sábado, 20 de janeiro de 2018

O caso do "sem alma". 16 de Novembro de 2009.



E ele falava sempre assim, como se seu coração fosse de pedra. Ou seria porque, de tão mole e fraco, ele não existisse? O certo é que seu peito era diáfano, não porque fosse algum tipo de ser etéreo, mas antes por não significar nada para si mesmo, ou para qualquer um. Seguia pelas ruas cor de cinza com ares de asfixiado, macilento até pelo avesso, e principalmente pelo avesso, denunciando sua morte estranha e pálida, esquálida. E levava um bom tempo no vão esforço de se fazer ver aos outros, que na maioria das vezes invadiam suas veias sem perceber qualquer coisa que fosse. Nem uma brisa, nem um tamborilar baixinho no fundo da cena, nem uma matiz desvanecida, simplesmente nada, complicadamente nada.

Uma lenda dizia que quando de sua extrema ânsia por um bocado de vida e de mundo, quando de sua extrema raiva e fervor por um terreno de céu... bem, a lenda dizia, e ainda diz, que quando do profundo estado se (des)ânimo desse pobre diabo sem alma, a gente ouve um chiado abafado, que mais parece um nada sufocado pela multidão...

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Ninguém é de ninguém. 01 de Outubro de 2009.




Esses tempos vi uma mulher no trem que lia um livro intitulado “Ninguém é de ninguém”, nem vi o autor, mas fiquei refletindo sobre o que realmente poderia querer dizer essa sentença.

Ninguém é de ninguém, fato. Cada um é livre e essencialmente independente, nem todos sabem disso, é verdade. Mas o que significa isso num relacionamento tradicional entre duas pessoas? Significa que ambas têm seus gostos, suas vidas, seus pensamentos, suas tristezas e alegrias, seus momentos, suas vivências, experiências. Ambas têm tudo aquilo que podem levar consigo pra onde forem, quando forem, com quem forem. Sinto que muitos confundem lé com cré. O mundo tá muito pirado, demais pro meu gosto. Existe um frenesi animalesco de querer vingar todos os anos de “repressão” moral/sexual/intelectual que me assusta. Eu tenho atolado meus pés nessa merda nos últimos tempos, num ceticismo sobre mim mesma. Durante algum tempo tentei fingir ausência de sentimentos, fingir uma indiferença falsa, e hoje ainda carrego isso comigo, mas estou tentando ser mais fiel aos meus sentimentos e ideias. Ideias mudam! E que bom que mudam, do contrário eu ainda andaria com uma camiseta do Sex Pistols pregando o anarquismo. Ideias vêm de algum lugar trazendo muitas bagagens. Que bom! Sim, eu sou influenciada por muitas coisas e pessoas, quem não é? Eu sou um conjunto de um monte de coisas, de um monte de gente. Que ótimo!
Estamos numa curva ascendente de superficialismo, de banalidades, futilidades, achando que isso é progresso, que isso é liberdade. Constantemente presos numa corrente de nada! De nada!





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Lugar comum. 25 de Julho de 2009.

Era um domingo daqueles em que você acorda subitamente iluminado sobre o “profundo e verdadeiro significado da vida”. Só quer saber das coisas superiores. Se irrita com as ninharias do cotidiano turbulento. Pensa até em deletar o seu Facebook, esquecer o whatsapp, afastar a si próprio de todo e qualquer aparelho eletrônico, artificial, símbolo de toda decadência espiritual do ser humano. Degradante. Tá. O celular e os fones de ouvido não! Mas nada de Deftones, Chevelle ou Godsmack berrando raivoso no seu ouvido. Coisas alegres e plásticas demais também não servem para esse dia. Você quer é escutar Maria Creuza, mergulhado para sempre num estado de contemplação, descobrindo todos os sentidos de todas as letras fantásticas e perfeitas do poetinha vagabundo. Você quer saber das palavras grandes, tudo, todas, todos, mundo, universo, sentido. Num frenesi literário quer ler todos os livros, todos os autores, conhecer todos os títulos e falar com propriedade de todos os assuntos. Nesse momento, sua mente arde em chamas, você olha tudo e todos com olhos de profeta, cumprindo um roteiro messiânico, você é o escolhido. Fica aliviado, extasiado, excitado, tranquilamente ansioso. Passeia pelas ruas com ares de sabedoria, com vistas poéticas. Percebe tudo de outra maneira, uma maneira perturbadoramente deliciosa. A noite cai, como você ainda não virou imortal, nem rico, vai pra casa. Se aquieta sob suas cobertas, vai lendo o segundo título da maratona literária do dia, pode ser qualquer um, todos querem dizer alguma coisa entre o mágico e transcendente. Vai adormecendo, com aquela leve sensação de mudança de rumo. Feliz, quase pleno... vai adormecendo... DESPERTADOR... som agudo, frenético, frêmitos debaixo do travesseiro... Acorda. Meio tonto se dá conta do que está acontecendo. Merda! Segunda. Mau humor matinal, natural. Atraso. Remelas, pasta de dente, escova de dente, escova de cabelo, roupa, sapato, pressa. Café mal passado, mal tomado. Ônibus, sacolejos, sorrisos afetados, cumprimentos tacitamente impostos. E naquele circunlóquio forçado do trabalho nas manhãs de segunda alguém lhe pergunta “e você, o que fez ontem?”, você silencia por alguns instantes... “nada demais, nada demais não”.
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Aquele dos vampiros - 02 de Junho de 2009.


Ele falava de algo entre a vida e a morte. Transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Acontecia numa dessas rodas de pequenos intelectuais galãs e com estilos todos próprios. Pretensos intelectuais de merda que, boêmios, serviam muito mais pra bêbados do que pra intelectuais, mesmo de merda. O fato é que hoje essas coisas se confundem mesmo. Enfim, reuniam-se eles, em torno de uma mesa, num boteco qualquer, imersos pela fumaça dos seus cigarros ordinários. Todos famintos de atenção, todos anêmicos de importância. Foi então, numa súbita iluminação, que percebeu, durante seu discorrer longo e arrastado, todos aqueles sorrisos egoístas e gestos afetados por demais. Enxergou a si próprio numa fila onde todos esperavam sua vez de falar. Não queriam escutar, talvez nem mesmo quisessem ou esperassem ser escutados. Queriam encenar uma combinação frenética de gestos e palavras sobre transcendentalidades, porquês e afins, coisas mais, todas balelas e baratas. Assim, como quem realmente está ocupado, profundamente envolvido dramaticamente.
Por ocasião de sua súbita e oportuna iluminação, ele simplesmente pegou seu copo, deu fim à sua dose de vodka, apagou seu toco de cigarro ordinário no cinzeiro abarrotado e levantou-se. Suspenso ma confusão de vozes da competição. Virou-se e seguiu embora sem que ninguém desse pelo seu movimento. Amarelos em suas febris expressões de si, continuavam a fingir uns aos outros, e assim todas as noites, indefinidamente.
Em seu quarto abre um livro, daqueles bons, de se devorar em algumas poucas horas. Acende um cigarro, serve uma dose de vodka e se aventura pelas páginas, páginas que querem apenas sua leitura... e terão...

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* Esta pode ser uma obra de ficção, ou não. Qualquer semelhança com fatos, lugares ou pessoas pode ser real, ou não.

O último discurso. Charles Chaplin.

  "- Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, ms dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

- Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!."





Charles Chaplin. O grande ditador, 1940.




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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Feminismo no Brasil

"Diferente do que ocorre em outros países, existe entre nós uma forte resistência em torno da palavra “feminismo”. Se lembrarmos que feminismo foi um movimento legítimo que atravessou várias décadas, e que transformou as relações
entre homens e mulheres, torna-se (quase) inexplicável o porquê de sua desconsideração pelos formadores de opinião pública. Pode-se dizer que a vitória do movimento feminista é inquestionável quando se constata que suas bandeiras
mais radicais tornaram-se parte integrante da sociedade, como, por exemplo, mulher frequentar universidade, escolher profissão, receber salários iguais, candidatar-se ao que quiser.... Tudo isso, que já foi um absurdo sonho utópico, faz parte de nosso dia a dia e ninguém nem imagina mais um mundo diferente.
Mas se esta foi a vitória do movimento feminista, sua grande derrota, a meu ver, foi ter permitido que um forte preconceito isolasse a palavra, e não ter conseguido se impor como motivo de orgulho para a maioria das mulheres. A reação desencadeada pelo antifeminismo foi tão forte e competente, que não só promoveu um desgaste semântico da palavra, como transformou a imagem da feminista em sinônimo de mulher mal amada, machona, feia e, a gota d’água, o oposto de “feminina”. Provavelmente, por receio de serem rejeitadas ou de ficarem “mal vistas”, muitas de nossas escritoras, intelectuais, e a brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar tal título. Também é uma derrota do feminismo permitir que as novas gerações desconheçam a história das conquistas
femininas, os nomes das pioneiras, a luta das mulheres de antigamente que, de peito aberto, denunciaram a discriminação, por acreditarem que, apesar de tudo, era possível um relacionamento justo entre os sexos. (...)
Penso que o “feminismo” poderia ser compreendido em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo. Somente então será possível
valorizar os momentos iniciais desta luta – contra os preconceitos mais primários e arraigados – e considerar aquelas mulheres, que se expuseram à incompreensão
e à crítica, nossas primeiras e legítimas feministas." (Constância Lima Duarte, Feminismo e literatura no Brasil, 2003) Texto integral disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v17n49/18402.pdf




terça-feira, 16 de maio de 2017

Mais um pouco sobre ser mãe.

A mãe chega em casa e, antes de tudo, dá uns bons grudes e agarrões no seu pequeno, que é pra recarregar as energias. Depois oferece água, e então dá um "gute". Dá mais uns grudes, e oferece mais água, tira o copinho de água da mão do pequeno porque ele começa a atirar água pelo chão e na televisão, não está com sede não. A mãe então prepara o banho, e prepara a roupa calculando se vai esfriar durante a madrugada, porque o pequeno não dorme tapado, nem pensar! É temperamental. Dá o banho, seca, passa creminho, veste, passa colônia, penteia o cabelinho, tudo isso fazendo muitas palhaçadas pra segurar a atenção do mocinho, assim ele não sai correndo nu pela casa antes que ela termine todo o processo. 
Depois, arruma a janta. Dá remedinho, dá a janta. Tira o pequeno da cadeirinha e o libera pra olhar seu desenho. Só então é que a mãe vai se lembrar que ela existe, que ela tem fome e que está morrendo de sede. 

Muita gente que não tem filhos se assusta com a rotina de ter um filho. Tudo isso soa como sacrifício, como uma espécie de heroísmo materno. Mas o que muitos não sabem é que não é sacrifício nenhum. É prazer, é felicidade, é alegria, é satisfação, é amor. 

Não quero dizer com isso que a maternidade é um mar de rosas, e que todas as mulheres deveriam ser mães. Não estou pleiteando a maternidade, mas narrando minha experiência como mãe. É cansativo? Sim, muito! Às vezes ficamos estressadas, desanimadas? Sim. Mas e o que mais na vida não nos cansa vez por outra? O que na vida não nos estressa ou desamina de vez em quando? A maternidade não é nenhum mérito supremo, nenhuma habilidade perfeita que nos exija sabedoria plena sobre o que estamos fazendo. Ser mãe é algo incrível, e antes de tudo é algo que nos dá tanta felicidade, nos fornece tamanha energia. E nada disso é porque somos mães, mas é porque temos filhos. Parece confuso, mas as mães vão entender exatamente o que quero dizer. Assistimos ao crescimento desses pequenos e frágeis seres, ao seu desenvolvimento enquanto seres humanos. Provocamos sorrisos fantasticamente sinceros, e recebemos um amor totalmente altruísta.

Escrito em 07.12.2015