sábado, 20 de janeiro de 2018

A sincronia dos pássaros me apavora. 19 de Novembro de 2010.



          É só olhar para aquele passarinho engaiolado ali do lado para se ter uma boa noção do sadismo humano. Há algo de tremendamente errado nesse hábito de enjaular pássaros. Aliás, de enjaular qualquer coisa. Mas esse, especificamente, de enjaular/engaiolar/aprisionar pássaros é uma das mais cruéis expressões do egoísmo do homem. Algo do tipo: “eu não posso voar, então vou te prender passarinho, aqui nessa jaulinha bem minúscula, e eu sei que tu poderias estar galgando imensas distâncias pelos céus resplandecentes e azuis, mas não vais, entendeu? não vais, porque te acho bonitinho aqui, nessa jaulinha, bem pequenininha!”.
         O pior ainda é ouvir aqueles discursos: “tem passarinhos que existem para viver em gaiolas (do tipo uma linha de produção só para o bel prazer do querido e amável ser humano), que são ‘domésticos’”, ou ainda, “ahh, mas se soltar agora ele morre”.
          - Atenção pessoas!
           Um ato de vaidade, de egoísmo, de arrogância diante da natureza. Um ato asqueroso. Eu mesma, devo confessar, já pensei em ter um passarinho, e pra quê? Pra sei lá, inventar mais um algo pra fazer (como se já não tivesse sido inventado o suficiente), para despistar algum instinto maternal, para me sentir importante e útil, para ter o controle de uma forma de vida, sei lá.
           Se fala em grandes atos heróicos de salvação, se fala de um monte de merda humanitária, e blás e blás infinitos. Mas quer saber, é nessas pequenas coisas que o ser humano mostra sua face verdadeira. E o mais apavorante é saber que absurdos cotidianos como esse são encarados como normalidade pura. Isso é o mais assustador!

Rice...

- Só existe um propósito na vida: dar testemunho de e compreender o máximo possível a complexidade do mundo – sua beleza, seus mistérios, seus enigmas. Quanto mais você compreende, quanto mais você olha, mais você aproveita a vida e mais você se sente em paz. É simples assim. Todo o resto são prazeres e jogos. Se uma atividade não tiver como base “amar” ou “aprender”, ela não tem valor. [RICE, 1996]

Aos homens, com carinho. 14 de Janeiro de 2010.


Conversava eu, certa vez, com um rapaz, com pretensões de par. Só que entre nós figurava um enorme pênis, imenso pênis, um pênis surreal. Sempre que ele me falava algo, falava para o pênis, e sempre que eu tentava lhe dizer algo, também falava para o pênis.
Alguns encontros mais e já estava insustentavelmente difícil o diálogo, simplesmente porque eu não o ouvia, nem ele a mim. Mais difícil pra mim, é verdade, afinal o pênis tinha seu dono, que não eu, asseguro. O constante, crescente e insistente obstáculo impossibilitava a vista, e eu fui esquecendo das feições do tal rapaz. Já nem lembrava se era loiro, ou moreno, inteligente, ou burro.
Já era tarde sabemos, o dito rapaz só tinha olhos para o seu pênis, apaixonara-se perdidamente. Triste, mas verídico, e corrente.
Num destes já desacreditados encontros, dei adeus ao pênis, digo, ao rapaz... ou o que quer que fosse que estivesse à minha vista. Dei adeus e me fui embora.
Não sei que aconteceu depois, mas para findar com os olhos roubados de qualquer otimista, digo que o moço e seu pênis viveram felizes e sós para sempre...

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O caso do "sem alma". 16 de Novembro de 2009.



E ele falava sempre assim, como se seu coração fosse de pedra. Ou seria porque, de tão mole e fraco, ele não existisse? O certo é que seu peito era diáfano, não porque fosse algum tipo de ser etéreo, mas antes por não significar nada para si mesmo, ou para qualquer um. Seguia pelas ruas cor de cinza com ares de asfixiado, macilento até pelo avesso, e principalmente pelo avesso, denunciando sua morte estranha e pálida, esquálida. E levava um bom tempo no vão esforço de se fazer ver aos outros, que na maioria das vezes invadiam suas veias sem perceber qualquer coisa que fosse. Nem uma brisa, nem um tamborilar baixinho no fundo da cena, nem uma matiz desvanecida, simplesmente nada, complicadamente nada.

Uma lenda dizia que quando de sua extrema ânsia por um bocado de vida e de mundo, quando de sua extrema raiva e fervor por um terreno de céu... bem, a lenda dizia, e ainda diz, que quando do profundo estado se (des)ânimo desse pobre diabo sem alma, a gente ouve um chiado abafado, que mais parece um nada sufocado pela multidão...

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Ninguém é de ninguém. 01 de Outubro de 2009.




Esses tempos vi uma mulher no trem que lia um livro intitulado “Ninguém é de ninguém”, nem vi o autor, mas fiquei refletindo sobre o que realmente poderia querer dizer essa sentença.

Ninguém é de ninguém, fato. Cada um é livre e essencialmente independente, nem todos sabem disso, é verdade. Mas o que significa isso num relacionamento tradicional entre duas pessoas? Significa que ambas têm seus gostos, suas vidas, seus pensamentos, suas tristezas e alegrias, seus momentos, suas vivências, experiências. Ambas têm tudo aquilo que podem levar consigo pra onde forem, quando forem, com quem forem. Sinto que muitos confundem lé com cré. O mundo tá muito pirado, demais pro meu gosto. Existe um frenesi animalesco de querer vingar todos os anos de “repressão” moral/sexual/intelectual que me assusta. Eu tenho atolado meus pés nessa merda nos últimos tempos, num ceticismo sobre mim mesma. Durante algum tempo tentei fingir ausência de sentimentos, fingir uma indiferença falsa, e hoje ainda carrego isso comigo, mas estou tentando ser mais fiel aos meus sentimentos e ideias. Ideias mudam! E que bom que mudam, do contrário eu ainda andaria com uma camiseta do Sex Pistols pregando o anarquismo. Ideias vêm de algum lugar trazendo muitas bagagens. Que bom! Sim, eu sou influenciada por muitas coisas e pessoas, quem não é? Eu sou um conjunto de um monte de coisas, de um monte de gente. Que ótimo!
Estamos numa curva ascendente de superficialismo, de banalidades, futilidades, achando que isso é progresso, que isso é liberdade. Constantemente presos numa corrente de nada! De nada!





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Lugar comum. 25 de Julho de 2009.

Era um domingo daqueles em que você acorda subitamente iluminado sobre o “profundo e verdadeiro significado da vida”. Só quer saber das coisas superiores. Se irrita com as ninharias do cotidiano turbulento. Pensa até em deletar o seu Facebook, esquecer o whatsapp, afastar a si próprio de todo e qualquer aparelho eletrônico, artificial, símbolo de toda decadência espiritual do ser humano. Degradante. Tá. O celular e os fones de ouvido não! Mas nada de Deftones, Chevelle ou Godsmack berrando raivoso no seu ouvido. Coisas alegres e plásticas demais também não servem para esse dia. Você quer é escutar Maria Creuza, mergulhado para sempre num estado de contemplação, descobrindo todos os sentidos de todas as letras fantásticas e perfeitas do poetinha vagabundo. Você quer saber das palavras grandes, tudo, todas, todos, mundo, universo, sentido. Num frenesi literário quer ler todos os livros, todos os autores, conhecer todos os títulos e falar com propriedade de todos os assuntos. Nesse momento, sua mente arde em chamas, você olha tudo e todos com olhos de profeta, cumprindo um roteiro messiânico, você é o escolhido. Fica aliviado, extasiado, excitado, tranquilamente ansioso. Passeia pelas ruas com ares de sabedoria, com vistas poéticas. Percebe tudo de outra maneira, uma maneira perturbadoramente deliciosa. A noite cai, como você ainda não virou imortal, nem rico, vai pra casa. Se aquieta sob suas cobertas, vai lendo o segundo título da maratona literária do dia, pode ser qualquer um, todos querem dizer alguma coisa entre o mágico e transcendente. Vai adormecendo, com aquela leve sensação de mudança de rumo. Feliz, quase pleno... vai adormecendo... DESPERTADOR... som agudo, frenético, frêmitos debaixo do travesseiro... Acorda. Meio tonto se dá conta do que está acontecendo. Merda! Segunda. Mau humor matinal, natural. Atraso. Remelas, pasta de dente, escova de dente, escova de cabelo, roupa, sapato, pressa. Café mal passado, mal tomado. Ônibus, sacolejos, sorrisos afetados, cumprimentos tacitamente impostos. E naquele circunlóquio forçado do trabalho nas manhãs de segunda alguém lhe pergunta “e você, o que fez ontem?”, você silencia por alguns instantes... “nada demais, nada demais não”.
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Aquele dos vampiros - 02 de Junho de 2009.


Ele falava de algo entre a vida e a morte. Transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Acontecia numa dessas rodas de pequenos intelectuais galãs e com estilos todos próprios. Pretensos intelectuais de merda que, boêmios, serviam muito mais pra bêbados do que pra intelectuais, mesmo de merda. O fato é que hoje essas coisas se confundem mesmo. Enfim, reuniam-se eles, em torno de uma mesa, num boteco qualquer, imersos pela fumaça dos seus cigarros ordinários. Todos famintos de atenção, todos anêmicos de importância. Foi então, numa súbita iluminação, que percebeu, durante seu discorrer longo e arrastado, todos aqueles sorrisos egoístas e gestos afetados por demais. Enxergou a si próprio numa fila onde todos esperavam sua vez de falar. Não queriam escutar, talvez nem mesmo quisessem ou esperassem ser escutados. Queriam encenar uma combinação frenética de gestos e palavras sobre transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Assim, como quem realmente está ocupado, profundamente envolvido dramaticamente.
Por ocasião de sua súbita e oportuna iluminação, ele simplesmente pegou seu copo, deu fim à sua dose de vodka, apagou seu toco de cigarro ordinário no cinzeiro abarrotado e levantou-se. Suspenso ma confusão de vozes da competição. Virou-se e seguiu embora sem que ninguém desse pelo seu movimento. Amarelos em suas febris expressões de si, continuavam a fingir uns aos outros, e assim todas as noites, indefinidamente.
Em seu quarto abre um livro, daqueles bons, de se devorar em algumas poucas horas. Acende um cigarro, serve uma dose de vodka e se aventura pelas páginas, páginas que querem apenas sua leitura... e terão...

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* Esta pode ser uma obra de ficção, ou não. Qualquer semelhança com fatos, lugares ou pessoas pode ser real, ou não.