Antes de morrer devo ainda encontrar uma possibilidade de expressar o essencial que existe dentro de mim e que nunca ainda exprimi, algo que não é nem amor, nem ódio, nem compaixão, nem desprezo, mas que é o hálito quente da própria vida, vindo de longe, que traz para a vida humana a força imensurável, assustadora, admirável, inexorável das coisas sobre-humanas. Bertrand Russel (Filósofo e Matemático inglês, 1872-1970)
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Morangos mofados - Caio Fernando Abreu, 1982
quarta-feira, 3 de junho de 2009
A convidada - Simone de Beauvoir - 1943
“É divertido pensar em como são as coisas em nossa ausência [...] É como tentar pensar que estamos mortos. Na verdade nunca o conseguimos; sempre achamos que estamos num canto, vendo tudo”. P. 14
“Continuo a pensar, apesar de tudo, que não sou feita da massa com que se constroem as vítimas”. P. 56
“Você, no fundo, está procedendo como todas as pessoas que afirmam não ter preconceitos: pretendem que só obedecem por gosto pessoal. Mas tudo isso são histórias”. P. 57
“Não é a mentira que me incomoda. O que acho monstruoso é que as pessoas tomem decisões sobre elas próprias dessa forma, como por decreto”. P. 67
“[...] O dia passara a espera dessas horas e agora elas corriam vazias e constituíam apenas uma espera [...] Tudo, afinal, era uma corrida sem objetivo. Somos lançados indefinidamente para o futuro, mas quando este se torna presente, é preciso fugir”. P. 90
“Para você, a colaboração intelectual consiste numa aprovação idiota de todas as suas opiniões”. P. 95
“Talvez seja porque amo demais. Quis dar mais do que aquilo que você podia receber. E, quando somo sinceros, dar é uma maneira de exigir”. P. 97
“[...] se os remorsos apagassem tudo, as coisas seriam muito fáceis”. P. 129
“Ora, uma decisão, quando começamos a duvidar dela, torna-se perturbadora”. P. 153
“Não há nada, em parte alguma, que se deva invejar, lamentar ou temer. O passado, o futuro, o amor, a felicidade, tudo isso não passa de sons que emitimos com a boca”. P. 155
“As palavras nada mais podem fazer do que nos aproximar do mistério, sem o tornarem menos impenetrável”. P. 159
“O amor não é um segredo vergonhoso. Parece-me uma fraqueza não querer olhar de frente o que se passa dentro de nós”. P. 244
“[...] só poderemos lutar contra a sociedade de maneira social”. P. 282
“Se eu tivesse verdadeiramente importância para alguém, talvez conseguisse valer um pouco mais para mim próprio. Assim, não chego a dar valor à minha vida nem a meus pensamentos”. P. 313
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quinta-feira, 21 de maio de 2009
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes (Parte I e II - 1605/1615)

Sempre tive certa relutância com esses “super-clássicos”. Seja porque alguns não me disseram nada ou pela linguagem superultramegarebuscada de outros, enfim. Sem falar naqueles em que, de um parágrafo, dez palavras têm de ser pesquisadas no dicionário. Claro que nada disso impede a leitura, mas convenhamos que seja preciso estar inspirado para resolver pegar o livro. Ler no metrô? Absolutamente impossível. Peguei o Quixote porque, além de ser um clássico, muitos professores de História já haviam falado dele. Então resolvi me aventurar. Para minha surpresa foram novecentas e tantas páginas muito agradáveis de ler, além de ter substancialmente enriquecido meu vocabulário e, claro, meu referencial dos séculos XVI e XVII. Realmente RI em muitas passagens, é difícil fazer isso com livros. De repente, você se pega rindo indefinidamente de algo no livro, e é uma sensação muito particular. Recomendo esta edição que li porque reúne as duas partes e também porque possui belíssimas gravuras do grande artista Gustave Doré que realmente incitam a imaginação. A edição também possui um prefácio dedicado a história do autor Miguel de Cervantes, que teve uma vida bastante tempestuosa e irônica. Então, para quem quiser se aventurar, lá vai meu incentivo.
Referência Bibliográfica:
CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote de
Aqui vão algumas passagens selecionadas:
“[...] e pior fora ainda o perigo de se fazer poeta, que, segundo dizem, é enfermidade incurável e pegadiça”. p. 107
“[...] coisa mal feita e piormente pensada, por deverem ser os historiadores muito pontuais, verdadeiros, e nada apaixonados, sem que nem interesse, nem temor, nem ódio, nem afeição, os desviem do caminho direito da verdade, que é a filha legítima de quem historia, êmula do tempo, depósito dos feitos, testemunha do passado, exemplo e conselho do presente, e ensino do futuro”. p. 126
“Não eram seus adornos, como os que ao presente se usam, exagerados, com a púrpura de Tiro, e com a por tantos modos martirizada seda; eram folhagens de verde bardana e hera entretecida; com o que talvez andavam tão garridas e enfeitadas como agora andam as nossas damas de corte com as raras e peregrinas invenções que a indústria ociosa lhes tem ensinado. Então expressavam-se os conceitos amorosos da alma simples, tão singelamente como ela os dava, sem se procurarem artificiosos rodeios de fraseado para os encarecer. Com a verdade e lhaneza não se tinha ainda misturado a fraude, o engano, e a malícia. A justiça continha-se nos seus limites próprios, sem que ousassem turbá-la nem ofendê-la o favor e interesse, que tanto hoje a enxovalham, perturbam e perseguem. Ainda se não tinha metido em cabeça a juiz o julgar por arbítrio, porque ainda não havia nem julgadores, nem pessoas para serem julgadas”. p. 136
"A tua falsa promessa, e aminha certa desventura me levam a sítios donde antes chegarão aos teus ouvidos novas da minha morte, do que as razões das minhas queixas. Deixaste-me, ó ingrata, por quem tem mais; porém não vale mais do que eu; mas, se a virtude fôra riqueza que se estimasse, não invejara eu ditas alheias, nem chorara desditas próprias. O que levantou a tua formosura hão-no derribado as tuas obras. Por ela entendi que eras anjo, e por elas reconheço que és mulher. Fica-te em paz, causadora da minha guerra, e o céu permita que os enganos do teu esposo te fiquem sempre encobertos, para que tu não fiques para sempre arrependida do que fizeste, e eu não tome vingança do que não desejo". p. 232
"A pena é ainda mais livre que a fala para bem expressar mistérios do coração". p. 241
"Sucedeu o que é de costume; nos moços o amor quase nunca o é; é sim um apetite, que, por se não endereçar senão ao deleite, apenas o obtém, logo diminiu e acaba. São estes uns limites postos pela própria natureza aos falsos amores; os verdadeiros seguem outra regra; estes duram sempre". p. 242
"[...] a virtude mais é perseguida pelos maus, do que amada pelos bons". p. 464
"Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam". p. 518
"— Senhor, as tristezas não se fizeram para os brutos, e sim para os homens; mas se os homens sentem demasiadamente, embrutecem". p. 582
"[...] e ainda que a da poesia é menos útil do que deleitosa, não é das que desonram os que a possuem. A poesia, no meu entender, senhor fidalgo, é como uma donzela meiga, juvenil e formosíssima, que se desvelam em enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e todas com ela se hão-de autorizar; mas esta donzela não quer ser manuseada, nem arrastada pelas ruas, nem publicada nas esquinas das praças, nem pelos desvãos dos palácios. É feita por uma alquimia de tamanha virtude, que quem souber tratá-la pode mudá-la em ouro puríssimo". p. 616
"[...] o vinho em excesso, nem guarda segredos, nem cumpre promessas". p. 790
"[...] pelas obras se revela a vontade de quem as pratica". p. 922
"As esperanças duvidosas devem fazer os homens atrevidos, mas não temerários". p. 931
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Feliz Ano Novo - 1975. Rubem Fonseca.
Corações Solitários:
Deus não está de olho em ninguém. Quem tem que se defender é você mesma. Sugiro que você grite, ponha a boca no mundo, faça escândalo. Você não tem nenhum parente na polícia? Bandido também serve. Te vira, gordinha.
Olha aqui, Virgem Louca, pergunta pro cara o que ele vai fazer se não gostar da experiência. Se ele disser que te chuta, dá pra ele, pois é um homem sincero. Tu não és groselha nem ensopadinho de jiló para ser provada, mas homens sinceros existem poucos, vale a pena tentar. Fé e pé na tábua.
Botando pra quebrar:
[...] o mundo estava cheio de otários que engoliam qualquer porcaria desde que o preço fosse caro.
Passeio Noturno
A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro. Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando as nuvens, por mais que o carro corresse.
Dia dos namorados:
Quando nasci me chamaram de Paulo, que é nome de papa, mas virei Mandrake, uma pessoa que não reza, e fala pouco, mas faz os gestos necessários.
Agruras de um jovem escritor:
Era estudante de enfermagem, mas gostava mesmo era de cinema e poesia. Fernando Pessoa, Drummond, Camões (o lírico), aquela coisa manjada de sempre, Fellini, Godard, Buñuel, Bergman, sempre a mesma coisa, raios, sempre as mesmas figuras.
José, meu grande amor, adeus. Não posso obrigá-lo a me amar com o mesmo fervor que lhe dedico. Tenho ciúmes de todas as lindas mulheres que vivem à sua volta tentando seduzi-lo; tenho ciúmes das horas que você passa escrevendo o seu importante romance. Oh, sim, amor da minha vida, sei que o escritor precisa de solidão para criar, mas esta minh’alma mesquinha de mulher apaixonada não se conforma em partilhar você com outra pessoa ou coisa.
- E você? Sou assassino de mulheres – podia ter dito, sou escritor, mas isso é pior do que ser assassino, escritores são amantes maravilhosos por alguns meses apenas e maridos nojentos pela vida afora.
Gente como nós ou vira santo ou maluco, ou revolucionário ou bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei entre escritor e bandido.
Já foi dito que o que importa não é a realidade, é a verdade, e a verdade é aquilo em que se acredita.
O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.
Os filósofos dizem que o que perturba e alarma o homem não são as coisas em si, mas suas opiniões e fantasias a respeito delas, pois o homem vive num universo simbólico, e linguagem, mito, arte, religião são partes desse universo, são as variadas linhas que tecem a rede entrançada da experiência humana.
Meu slogan podia ser, também, aodte um animal selvagem e mate um homem. Isso não porque odeie, mas ao contrário, por amar meus semelhantes. Apenas tenho medo de que os seres humanos se transformem primeiro em devoradores de insetos e depois em insetos devoradores. Em suma, tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo, criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo, para os filhos comerem. Aliás é chegado o momento de fazermos, nós os artistas e escritores, um grande movimento cultural e religioso universal, no sentido de se criar o hábito de nos alimentarmos também com a carne dos nossos mortos, Jesus, Alá, Maomé, Moisés, envolvidos na campanha. Está havendo um terrível desperdício de proteínas. Swift e outros já disseram coisa parecida, mas estavam fazendo sátira. O que eu proponho é uma nova religião, superantropocêntrica, o Canibalismo Místico.”
Para cada Central Nuclear é preciso uma porção de poetas e artistas, do contrário estamos fudidos antes mesmo da bomba explodir.
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Cem anos de solidão

"José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo de casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
- A terra é redonda como uma laranja".
(p. 10)
"Não conseguiram que comesse, durante vários dias. Ninguém entendia como não tinha morrido de fome, até que os índios, que percebiam tudo, descobriram que Rebeca só gostava de comer a terra úmida do quintal e as tortas de cal que arrancava das paredes com as unhas".
(p. 43)
"Os liberais, dizia, eram maçons; gente de má índole, partidária de enforcar os padres, de instituir o casamento civil e o divórcio, de reconhecer iguais direitos aos filhos naturais e aos legítimos, e de despedaçar o país num sistema federal que despojaria de poderes a autoridade suprema. Os conservadores, ao contrário, que tinham recebido o poder diretamente de Deus, pugnavam pela estabilidade da ordem pública e pela moral familiar; eram os defensores da fé de cristo, do princípio de autoridade, e não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas. Por sentimentos humanitários, Aureliano simpatizava com a atitude liberal, no que se refere aos direitos dos filhos naturais, mas, de qualquer maneira, não entendia como se chegava ao extremo de fazer uma guerra por coisas que não se podiam tocar com as mãos".
(P. 89/90)
"- Lembre-se, compadre – disse a ele – que não sou eu quem o está fuzilando, e sim a revolução.
O General Moncada nem sequer se levantou do catre ao vê-lo entrar.
- Vá à merda, compadre – respondeu.
Até aquele momento, desde a sua volta, o Coronel Aureliano Buendía não se permitira uma oportunidade de olhá-lo com o coração. Assombrou-se de quanto tinha envelhecido, do tremor de suas mãos, da resignação um pouco rotineira com que esperava a morte, e então experimentou um profundo desprezo por si mesmo, que confundiu com um princípio de misericórdia.
- Você sabe melhor que eu – disse – que todo tribunal de guerra é uma farsa, e que na verdade você vai pagar os crimes dos outros, porque desta vez nós vamos ganhar a guerra a qualquer preço. Você no meu lugar não teria feito a mesma coisa?
O General Moncada endireitou o corpo para limpar os grossos óculos de tartaruga com as fraldas da camisa. “Provavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile, porque afinal para gente como nós esta é a morte natural”. Colocou os óculos sobre a cama e tirou o relógio de bolso. “O que me preocupa – acrescentou – é que de tanto odiar os militares, de tato combatê-los, de tanto pensar neles, você acabou por ficar igual a eles. E não há ideal na vida que mereça tanta baixeza”. Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remedios e pôs junto com os óculos e o relógio.
- Nesse ritmo – concluiu – você não só será o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história, como também acabará por fuzilar a minha comadre Úrsula, tentando apaziguar a sua consciência".
(P. 145/146)
"Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos iguais entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares.
- Quer dizer – sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura – que só estamos lutando pelo poder.
- São reformas táticas – respondeu um dos delegados. – No momento, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois se vê.
Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir.
- É um contra-senso – disse. – Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base popular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação.
Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o interrompeu com um sinal. “Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento lutamos pelo poder”. Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entregaram os delegados e se dispôs a assinar.
- Já que é assim – concluiu – não temos nenhum inconveniente em aceitar.
Os seus homens se olharam consternados.
- Desculpe, coronel – disse suavemente o Coronel Gerineldo Márquez – mas isto é uma traição.
O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso da sua autoridade.
- Entregue as suas armas – ordenou.
O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as armas na mesa.
- Apresente-se no quartel – ordenou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. – O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários.
Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emissários, dizendo:
- Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele.
Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusado de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na rede, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de clemência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Úrsula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, permaneceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo – disse serenamente – e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos”. Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu:
- É a mesma coisa que teria feito se você tivesse nascido com rabo de porco.
Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade".
(P. 153/154)
"Muito em breve se soube que o padre Antonio Isabel o estava preparando para a primeira comunhão. Ensinava-lhe o catecismo enquanto raspava o pescoço dos galos. Explicava com exemplos simples, enquanto colocavam nos ninhos as galinhas chocas, como ocorrera a Deus, no segundo dia da criação, que os pintos se formassem dentro do ovo. Já então o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que provavelmente o diabo tinha ganho a rebelião contra Deus e que era aquele quem estava sentado no trono celeste sem revelar a sua verdadeira identidade para enganar os incautos".
(P. 169)
"Realmente, Remedios, a bela, não era um ser deste mundo. Até com a puberdade já bem avançada, Santa Sofía de La Piedad teve de lhe dar banho e mudar de roupa, e mesmo quando se pode valer sozinha, tinha que vigiá-la para que não pintasse animaizinhos nas paredes, com uma varinha lambuzada com o seu próprio cocô. Atingiu os vinte anos sem aprender ler e escrever, sem se servir dos talheres na mesa, passeando nua pela casa, porque a sua natureza reagia contra qualquer espécie de convencionalismo".
(P. 179)
"Não fale de política”, dizia-lhe o coronel. “O que nos interessa é vender peixinhos”. O falatório público de que não queria mais saber da situação do país porque estava ficando rico com a oficina, provocou as gargalhadas de Úrsula, quando chegou aos seus ouvidos. Com o seu incrível senso prático, ela não podia entender o comércio do coronel, que trocava os peixinhos por moedas de ouro, e em seguida transformava as moedas de ouro em peixinhos, e assim sucessivamente, de modo que tinha que trabalhar cada vez mais à medida que vendia, para satisfazer um círculo vicioso exasperante. Na verdade, o que interessava a ele não era o negócio e sim o trabalho. Precisava de tanta concentração para engastar escamas, incrustar minúsculos rubis nos olhos, laminar barbatanas e montar nadadeiras que não sobrava um só vazio para encher com a desilusão da guerra. Tão absorvente era a atenção que lhe exigia o preciosismo da artesania que em pouco tempo envelheceu mais do que em todos os anos de guerra, e a posição lhe entortou a espinha dorsal e a milimetria lhe gastou a vista, mas a concentração implacável o premiou com a paz de espírito".
(P. 180/181)
"Pouco depois do nascimento da menina, anunciou-se o inesperado jubileu do Coronel Aureliano Buendía, ordenado pelo Governo para celebrar um novo aniversário do Tratado de Neerlândia. Foi uma determinação tão incongruente com a política oficial que o coronel se pronunciou violentamente contra ela e recusou a homenagem. “É a primeira vez que ouço a palavra jubileu”, dizia. “Mas seja o que for que ela signifique, não pode deixar de ser zombaria”".
(P. 193)
"Dotados de recursos que em outra época estavam reservados à Divina Providência, modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação, atrás do cemitério".
(P. 204)
"A outra guerra, a sangrenta de vinte anos, não lhes causara tantos estragos quanto a guerra corrosiva do eterno adiamento".
(P. 217)
"Os últimos veteranos de quem se teve notícia apareceram retratados num jornal, com a cara levantada de indignidade, junto a um anônimo Presidente da República que os presenteou com uns botões com a sua efígie, para que os usassem na lapela, e lhes restituiu uma bandeira suja de sangue e de pólvora, para que a pusessem sobre os seus ataúdes. Os outros, os mais dignos, ainda esperavam uma carta na penumbra da caridade pública, morrendo de fome, sobrevivendo de raiva, apodrecendo de velhos na refinada merda da glória".
(P. 218)
"Certa ocasião, Fernanda pôs a casa em polvorosa porque tinha perdido a aliança e Úrsula a encontrou num consolo, no quarto das crianças. Simplesmente, enquanto os outros andavam descuidadamente por todos os lados, ela os vigiava com os seus quatro sentidos, para que nunca a pegassem de surpresa, e ao fim de algum tempo descobriu que cada membro da família repetia todos os dias, sem notar, os mesmos percursos, os mesmos atos, e que quase repetia as mesmas palavras às mesmas horas. Só quando saíam dessa meticulosa rotina é que corriam o risco de perder alguma coisa. De modo que quando ouviu Fernanda consternada porque havia perdido a aliança, Úrsula se lembrou de que a única coisa diferente que ela fizera naquele dia tinha sido arejar as esteiras das crianças, porque Meme tinha descoberto um percevejo na noite anterior. Como as crianças assistissem à limpeza, Úrsula pensou que Fernanda havia posto a aliança no único lugar onde elas não a poderiam alcanças: o consolo. Fernanda, pelo contrário, procurou-a unicamente nos trajetos do seu itinerário cotidiano, sem saber que a procura das coisa perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las".
(P. 221)
"Fechou-se com tranca dentro de si mesmo..."
(P. 234)
"A leitura ocupou a atenção que antes destinava aos fuxicos de namoro ou aos segredos experimentais com as suas amigas, não porque o impusesse como disciplina, mas porque já tinha perdido todo o interesse em comentar mistérios que eram do domínio público".
(P. 244/245)
"Acostumado com o barulho da chuva, que ao fim de dois meses se transformou numa nova forma de silêncio, a única coisa que perturbava a sua solidão eram as entradas e saídas de Santa Sofía de La Piedad".
(P. 276)