tente plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável.
O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
E compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios.
Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê? A resposta é a seguinte: Por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders* que, em conseqüência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. P. 49-50

Viver intensamente só se consegue à custa do eu. P. 49

O homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das lentes de fórmulas enganosas e simplistas — especialmente a si próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. P. 54

... o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus... P. 55

O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. P. 56

Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas... P. 57

Religião e pátria, família e Estado careciam de significação para mim e já nada me importava; a presunção da ciência, das profissões, das artes me causava asco; meus pontos de vista, meu gosto, todo o meu pensamento, com o que em outras épocas brilhara como homem bem conceituado, tudo estava agora abandonado e embrutecido e causava suspeita a muita gente. Se em todas as minhas dolorosas transmutações adquirira algo de indizível e imponderável, caro tivera de pagá-lo, e em cada uma delas minha vida se tornara mais dura, mais difícil, mais solitária e perigosa. P. 64

Minha resolução de morrer não era o produto do humor de uma hora, era um fruto maduro e são, que havia sazonado lentamente até atingir a plenitude, embalado pelo vento do destino cujo próximo sopro haveria de deitá-lo ao chão. P. 65

Seria descoberto, talvez muito em breve, pois não só as imagens e acontecimentos presentes e momentâneos poderiam chegar continuamente até nós, como a música de Paris ou de Berlim se faz agora audível em Frankfurt ou em Munique, mas também tudo o que já aconteceu fica registrado e pode tornar-se atual; e que um dia, com fios ou sem eles, com ou sem ruídos, chegaremos a ouvir a voz do rei Salomão ou a de Walter Von der Vogelwide. E que tudo isto, como hoje os primórdios do rádio, só servirá ao homem para fugir de si mesmo e de sua meta e envolver-se numa rede cada vez mais cerrada de distrações e ocupações inúteis. P. 95

Não compreende, meu ilustre senhor, que eu lhe agrado e tenho importância para você exatamente por ser como um espelho seu, porque dentro de mim há algo que responde e compreende o seu ser? Na verdade, todos os homens deveriam ser espelhos uns dos outros e responder-se e compreender-se mutuamente; mas os corujões como você são um tanto estranhos e caem facilmente no engano de acreditar que não podem mais ler nem ver nada nos olhos dos demais, que isso já não lhes diz respeito. E quando um corujão encontra de repente um rosto que o contempla de verdade, sente nele algo assim como uma resposta e um parentesco, e se alegra, naturalmente. P. 99

Mas pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros. P. 102

Quer fosse alta perspicácia quer simples ingenuidade, quem vivia assim tão no presente e sabia apreciar tão cuidadosa e amigavelmente cada florzinha do caminho, estava acima de tudo e a vida nada podia contra ela. P. 102

— Bem, na minha opinião não há nenhum sentido em falar-se a respeito de música. Nunca falo sobre isto. Que responder, então, às suas observações eruditas e judiciosas? O senhor tem toda a razão naquilo que afirma. Mas, veja, eu sou um músico, não um erudito, e no que diz respeito à música acho que não há a menor importância em estar alguém com a razão. A música não depende de estarmos com razão, de termos bom gosto ou erudição musical e tudo o mais.
— Ah, não? E de que depende então?
— De se fazer música, Sr. Haller, de se fazer música tão boa e tão abundante quanto possível e com toda a intensidade de que alguém é capaz. Aí é que está a coisa, Monsieur. Ainda que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as coisas mais admiráveis a respeito delas, isto não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e toco um shitnmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue. Isto e somente isto é o que importa. Observe a fisionomia dos pares num salão de dança no momento em que a música volta a tocar após uma pausa prolongada, observe como os olhos brilham, como as pernas se movem e os rostos começam a sorrir. É por isso que se faz música.
— Muito bem, Sr. Pablo. Mas não é só a música sensual que existe, existe também a espiritual. Além daquela música que se executa no momento, existe a música imortal que sobrevive mesmo quando já não é interpretada. Pode estar uma pessoa sozinha deitada e vir lhe ao pensamento um trecho da Flauta Mágica ou da Paixão Segundo Mateus, então a música se faz realidade sem que alguém precise de soprar a flauta ou de arranhar o violino.
— Sem dúvida, Sr. Haller. Também o Yearning e Valencia são reproduzidos cada noite por muitas pessoas solitárias e sonhadoras; até a mais humilde datilografa tem na cabeça, quando está no escritório, os ritmos do último one-step e acompanha no teclado o seu compasso. O senhor tem razão. A todas essas pessoas solitárias eu concedo a música muda, seja ela o Yearning, seja a Flauta Mágica ou Valencia. Mas, de onde recebem, porém, esses homens a música solitária e muda? Recebem-na de nós, dos músicos, pois primeiro ela tem de ser executada e ouvida e penetrar no sangue, antes que alguém possa pensar nela sozinho em seu quarto e com ela sonhar.
— De acordo — disse friamente. — No entanto, não se pode colocar no mesmo plano a música de Mozart e o último foxtrote. E não é a mesma coisa servir ao público música divina e eterna ou música barata e efêmera.
Quando Pablo percebeu a excitação de minha voz, assumiu a expressão facial mais amável, tocou-me o braço e falou com incrível doçura:
— Ah! meu caro senhor, nisto dos planos pode ser que o senhor tenha toda a razão.
Nada tenho a objetar que coloque Mozart, Haydn e Valentia no plano que melhor lhe agrade. A mim pouco importa. Nada tenho de decidir sobre tais planos, nunca me perguntaram nada sobre eles. É possível que continuem a executar Mozart daqui a cem anos e talvez daqui a dois anos já nenhuma orquestra toque Valencia, mas isso podemos deixar tranqüilamente nas mãos de Deus. Ele é justo e tem em suas mãos a duração da vida de todos nós, até mesmo de cada valsa e de cada foxtrote. Ele saberá fazer o que é justo. Mas nós os músicos temos de fazer a nossa parte, o que é nosso dever e nosso ofício: devemos tocar o que o público pede no momento e devemos fazê-lo bem e de maneira bela e tocar com todo o entusiasmo possível.
Suspirando, assenti também a isto. Não havia jeito de enquadrar o homem. P. 120

Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas "responsabilidades" políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país lêem esta espécie de jornal; lêem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe "pátria", não existe "ideal" algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas idéias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo.
Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.
— Sim — disse em seguida — você tem razão. Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.
— Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.
Estranho foi o olhar que Hermínia me dirigiu; um olhar de regozijo, cheio de ironia e malícia, de compreensão e camaradagem, mas também cheio de arrogância, de consciência e de profunda seriedade.
— Isto não se aplica a você — disse em tom maternal. — Sua vida não será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa alcançar? Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra resplandece tão radiosa num breve instante. P. 106-108

E não temos ninguém que nos guie, a não ser nosso desejo de chegar. P. 139







quinta-feira, 22 de abril de 2010

A história do ladrão de corpos - Anne Rice, 1993

Digo que este é um dos melhores da autora. Sempre profundamente comprometida com questões existenciais "vampirescas", Rice desta vez deixa Lestat nu em pelo. E pra quem é fã do vampiro mais inquieto  e perverso da autora, ganha uma viagem pela alma dele, entendendo um pouco melhor como funciona sua mente insana. Além desse aspecto, a autora traz também, como de costume, uma interessante teoria sobre uma bizarra experiência de "troca de corpos", Recomendadíssimo! Segue fichamento.




A civilização ocidental nem por um segundo vai oscilar à margem do abismo. E não haverá revelações de tempos remotos, nem meias-verdades e adivinhações apresentadas pelos velhos, nem promessas de respostas que de fato não existem e jamais existiram.
p. 12

         Era apenas melancólico, sombrio, a ausência do que faz a vida digna de ser vivida – o calor do fogo e das carícias, dos beijos e das discussões, do amor, do desejo e do sangue.
Ah, os deuses astecas deviam ser vampiros sedentos para convencer aquelas pobres almas humanas de que o universo cessaria de existir se o sangue não fosse derramado. Imagine, presidir a cerimônia naquele altar, estalando os dedos para outro e outro e mais outro, espremendo aqueles corações encharcados de sangue contra os lábios, como cachos de uva.
p. 39


Você tem razão. Foi desprezível o modo que o deixei. Pior, foi covardia. Prometo que, quando nos encontrarmos novamente, vou deixá-lo dizer tudo que tem a dizer.
Eu tenho uma teoria sobre Rembrandt. Passei muitas horas estudando seus quadros em todas as partes do mundo – em Amsterdã, Chicago, Nova York, nos lugares em que eles estão – e como eu disse, acredito que tantas almas tão perfeitas não poderiam ter existido como Rembrandt nos quer fazer acreditar.
Esta é a minha teoria e por favor, quando ler esta carta, lembre-se de que ela acomoda todos os elementos envolvidos. E essa acomodação era outrora a medida da elegância das teorias... antes da palavra “ciência” passar a significar o que significa hoje.
Acredito que Rembrandt vendeu a alma ao demônio quando era jovem. Foi um negócio simples. O demônio prometeu que ele seria o pintor mais famoso do seu tempo. O demônio enviou milhares de mortais para que Rembrandt os retratasse. Deu riqueza a Rembrandt, uma casa encantadora em Amsterdã, uma esposa e mais tarde uma amante, porque estava certo de que teria sua alma, no fim.
Mas o encontro com o demônio provocou uma mudança em Rembrandt. Depois de ver a prova inegável do mal, passou a ser atormentado pela seguinte pergunta. O que é o bem? Procurava nos rostos dos seus modelos a divindade interior e com surpresa viu que era capaz de encontrar uma fagulha dessa divindade nos homens mais desprezíveis.
Seu talento era tal que – e por favor, compreenda, o demônio não conferiu a Rembrandt nenhuma habilidade artística; ele possuía naturalmente esse talento – não só podia ver a bondade, como também podia reproduzi-la na tela, podia fazer com que seu conhecimento e sua fé nessa bondade impregnasse o todo.
A cada retrato ele compreendia mais profundamente a graça e a bondade que existiam nos homens. Compreendia a potencialidade de compaixão e de sabedoria que existe em cada alma humana. Sua arte foi se aperfeiçoando à medida que trabalhava; o vislumbre do infinito tornava-se cada vez mais sutil, a pessoa cada vez mais particular e mais grandioso e mais sereno o todo.
Finalmente, os rostos pintados por Rembrandt não eram mais rostos de carne e osso. Eram expressões espirituais, retratos do que havia no interior do corpo do homem ou da mulher, visões do que cada pessoa era no seu momento de maior grandeza, do que cada um havia se tornado a partir daquele momento.
Por isso os homens da associação dos mercadores de tecidos parecem todos com os mais antigos e mais sábios santos de Deus.
Porém em nenhum outro lugar essa intensidade espiritual manifesta-se com maior clareza do que nos auto-retratos de Rembrandt. E certamente você sabe que ele nos deixou nada menos do que vinte e dois.
Por que acha que Rembrandt fez tantos auto-retratos? Eram uma súplica para que Deus notasse o progresso deste homem que, observando outros iguais a ele, sofrera uma intensa transformação religiosa. “Esta é a minha visão do homem”, disse Rembrandt a Deus.
Quando Rembrandt chegava ao fim da sua vida, o demônio começou a ter suspeitas. Não queria que seu escravo criasse obras tão magníficas, tão repletas de calor e bondade. Acreditava que o povo holandês era materialista, portanto voltado para as coisas terrenas. E ali, nos quadros onde apareciam ricas roupas e objetos de valor, cintilava a prova inegável de que os seres humanos são completamente diferentes de qualquer outro animal do cosmo – são uma combinação preciosa de carne e chama imortal.
Bem, Rembrandt suportou todos os tormentos inventados pelo demônio. Perdeu a bela casa na Jodenbreestraat. Perdeu a amante e, por fim, até o filho. Contudo continuou a pintar, sem nenhuma demonstração de amargura ou de perversidade, continuou a infundir o amor nas suas obras.
Finalmente estava no seu leito de morte. O demônio cabriolava de alegria, pronto para apanhar a alma de Rembrandt e apertá-la entre os dedos do mal. Mas os anjos e os santos imploraram a intervenção de Deus.
“No mundo inteiro, quem conhece melhor a bondade?” Eles perguntaram, apontando para Rembrandt que agonizava. “Quem mostrou mais do que este pintor? Olhamos para seus retratos quando queremos saber o que há de divino no homem.”
Então Deus desfez o acordo entre Rembrandt e o demônio. Tomou para si a alma do pintor e o demônio, recentemente roubado da alma de Fausto pela mesma razão, ficou louco de raiva.
Bem, ele enterraria na obscuridade a vida de Rembrandt. Providenciaria para que todos os bens pessoais daquele homem e todos os registros sobre sua vida fossem engolidos pela corrente do tempo. Por isso pouco sabemos sobre a verdadeira vida de Rembrandt, ou que tipo de homem ele era.
Mas o demônio  não pôde controlar o destino dos seus quadros. Por mais que tentasse, não conseguiu fazer com que fossem queimados, jogados fora ou postos de lado para dar lugar aos artistas mais novos. Na verdade, aconteceu uma coisa muito curiosa, aparentemente de origem desconhecida. Rembrandt tornou-se o mais admirado pintor que já existiu. Rembrandt veio a ser o maior pintor de todos os tempos.
Essa é a minha teoria sobre Rembrandt e aqueles rostos.
Agora, se eu fosse mortal, escreveria um romance sobre Rembrandt com esse tema. Mas não sou mortal. Não posso salvar a minha alma através da arte ou de Boas Obras. Sou uma criatura igual ao demônio, com uma diferença. Eu amo os quadros de Rembrandt!
Mas olhar para eles me parte o coração. Meu coração se partiu quando vi você no museu. E tem razão quando diz que não há vampiros com rostos iguais aos dos santos da associação dos mercadores de tecidos.
Por isso eu o deixei daquele modo no museu. Não foi com a raiva do demônio. Apenas com mágoa.
Outra vez prometo que, no nosso próximo encontro, eu o deixarei dizer tudo que tem para dizer.
p. 48 – 51 – Carta de Lestat à David. 



Juro por Deus que não conto mentiras para os outros. Mas minto para mim mesmo.
p. 75


- Há mais inteligência contida nesse antigo poema do que na criação do mundo. Você fala como um episcopal. Mas eu sei o que quer dizer. Já pensei nisso uma vez ou outra. Estupidamente simples. Tem de haver alguma coisa nisto tudo. Tem de haver! Tantas peças faltando. Quanto mais você pensa no assunto, mais os ateus parecem falar como fanáticos religiosos. Mas acho que é uma ilusão. Tudo não passa de um processo.
- Peças que faltam, Lestat. É claro! Imagine por um momento que eu construí um robô, uma réplica perfeita da minha pessoa. Suponha que passei para ele toda a informação possível das enciclopédias, você sabe, programei no seu cérebro que é um computador. Muito bem, infalivelmente chegaria o momento em que ele ia dizer, “David, onde está o resto? A explicação! Como tudo começou? Por que você não explicou porquê do big bang que deu origem ao mundo, nem exatamente o que aconteceu quando os minerais e outros compostos inertes evoluíram de repente para formar células orgânicas? E o ele perdido no registro da evolução dos fósseis? ”
- E eu teria de revelar ao pobre robô – continuou David – que não existe explicação. Que eu não tenho as peças que faltam.
P. 82


  - A religião é primitiva com suas conclusões ilógicas. Imagine um Deus perfeito permitindo a existência do demônio. Isso não faz sentido. A grande falha na Bíblia é a idéia de que Deus é perfeito. Representa uma falta de imaginação da parte dos antigos estudiosos. Essa crença é responsável por todas as impossíveis questões teológicas a respeito do bem e do mal que há séculos procuramos responder. Porém, Deus é o bem, é maravilhosamente bom. Sim, Deus, é amor. Mas nenhuma força criadora é perfeita. Isso é evidente.
- E o demônio? Alguma coisa nova a respeito dele? – David olhou para mim com uma leve impaciência. – Você é um ser tão cínico.
- Não, não sou. Quero saber de verdade. É claro que tenho um interesse especial no demônio. Falo dele muito mais do que falo de Deus. Não compreendo por que os mortais o amam tanto, quero dizer, por que amam tanto a idéia da sua existência. Mas eles gostam.
- Porque não acreditam nele – disse David – Porque um demônio perfeito é menos lógico do que um Deus perfeito. Imagine um demônio jamais ter aprendido coisa alguma durante todo esse tempo, nunca ter mudado sua idéia de ser demônio. É um insulto à nossa inteligência.
- Então, qual é a sua verdade atrás da mentira?
- Ele não é simplesmente incapaz de ser redimido. É apenas uma parte do plano de Deus. Um espírito a quem foi concedida a licença para tentar os humanos. Ele não aprova os seres humanos, não aprova a experiência de Deus. A meu ver essa é a natureza da queda do demônio. Ele pensou que a idéia não ia funcionar. Mas a chave, Lestat, é compreender que Deus é matéria! Deus é um ser físico, Deus é o Senhor da Divisão Celular, e o demônio detesta o excesso de permitir que essa divisão continue sem controle.
P. 84 – 85


Ele usa a desgraça como os outros usam o veludo. O sofrimento o enfeita como a luz das velas. As lágrimas o adornam como jóias. Nada desse lixo combina comigo.
P. 130


Na verdade, a limpeza e a ordem extremas dos pequenos cômodos davam a impressão de que ninguém vivia neles.
P. 170


            Assim, estendemos a mão para o caos furioso, apanhamos alguma coisa pequena e brilhante e nos agarramos a ela, dizendo para nós mesmos que ela tem significado, que o mundo é bom, que não somos a encarnação do mal e que no fim iremos para casa.
P. 175


[...] na verdade não acredito que eu seja um herói para o mundo. Porém resolvi há muito tempo que devia viver como se fosse um – que devia vencer todas as dificuldades que aparecessem no meu caminho, porque elas são apenas meus inevitáveis círculos de fogo.
P. 193


            Mas, Senhor Deus, e se o vampiro Lestat jamais tivesse existido, se fosse apenas uma criação literária, pura invenção do homem em cujo corpo eu vivia e respirava! Que idéia maravilhosa!
P. 220


- Esse é o único meio pelo qual o verdadeiro demônio pode fazer o bem. Representar o próprio papel para expor o mal.
P. 245


Há séculos venho observando com interesse vários seres humanos de dois anos. São tremendamente infelizes. Eles querem corre e caem, e gritam o tempo todo. Eles detestam ser humanos! Já sabem que é uma espécie de truque sujo.
P. 329


- Existe algum ser no mundo que faça uso de tudo que possui? Talvez um pequeno número de seres geniais e corajosos conheçam os próprios limites. O resto de nós não faz outra coisa senão se queixar.
P. 341


Afinal, o que nosso mundo significa para as estrelas lá em cima? O que elas pensam do nosso minúsculo planeta, repleto de insanas justaposições, circunstâncias fortuitas, a luta eterna, as ensandecidas civilizações espalhadas por toda a sua superfície, que sobrevivem não por força de vontade, fé ou ambição comum, mas por uma capacidade onírica de milhões para ignorar e esquecer as tragédias da vida e mergulhar na felicidade, como os passageiros daquele navio – como se a felicidade fosse tão natural aos seres humanos como a fome ou o sono, a necessidade de calor e o medo do frio.
P. 376



- Em geral fazemos nossos heróis muito superficiais. Nós os fazemos frágeis e quebradiços. Compete a eles nos fazer lembrar do verdadeiro significado da força.
P. 393

[...] os humanos são capazes de agir como perfeitos animais quando se trata de dinheiro.
P. 419


            A noite, como sempre, estava à minha espera. E a minha sede não podia esperar mais. Parei por um momento, a cabeça inclinada para trás, olhos fechados, boca aberta, sentindo a sede, com vontade de rugir como um animal faminto. Sim, sangue outra vez, quando não há nada mais. Quando o mundo, em toda sua beleza, parece vazio e sem coração e eu me sinto completamente perdido. Dê-me minha velha amiga, a morte e o sangue que jorra com ela. O vampiro Lestat está aqui, sedento, e nesta noite de todas as noites não vai deixar de saciar sua sede.
P. 421


            E minha alma tenebrosa está feliz outra vez, porque há muito tempo não sabe sentir outra coisa e porque a dor é um mar profundo e escuro no qual posso me afogar se não conduzir meu frágil barco habilmente sobre a superfície, sempre na direção do sol que jamais vai nascer.
P. 431



RICE, Anne. A história do ladrão de corpos: crônicas vampirescas. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 467 p.

terça-feira, 2 de março de 2010

A profecia celestina - James Redfield, 1993



Uma grande aventura atráves das terras peruanas. O livro realmente é muito bom, muito bem escrito, apesar de às vezes ser um pouco repetitivo, o que com certeza ajuda a compreender melhor a mensagem e a fazer as devidas conexões entre as concepções que vão sendo desveladas ao longo do livro. O autor envolve toda  uma teoria filosófica sobre a existência humana em uma teia de acontecimentos  contínuos e imprevistos. Vale a leitura. Ao lado foto do auto James Redfield. Mais abaixo segue a ficha de leitura do livro.




História não é só a evolução tecnológica; é a evolução do pensamento. Compreendendo a realidade das pessoas que nos precederam, podemos ver por que vemos o mundo como vemos, e qual é a nossa contribuição para que ele continue. Podemos precisar onde entramos nós, por assim dizer, no desenvolvimento mais amplo da civilização, e isso nos dá um senso de aonde estamos indo. P. 23

Pequena retrospectiva histórica da transição da Idade Média para a Idade Moderna:

- Tudo bem – ele respondeu. – Se imagine vivendo no ano 1000, no que chamamos de Idade Média. A primeira coisa que tem de entender é que a realidade dessa época está sendo definida pelos poderosos eclesiásticos da igreja cristã. Devido á sua posição, esses homens exercem grande influência sobre a mente da população. E o mundo que esses eclesiásticos descrevem como real é, acima de tudo, espiritual. Estão criando uma realidade que põe a idéia que eles fazem do plano de Deus para a humanidade no centro mesmo da vida.
“Visualize isso”, ele prosseguiu. “Você se descobre na classe de seu pai – essencialmente camponês ou aristocrata – e sabe que vai ficar sempre confinado nessa classe. Mas independentemente da classe a que pertença, ou do trabalho determinado que faça, logo compreende que a posição social é secundária em relação à realidade espiritual da vida como definida pelos clérigos.
“Descobre que a vida é passar numa prova espiritual. Os eclesiásticos explicam que Deus pôs a humanidade no centro de seu universo, cercado por todo o cosmos, para uma finalidade solitária: conquistar ou perder a salvação. E nesse julgamento você tem de escolher corretamente entre duas forças opostas: a força de Deus e as tentações ocultas do diabo.”
“Mas entenda que você não enfrenta essa disputa sozinho. Na verdade, como simples indivíduo, não está qualificado para determinar seu status a esse respeito. Esse é o domínio dos eclesiásticos; eles estão lá para interpretar as escrituras sagradas e revelar a você, a cada passo, se você está em harmonia com Deus ou ludibriado por Satanás. Se você seguir as instruções deles, terá assegurada uma vida após a morte recompensadora. Mas se não seguir o curso que eles prescrevem, aí, bem... há s excomunhão e a certeza da condenação.”
“(...) todo o aspecto do mundo medieval é definido em termos de um outro mundo. Todos os fenômenos da vida, desde o risco de um temporal ou terremoto até os sucessos da colheita ou a morte de um ser amado, são definidos como vontade de Deus ou malícia do diabo. Não há nenhuma idéia de clima, nem forças geológicas, nem horticultura ou doença. Tudo isso é secundário. Por ora, você crê inteiramente nos homens da igreja; o mundo que tem como certo funciona apenas por meios espirituais.”
A visão medieval do mundo, a sua visão do mundo, começa a ruir nos séculos 14 e 15. A princípio, você nota algumas impropriedades dos próprios eclesiásticos: violando em segredo os votos de castidade, por exemplo, ou aceitando espórtulas para ignorar quando as autoridades governamentais violam as leis das escrituras.
Essas impropriedades o perturbam, pois esses clérigos afirmam que são a única ligação entre você e Deus. Lembre-se de que eles são os únicos intérpretes das escrituras, os púnicos árbitros de sua salvação.
De repente, você está no meio de uma franca revolta. Um grupo liderado por Martinho Lutero convoca a um completo rompimento com o cristianismo papal. Dizem que os eclesiásticos são corruptos, e exigem o fim do reinado deles sobre a mente do povo. Formam-se novas igrejas, com base na idéia de que cada pessoa deve poder ter acesso individual às escrituras e interpretá-las como quiser, sem intermediários.
Sob seus olhos incrédulos, a revolta triunfa. Os padres começam a perder. Durante séculos, esses homens definiram a realidade, e agora, diante de você, perdem credibilidade. Portanto, todo mundo é posto em questão. O nítido consenso sobre a natureza do universo e o propósito da humanidade aqui, baseado como era na descrição dos eclesiásticos, entra em colapso – deixando você e todos os outros seres humanos na cultura ocidental numa situação bastante precária.
Afinal, você se acostumou a ter uma autoridade em sua vida para definir a realidade, e sem essa orientação externa se sente confuso e perdido. Se a descrição da realidade e da razão da existência humana pelos eclesiásticos está errada, você se pergunta: então, qual é a certa?
(...) foi um abalo terrível. A visão do mundo antigo era contestada em toda parte. Na verdade, no ano 1600 os astrônomos já haviam provado além de qualquer dúvida que o sol e as estrelas não giravam em torno da Terra, como defendia a Igreja. Claramente a Terra era apenas um pequeno planeta em órbita de um Sol menor, numa galáxia que continha bilhões desses astros.
- Isso é importante. A humanidade perdeu seu lugar no centro do universo de Deus. Percebe o efeito disso? Hoje, quando você observa o clima, ou plantas crescendo, ou alguém morrendo de repente, o que sente é uma ansiosa perplexidade. Antes, podia dizer que o responsável era Deus, ou o diabo. Mas quando a visão do mundo antigo desmorona, leva consigo essa certeza. Tudo o que você tinha como certo agora precisa de nova definição, sobretudo a natureza de Deus e sua relação com ele.
“Com essa consciência, começa a Idade Moderna. Há um espírito democrático cada vez maior, e uma descrença geral na autoridade papal e monárquica. As definições do universo baseadas na especulação ou na fé nas escrituras não são mais aceitas automaticamente. Apesar da perda da certeza, não queríamos correr o risco de algum novo grupo controlar nossa realidade como os eclesiásticos. Se você estivesse lá, teria participado da criação de um novo mandato para a ciência. (...) Você teria olhado esse vasto e indefinido universo exterior e pensado, como fizeram os filósofos de então, que precisávamos de um método formador de consenso, uma maneira de explorar sistematicamente aquele nosso novo mundo. E teria chamado essa nova forma de descobrir a realidade de método científico, que não é mais do que testar uma idéia de como funciona o universo, chegando depois a uma conclusão, e apresentando essa conclusão a outros para ver se concordam.
Aí vocês teria preparado exploradores para sair por esse novo universo, cada um armado do método científico, e teria dado a eles sua missão histórica: explorar esse espaço e descobrir como ele funciona, e o que significa estarmos nós próprios vivos aqui.
Você sabia que tinha perdido sua certeza sobre um universo governado por Deus, e portanto sobre a natureza do próprio Deus. Mas sentira que tinha um método, um processo formador de consenso, através do qual podia descobrir a natureza de tudo em volta, inclusive Deus e o sentido da existência da humanidade no planeta. Assim, mandou os exploradores saírem para descobrir a verdadeira natureza da sua situação e comunicá-la na volta.
Nesse ponto começa a preocupação da qual estamos despertando hoje. Mandamos nossos exploradores saírem em busca de uma explicação completa de nossa existência, mas, devido à complexidade do universo, eles não conseguiram voltar logo. Quando o método científico não conseguiu trazer de volta um novo quadro de Deus e do sentido da humanidade no planeta, a falta de certeza e explicação atingiu profundamente a cultura ocidental. Precisávamos de alguma outra coisa para fazer até que nossas perguntas fossem respondidas. Acabamos chegando ao que parecia ser uma solução bastante lógica. Nos olhamos uns aos outros e dissemos: ‘Bem, como os exploradores ainda não voltaram com nossa verdadeira situação espiritual, por que não nos instalamos neste nosso novo mundo enquanto esperamos?’ Certamente estamos aprendendo o suficiente para manipulá-lo em nosso benefício, logo por que não trabalharmos neste meio tempo para elevar nosso padrão de vida, nosso senso de segurança no mundo?
E foi o que fizemos. Há quatro séculos! Nos livramos da sensação de estar perdidos, tomando a coisa em nossas mãos, nos concentrando na conquista da Terra e usando os recursos dela para melhorar nossa situação, e só agora, quando nos aproximamos do fim do milênio, podemos ver o que aconteceu. Nossa concentração foi aos poucos se tornando uma preocupação. Nos perdemos totalmente ao criar uma segurança secular, econômica, em substituição à espiritual que havíamos perdido. A questão do motivo de estarmos vivos, do que na verdade estava acontecendo aqui espiritualmente, foi aos poucos sendo posta de lado e reprimida inteiramente.
O trabalho para estabelecer um estilo de sobrevivência mais confortável passou a parecer completo em si e por si, como uma razão para viver, e gradual e metodicamente esquecemos nossa pergunta original... Esquecemos que ainda não sabemos para que estamos sobrevivendo. P. 26-31

Todo o trabalho da vida de Einstein foi mostrar que o que percebemos como matéria sólida é em sua maior parte espaço vazio percorrido por um padrão de energia. Isso inclui a nós mesmos. E o que a física quântica revelou é que quando observamos esses padrões de energia em níveis cada vez menores, podemos ver resultados surpreendentes. As experiências demonstram que quando se fragmentam pequenos componentes dessa energia, o que chamamos de partículas elementares, e tentamos observar como funcionam, o próprio ato da observação altera os resultados - como se essas partículas elementares fossem influenciadas pelo que o cientista espera. Isso se aplica mesmo que as partículas tenham que aparecer em lugares onde não poderiam ir, em vista das leis do universo que conhecemos: dois lugares ao mesmo tempo, para frente e para trás no tempo, esse tipo de coisa.
Em outras palavras, o material básico do universo, no seu âmago, parece ser uma espécie de energia maleável à intenção e expectativas humanas, de uma maneira que desafia nosso antigo modelo mecanicista do universo; como se nossa expectativa fizesse nossa energia fluir para o mundo e afetar outros sistemas de energia. P. 49

Meu campo (psicologia) está em conflito, querendo saber por que os seres humanos se tratam uns aos outros com tanta violência. Sempre soubemos que essa violência surge do impulso dos seres humanos para controlar e dominar uns aos outros, mas só recentemente estudamos esse fenômeno de dentro, do ponto de vista da consciência individual. Perguntamos o que ocorre dentro de um ser humano que o faz querer controlar outra pessoa. Descobrimos que quando um indivíduo se dirige a outra pessoa e se empenha numa discussão, o que ocorre bilhões de vezes todos os dias no mundo, pode acontecer uma das duas coisas. O indivíduo sai se sentindo mais forte ou mais fraco, dependendo do que ocorre na interação.
Por esse motivo, nós, humanos, sempre parecemos adotar uma atitude manipuladora. Sejam quais forem os detalhes da situação, ou do assunto em questão, nós nos preparamos para dizer o que for preciso para prevalecer na conversa. Cada um de nós procura de algum modo encontrar um meio de controlar, e assim continuar por cima no combate. Se temos êxito, se nossa opinião prevalece, então em vez de nos sentirmos fracos, recebemos um reforço psicológico. P. 82

O papel do amor foi mal compreendido durante muito tempo. O amor não é uma coisa que devemos fazer para sermos bons ou tornar o mundo um lugar melhor, por alguma responsabilidade moral ou porque devemos desistir de nosso hedonismo. P. 135

Todo ser humano, quer tenha consciência disso ou não, ilustra com sua vida a maneira como acha que um ser humano deve viver. P. 160


 Referência Bibliográfica:

REDFIELD, James. A profecia celestina: uma aventura da nova era. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. 289p.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A insustentável leveza do ser - Milan Kundera, 1983


Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. P. 14

O amor não se manifesta pelo desejo de fazer amor (esse desejo se aplica a uma série inumerável de mulheres), mas pelo desejo de sono compartilhado (este desejo diz respeito a uma só mulher). P. 21

Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento. P. 39

Acreditamos todos que é impensável que o amor de nossa vida possa ser uma coisa leve, uma coisa imponderável; achamos que nosso amor é o que devia ser; que sem ele nossa vida não seria nossa vida. Convencemo-nos de que Beethoven em pessoa, triste e de cabelos revoltos, toca seu “Es muss sein!” para nosso grande amor. P. 40

Num passado remoto, o homem deve ter ouvido com assombro o som de batidas regulares que vinham do fundo de seu peito, sem conseguir saber o que seria aquilo. Não podia identificar-se com um corpo, essa coisa tão estranha e desconhecida. O corpo era uma gaiola e dentro dela, dissimulada, estava uma coisa qualquer que olhava, escutava, tinha medo, pensava e espantava-se; essa coisa qualquer, essa sobra que subsistia, deduzido o corpo, era a alma.
Hoje, é claro, o corpo deixou de ser um mistério, sabemos que o que bate no peito é o coração, o nariz nada mais é que a extremidade de um cano que avança para poder levar oxigênio aos pulmões. O rosto nada mais é que o painel onde terminam todos os mecanismos físicos: a digestão, a visão, a audição, a respiração, a reflexão.
Depois que o homem aprendeu a dar nome a todas as partes do seu corpo, esse corpo o inquieta menos. Atualmente cada um de nós sabe que a alma nada mais é que a atividade da matéria cinzenta do cérebro. A dualidade da alma e do corpo estava dissimulada por termos científicos; hoje, isso é um preconceito fora de moda que nos faz rir.
Mas basta amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se desfaça. P. 46

E ainda uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Nesse café ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma fraternidade secreta. Contra o mundo de grosseria que a cercava, não tinha efetivamente senão uma arma: os livros que pedia emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles não só lhe ofereciam a possibilidade de uma evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um significado como objetos: gostava de passear na rua com um livro debaixo do braço. Eram para ela aquilo que uma elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam dos outros. P.53

Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem o fundo de uma xícara o desenho deixado pela borra de café. P. 54

O acaso tem suas mágicas, a necessidade não. Pra que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se juntem desde o primeiro instante, como os passarinhos sobre os ombros de São Francisco. P. 55

O homem inconscientemente compõe sua vida segundo as leis da beleza mesmo nos instantes do mais profundo desespero. P. 58

Aquele que deseja continuamente “elevar-se” deve esperar um dia pela vertigem. O que é a vertigem? O medo de cair? Mas por que sentimos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada? A vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio embaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados. P. 65

A invasão russa, repitamos, não foi somente uma tragédia, foi também uma festa do ódio repleta de uma estranha euforia que hoje parece inexplicável. P. 73

Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa própria fraqueza mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com nossa própria fraqueza, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em pela rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão. P. 81-82

Aquele que se entrega ao outro como um prisioneiro de guerra deve antes entregar todas as armas. Vendo-se sem defesa, não pode deixar de se indagar quando virá o golpe. Posso, portanto, dizer que o amor era para Franz a espera contínua do golpe que iria atingi-lo. P. 89

Esse olhar o incomodava pois não podia compreendê-lo. Entre todos os amantes estabelecem-se rapidamente certas regras de jogo, das quais eles não têm consciência, mas que têm força de lei, e que não devem ser transgredidas. O olhar que ela acabava de lançar sobre ele escapava a essas regras, não tinha nada em comum com os olhares e os gestos que precediam habitualmente a aproximação deles. Não havia nesse olhar nem provocação, nem sedução, mas uma espécie de interrogação. Só que Franz não tinha nenhuma idéia da pergunta que esse olhar lhe fazia. P. 90

Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem fazer juntas a composição e trocar os temas, mas quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras musicais estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo de diferente na partitura do outro. P. 94

Até aqui, não tinha consciência disso, o que é compreensível: a meta que perseguimos é sempre velada. Uma moça que deseja um marido deseja uma coisa que lhe é totalmente desconhecida. O jovem que corre atrás da glória não tem nenhuma idéia do que seja a glória. Aquilo que dá sentido à nossa conduta sempre nos é totalmente desconhecido. P. 127-128


MULHER:

Ser mulher é para Sabina uma condição que ela não escolheu. Aquilo que não é conseqüência de uma escolha não pode ser considerado como mérito ou como fracasso. Diante de uma condição que nos é imposta, é preciso, pensa Sabina, encontrar a atitude certa. Parecia-lhe tão absurdo insurgir-se contra o fato de ter nascido mulher quanto glorificar-se disso. P.95
  
Para ele, a música é libertadora: ela o liberta da solidão e da clausura, da poeira das bibliotecas e abre-lhe no corpo as portas por onde a alma pode sair para confraternizar-se. P. 98

A feiúra no sentido absoluto começou a manifestar-se pela onipresença da feiúra acústica: os automóveis, as motos, as guitarras elétricas, as britadeiras, os alto-falantes, as sirenes. A onipresença da feiúra visual não demoraria a aparecer. P. 99

Para Sabina, viver significa ver. A visão é ilimitada por uma dupla fronteira: a luz intensa que cega e a escuridão total. Talvez seja daí que vem sua repugnância por todo extremismo. Os extremos delimitam a fronteira para além da qual a vida termina, e a paixão pelo extremismo, em arte como em política, é um desejo de morte disfarçado. P. 100

Nos países comunistas, a inspeção e o controle dos cidadãos são atividades sociais essenciais e permanentes. Para que um pintor consiga permissão para expor, para que um simples cidadão consiga um visto para passar férias à beira-mar, para que um jogador de futebol seja aceito no time nacional, é preciso em primeiro lugar que se reúnam todas as espécies de relatórios e de certificados que lhes digam respeito (do porteiro, dos colegas de trabalho, da polícia, da célula do partido, do comitê da empresa em que trabalha) e esses atestados são, em seguida, completados, revistos, avaliados, recapitulados por funcionários especialmente destinados a essa tarefa. Aquilo que é mencionado nesses atestados não tem nada a ver com a aptidão do cidadão para pintar, jogar futebol, ou com seu estado de saúde que pudesse estar justificando uma temporada à beira-mar. Só importa uma coisa, aquilo que se chama “o perfil político do cidadão” (aquilo que o cidadão diz, pensa, como ele se comporta, se participa ou não dos desfiles do 1º de maio). Tendo em vista que tudo (a vida cotidiana, a promoção e as férias) depende da maneira como a pessoa é julgada, todo mundo é obrigado (para jogar futebol no time oficial, para fazer uma exposição ou passar férias à beira-mar) a se comportar de maneira a ser bem julgado. P. 101-102

Ficou triste, mas, uma vez na calçada, pensou: no fundo, por que deveria encontrar-se com os tchecos? O que tinha em comum com eles? Uma paisagem? Se alguém perguntasse o que a Boêmia evocava para eles, essa pergunta faria surgir diante de seus olhos imagens disparatadas, desprovidas de unidade.
Seria então a cultura? Mas o que é isso? A música? Dvorak e Janacek? Sim, mas suponhamos que um tcheco não goste de música? Num só golpe, a identidade tcheca não passa de vento.
Seriam os grandes homens? Jan Hus? Aquelas pessoas jamais tinham lido uma linha de seus livros. A única coisa que podiam compreender unanimemente eras as chamas, a glória da cinza em que se transformara, de modo que a essência da alma tcheca, pensava Sabina, era para eles apenas um pouco de cinza, nada mais. Essas pessoas só tinham em comum sua derrota e as reclamações que se faziam mutuamente. P. 102-103

Ela quis lhes dizer que o comunismo, o fascismo, todas as ocupações e todas as invasões simulam um mal fundamental e universal; em sua maneira de entender, a imagem desse mal era o cortejo de pessoas desfilando com os braços para cima, gritando as mesmas sílabas em uníssono. Mas sabia que não ia conseguir se fazer entender. P. 106

Sabina disse: - A beleza involuntária. É isso mesmo. Poder-se-ia dizer também: a beleza por engano. Antes de desaparecer totalmente do mundo, a beleza existirá ainda alguns instantes, mas por engano. A beleza por engano é o último estágio da história da beleza. P. 107

Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para desenrolar seus pergaminhos é preciso que eles encontrem temas de dissertação. Existe um número infinito de temas pois pode-se falar sobre tudo e sobre nada. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos que são mais tristes do que os cemitérios porque neles não vamos nem mesmo no dia de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, numa avalanche de sinais, na loucura da quantidade. Creia-me: um só livro proibido em seu antigo país significa muito mais do que os milhares de vocábulos cuspidos pelas nossas universidades. P. 108-109


VIVER DENTRO DA VERDADE

É uma fórmula que Kafka usou num diário ou numa carta. Franz não se lembrava bem. Estava seduzido por essa fórmula. O que era viver dentro da verdade? Uma definição negativa era fácil: era não mentir, não se esconder, não dissimular nada. Depois que conhecera Sabina vivia na mentira. Conversava com sua mulher sobre congressos em Amsterdã, conferências em Madri que jamais haviam acontecido, tinha medo de passear com Sabina nas ruas de Genebra. Acha divertido mentir e esconder-se, já que nunca o fizera antes. Sente o prazer de um primeiro aluno da turma que decide um dia, finalmente, fazer gazeta.
Para Sabina, viver dentro da verdade, não mentir nem para si nem para os outros, só seria possível se vivêssemos sem público. Havendo uma única testemunha de nossos atos, adaptamo-nos de um jeito ou de outro aos olhos que nos observam, e nada mais do que fazemos é verdadeiro. Ter um público, pensar no público, é viver na mentira. Sabina despreza a literatura em que o autor revela toda a sua intimidade, e também a de seus amigos. Quem perde a sua própria intimidade perde tudo. Pensa Sabina. E quem a ela renuncia conscientemente é um monstro. Por isso Sabina não sofre por ter de esconder seu amor. Ao contrário, para ela está é a única forma de viver “dentro da verdade”. P. 118

Então qual a relação entre Tereza e seu corpo? Teria seu corpo direito de chamar-se Tereza? Se não tinha, o que significava este nome? Apenas uma coisa incorpórea, intangível?
(São sempre as mesmas perguntas que desde a infância passam pela cabeça de Tereza. As perguntas realmente sérias são aquelas – e somente aquelas – que uma criança pode formular. Só as perguntas mais ingênuas são realmente perguntas sérias. São as interrogações para as quais não existe resposta. Uma pergunta sem resposta é um obstáculo que não pode ser transposto. Em outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não existem respostas que marcam os limites das possibilidades humanas e que traçam as fronteiras de nossa existência). P. 142-143

O que é flerte? Pode-se dizer que é um comportamento que deve dar a entender que uma aproximação sexual é possível, sem que essa eventualidade possa ser entendida como uma certeza. Em outras palavras, o flerte é um promessa de coito, mas uma promessa sem garantia. P. 145-146

Quando levantou os olhos e viu o rosto dele, compreendeu que jamais aceitaria que aquele corpo, onde a alma gravara sua marca, pudesse estar nos braços de alguém que ela não conhecia e que não queria conhecer. P. 158

... e os amores são como os impérios: desaparecendo a idéia sobre a qual foram construídos, morrem junto com ela. P. 172

Aqueles que pensam que os regimes comunistas da Europa Central são obra exclusiva de criminosos deixam na sombra uma verdade fundamental: os regimes criminosos não foram feitos por criminosos mas por entusiastas convencidos de terem descoberto o único caminho para o paraíso. Defendiam corajosamente esse caminho, executando, por isso, centenas de pessoas. Mais tarde ficou claro como o dia que o paraíso não existia, e que, portanto, os entusiastas eram assassinos.
Assim todos acusavam os comunistas: vocês são os responsáveis pelas desgraças do país (que está pobre e arruinado), pela perda de sua independência (caiu sob a tutela dos russos), pelos assassinatos judiciários!
Os acusados respondiam: não sabíamos! Fomos enganados! Acreditávamos! Somos inocentes do fundo do coração!
O debate conduzia a essa pergunta: seria verdade que não sabiam? Ou apenas fingiam não saber?
Tomas acompanhava esse debate (como dez milhões de tchecos), e acreditava que haveria certamente entre os comunistas alguns que não eram assim tão ignorantes (deviam pelo menos ter ouvido falar dos horrores que tinham acontecido, e que não paravam de acontecer na Rússia pós-revolucionária). Mas é provável que a maior parte deles não soubesse de nada.
E ele dizia para si mesmo que o problema fundamental não era: sabiam ou não sabiam? Mas: seriam inocentes apenas porque não sabiam? Um imbecil sentado no trono estaria isento de toda a responsabilidade somente pelo fato de ser um imbecil?
Vamos admitir que o procurador tcheco que pedia no começo dos anos 50 a pena de morte para um inocente tivesse sido enganado pela polícia secreta russa e pelo governo do seu país. Mas agora que sabemos que as acusações eram absurdas, e que os condenados eram inocentes, como podemos admitir que o mesmo procurador defenda sua pureza de alma batendo no peito: minha consciência está limpa, eu não sabia, eu acreditei! Não é precisamente no seu: “Eu não sabia! Eu acredite!” que reside sua falta irreparável?
Nesse ponto Tomas se lembrou da história de Édipo. Édipo não sabia que dormia com sua própria mãe, e, no entanto, quando compreendeu o que tinha acontecido, nem por isso se sentiu inocente. Não pôde suportar a visão da infelicidade provocada por sua ignorância, furou os olhos e, cego para sempre, partiu de Tebas.
Tomas ouvia o grito dos comunistas que defendiam sua pureza de alma, e dizia a si próprio: por causa de sua inconsciência o país talvez tenha perdido séculos de liberdade. Mesmo assim vocês gritam que se sentem inocentes? Como podem ainda olhar em torno de si mesmos? Como?! Não estão espantados? Vocês não enxergam? Se tivessem olhos deveriam furá-los e deixar Tebas! P. 178-179

Tomas compreendeu uma coisa estranha. Todo mundo lhe sorria, todo mundo queria que ele escrevesse a retratação, retratando-se faria todo mundo feliz. Uns ficavam contentes porque a proliferação da covardia banalizava suas próprias condutas, devolvendo-lhes a honra perdida. Outros estavam acostumados a ver em sua honra um privilégio particular, do qual não queriam abrir mão. Também nutriam um amor secreto pelos covardes. Sem eles, sua coragem seria um esforço banal e inútil – ninguém os admiraria. P. 184

Como a adulação nos desarma! P. 186-187

Já havia compreendido que as pessoas se alegravam tanto com a humilhação moral do próximo, que jamais abriam mão desse prazer ouvindo explicações. P. 193

Se fosse possível classificar as pessoas por categorias, seria certamente a partir desses desejos profundos que as conduzem para esta ou aquela atividade que exercem durante a vida inteira. Um francês é diferente do outro. Mas todos os atores do mundo se parecem... P. 194

Aquilo que o “eu” tem de único se esconde exatamente naquilo que o ser humano tem de inimaginável. Só podemos imaginar aquilo que é idêntico em todos os seres humanos, aquilo que lhes é comum. O “eu” individual é aquilo que se distingue do geral, portanto aquilo que não se deixa adivinhar nem calcular antecipadamente, aquilo que precisa ser desvelado, descoberto e conquistado do outro. P. 200

Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. P. 209

Os personagens não nascem de um corpo materno, como os seres vivos, mas de uma situação, uma frase, uma metáfora que contém em embrião uma possibilidade humana fundamental que o autor imagina não ter sido ainda descoberta, ou sobre a qual nada ainda foi dito de essencial. P. 221

Os personagens do meu romance são minhas próprias possibilidades que não foram realizadas. É o que me faz amá-los todos e temê-los ao mesmo tempo. Uns e outros atravessaram a fronteira que apenas me limitei a contornar. O que me atrai é essa fronteira que eles ultrapassaram (fronteira para além da qual termina o meu eu). P. 222

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do “ES muss sein!”.
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo, como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha. P. 238

No reinado do kitsch totalitário, todas as respostas são dadas de antemão e excluem qualquer pergunta nova. Vai daí que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como uma faca que rasga o pano de fundo do cenário para que se veja o que está por detrás. P. 256

Os movimentos políticos não se baseiam em atitudes racionais, mas em representações, em imagens, em palavras, em arquétipos, cujo conjunto constitui esse ou aquele kitsch político.
A idéia da Grande Marcha, com a qual Franz gosta de se embriagar, é o Kitsch político que une as pessoas de esquerda de todos os tempos e de todas as tendências. A Grande Marcha é essa soberba caminhada para a frente, essa caminhada em direção à fraternidade, à igualdade, à justiça, à felicidade, e mais longe ainda, a despeito de todos os obstáculos, pois os obstáculos são necessários para que a marcha seja a Grande Marcha. P. 259

No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo unânime, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
Esse direito nos parece natural porque somos nós que estamos no alto da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro entrasse no jogo, por exemplo, um visitante de outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado à carroça de um marciano - eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via-láctea - talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato. Pediria então (tarde demais) desculpas à vaca. P. 287-288

Tereza acaricia a cabeça de Karenin que descansa tranqüilamente em seus joelhos. Faz mais ou menos esse raciocínio: não existe nenhum mérito em sermos corretos com nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros moradores da aldeia, ou não poderia viver ali; e, mesmo com Tomas, é obrigada a se portar como mulher amorosa, pois precisa dele. Nunca se poderá determinar com certeza total em que medida nosso relacionamento com o outro é o resultado de nossos sentimentos, de nosso amor, de nosso não-amor, de nossa complacência, ou de nosso ódio, e em que medida ele é determinado de saída pelas relações de força entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode se manifestar com toda a pureza, com toda a liberdade, em relação àqueles que não representam nenhuma força. O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, num nível tão profundo que escapa a nosso olhar), são as relações com aqueles que estão à nosso mercê: os animais. É aí que se produz o maior desvio do homem, derrota fundamental da qual decorrem todas as outras. P. 291

A nostalgia do paraíso é o desejo do homem de não ser homem. P. 298

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O Alienista - Machado de Assis, 1882




Machado de Assis fala por si próprio. Sou uma grande admiradora da obra deste homem. O grande sarcasmo e ironia de seus escritos são fantásticos. O Alienista parece leitura batida, daquela obrigatória da escola, que a maioria ficou com trauma. O fato é que é mais uma trama muito bem elaborada, e o melhor dela, sobre a loucura. Entretanto o autor não aborda o tema tradicionalmente, ele o coloca sobre uma perpectiva ambígua que deixa qualquer um se perguntando sobre sua sanidade. Aqui vão algumas passagens:

...tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. P. 29

O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como água de Botafogo. P. 38
Não há remédio certo para as dores da alma. P. 38
Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. P. 45 (autor sobre o sistema de “matraca” da época)

- Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. P. 45 (Simão Bacamarte)