terça-feira, 28 de setembro de 2010

O livro dos abraços - Eduardo Galeano, 1989


Esse livro deveria vir naquelas versões minúsculas, sabe? Como aqueles 'minuto de sabedoria'. A diferença é que esse realmente é feito de grandes pérolas de sabedoria e beleza. É melhor ainda por ter essa característica fragmentada, que não te exige ler de cabo a rabo, que te dá muito sem pedir nada em troca... pode-se simplesmente abrir numa página e ler o que diz. Todas as páginas têm muito a dizer. Eu adoro esse escritor, muito pela sua história de vida, mais ainda por seu talento em descrevê-la de forma tão encantadora.


GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2008. 272 p.

Recordar:
Do latim re-cordis, tornar a passar pelo coração.

 O mundo

Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
— O mundo e isso — revelou —. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que e impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. p. 13

A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
       Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar! p. 15

A casa das palavras

       Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos,provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido.
       Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre,
vermelho-sangue, vermelho-vinho... p. 19

A função da arte/2

O pastor Miguel Brun me contou que há alguns anos esteve com os índios do Chaco paraguaio. Ele formava parte de uma missão evangelizadora. Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando.
O cacique levou um tempo. Depois, opinou:
— Você coça. E coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou:
— Mas onde você coça não coça. p. 28


[...] roupa de plástico, comida de plástico, gente de plástico, enquanto os vídeos e os computadores domésticos se transformam em perfeitas contra-senhas da felicidade.

(Crônica da cidade de Santiago, p. 33)


A realidade é uma doida varrida. p. 51


A burocracia/3

Sixto Martínez fez o serviço militar num quartel de Sevilha.
No meio do pátio desse quartel havia um banquinho. Junto ao banquinho, um soldado montava guarda. Ninguém sabia por que se montava guarda para o banquinho. A guarda era feita por que sim, noite e dia, todas as noites, todos os dias, e de geração em geração os oficiais transmitiam a ordem e os soldados obedeciam. Ninguém nunca questionou, ninguém nunca perguntou. Assim era feito, e sempre tinha sido feito.
E assim continuou sendo feito ate que alguém, não sei qual general ou coronel, quis conhecer a ordem original. Foi preciso revirar os arquivos a fundo. E depois de muito cavoucar, soube-se. Fazia trinta e um anos, dois meses e quatro dias, que um oficial tinha mandado montar guarda junto ao banquinho, que fora recém-pintado, para que ninguém sentasse na tinta fresca. p. 62 

Causos/1

Nas fogueiras de Paysandú, Mellado Iturria conta causos. Conta acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez, ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas tem uma coisa de bom: acontecem cada vez que são contados.
Este e o triste causo do bagrezinho do arroio Negro.
Tinha bigodes de arame farpado, era vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já tinha se resignado.
Com o tempo, foi sentindo carinho pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.
Os cachorros, enciumados, olhavam o bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia desagradar a Deus.
Estava sempre de olho nele. O bagre tinha uma notória tendência as diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia espantar as galinhas ou provocar os cachorros:
— Comporte-se — dizia Mellado ao bagre.
Certa manha de muito calor, quando as lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as barbatanas, Mellado teve a idéia fatal:
— Vamos tomar banho no arrolo — propos. Foram, os dois.
E o bagre se afogou. p. 64

Os ninguéns

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanha, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e
mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm numero.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata. p.71 

Os numerinhos e as pessoas

Onde se recebe a Renda per Capita? Tem muito morto de fome querendo saber. Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?
Em Cuba, a Revolução triunfou no ano mais prospero de toda a historia econômica da ilha.
Na America Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas. Nas décadas de 50, de 60, de 70, anos atormentados, tempos turbulentos, a America Central exibia os índices de crescimento econômico mais altos do mundo e o maior desenvolvimento regional da história humana.
Na Colômbia, os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o pais produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas. p. 79

A fome/2

Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor.., O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco da de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços. p. 81


Dizem as paredes/l

No setor infantil da Feira do Livro, em Bogotá:
O Loucóptero é muito veloz, mas muito lento.
Na avenida costeira de Montevidéu, frente do rio-mar:
Um homem alado prefere a noite.
Na saída de Santiago de Cuba:
Como gasto paredes lembrando você!
E nas alturas de Valparaíso:
Eu nos amo.

p. 83 


Teologia/1
O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e não fazer o mal por medo. Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava.
Passaram-se os anos. Eu já não temo nem creio. E, em todo caso – penso – se mereço ser assado cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja. Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço. Nunca matei ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer. Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda. Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés:
Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu asno... E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão-de-obra. Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora. p. 86

Teologia/2
O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor. Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana. Cada vez que penso nisso, sinto pena dele. E então o perdôo por ter sido meu super-pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso afinal que Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim. Então preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr-do-sol e o nascer e subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências. p. 87

Teologia/3
Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender. Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu... bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça-se a luz”, mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloqüente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei vôo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão...
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade. p. 89

A noite/1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. p. 90

O diagnóstico e a terapêutica

O amor e uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite apos noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida. Pode ser provocado, mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada. O amor e surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas. Não ha decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo. p. 91


A noite/2

- Arranque-me, senhora, as roupas e as dúvidas. Dispa-me, dispa-me. p. 92

A noite/3

Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo. p. 94

A pequena morte

Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer e uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce. p. 95


[...] os amantes se comem entre si de ponta a ponta, todos todinhos, todo-poderosos, todo-possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um dedo do pé. (O devorador devorado, p. 97)


 A vida profissional/ 2

Têm o mesmo nome, o mesmo sobrenome. Ocupam a mesma casa e calçam os mesmos sapatos. Dormem no mesmo travesseiro, ao lado da mesma mulher. A cada manhã, o espelho lhes devolve a mesma cara. Mas ele e ele não são a mesma pessoa:
E eu, o que tenho a ver com isso? — diz ele, falando dele, enquanto sacode os ombros.
Eu cumpro ordens — diz, ou diz:
Sou pago para isso.
Ou diz:
Se eu não fizer, outro faz.
Que é como dizer:
Eu sou o outro.
Frente ao ódio da vítima, o verdugo sente estupor, e até uma certa sensação de injustiça: afinal, ele é um funcionário,um simples funcionário que cumpre seu horário e suas tarefas. Terminada a jornada extenuante de trabalho, o torturador lava as mãos.
Ahmadou Gherab, que lutou pela independência da Argélia, me contou. Ahmadou foi torturado por um oficial francês durante vários meses. E a cada dia, às seis em ponto da tarde, o torturador secava o suor da fronte, desligava da tomada a máquina de dar choques e guardava os outros instrumentos de trabalho. Então se sentava ao lado do torturado e falava de sua mulher insuportável e do filho recém-nascido, que não o deixara grudar o olho a noite inteira; falava contra Orã, esta cidade de merda, e contra o filho da puta do coronel que...
Ahmadou, ensangüentado, tremendo de dor, ardendo em febre, não dizia nada. p. 104

A vida profissional/3

Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:
Somos neutros — dizem.

p. 106


Mapa-múndi/1

O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vitimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
p. 107

 Mapa-múndi/ 2

No Sul, a repressão. Ao Norte, a depressão. Não são poucos os intelectuais do Norte que se casam com as revoluções do Sul só pelo prazer de ficarem viúvos. Prestigiosamente choram, choram a cântaros, choram mares, a morte de cada ilusão; e nunca demoram muito para descobrir que o socialismo é o caminho mais longo para chegar do capitalismo ao capitalismo.
A moda do Norte, moda universal, celebra a arte neutra e aplaude a víbora que morde a própria cauda e acha que é saborosa. A cultura e a política se converteram em artigos de consumo. Os presidentes são eleitos pela televisão, como os sabonetes, e os poetas cumprem uma função decorativa. Não há maior magia que a magia do mercado, nem heróis mais heróis que os banqueiros.
A democracia é um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e fome não pertencem a história, mas a natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si.

p. 108

 O medo

Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.

p. 111


A desmemória / 3

Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente. Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802. A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações. Disso, os textos não dizem nada. Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.

p. 114

A desmemória/4

Chicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
Deve ser por aqui — me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que esta como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.


p. 115


Celebração de bodas da razão com o coração

Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.
Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.

p. 119


Divórcios

Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços.
O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces.
O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias.

p. 121


Paradoxos

Se a contradição for o pulmão da história, o paradoxo deverá ser, penso eu, o espelho que a história usa para debochar de nós.
Nem o próprio filho de Deus salvou-se do paradoxo. Ele escolheu, para nascer, um deserto subtropical onde jamais nevou, mas a neve se converteu num símbolo universal do Natal desde que a Europa decidiu europeizar Jesus. E para mais inri, o nascimento de Jesus é, hoje em dia, o negócio que mais dinheiro dá aos mercadores que Jesus tinha expulsado do templo.
Napoleão Bonaparte, o mais francês dos franceses, não era francês. Não era russo Josef Stalin, o mais russo dos russos; e o mais alemão dos alemães, Adolf Hitler, tinha nascido na Áustria. Margherita Sarfatti, a mulher mais amada pelo anti-semita Mussolini, era judia. José Carlos Mariategui, o mais marxista dos marxistas latino-americanos, acreditava fervorosamente em Deus. O Che Guevara tinha sido declarado completamente incapaz para a vida militar pelo exército argentino.
Das mãos de um escultor chamado Aleijadinho, que era o mais feio dos brasileiros, nasceram as mais altas formosuras do Brasil. Os negros norte-americanos, os mais oprimidos, criaram o jazz, que é a mais livre das músicas. No fundo de um cárcere foi concebido o Dom Quixote, o mais andante dos cavaleiros. E cúmulo dos paradoxos, Dom Quixote nunca disse sua frase mais célebre. Nunca disse: Ladram, Sancho, sinal que cavalgamos.
"Acho que você está meio nervosa", diz o histérico. "Te odeio", diz a apaixonada. "Não haverá desvalorização", diz, na véspera da desvalorização, o ministro da Economia. "Os militares respeitam a Constituição", diz, na véspera do golpe de Estado, o ministro da Defesa.
Em sua guerra contra a revolução sandinista, o governo dos Estados Unidos coincidia, paradoxalmente, com o Partido Comunista da Nicarágua. E paradoxais foram, enfim, as barricadas sandinistas durante a ditadura de Somoza: as barricadas, que fechavam as ruas, abriam o caminho.

p. 126

O sistema/1

Os funcionários não funcionam.
Os políticos falam mas não dizem.
Os votantes votam mas não escolhem.
Os meios de informação desinformam.
Os centros de ensino ensinam a ignorar.
Os juízes condenam as vítimas.
Os militares estão em guerra contra seus compatriotas.
Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os.
As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados.
O dinheiro é mais livre que as pessoas.
As pessoas estão a serviço das coisas.

p. 129

Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam? O que dizem quando calam? (Os índios/2, p. 132)


A televisão/2

A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.

p. 149


Nós comemos emoções importadas como se fossem salsichas em lata, enquanto os jovens filhos da telev.isão, treinados para contemplar a vida em vez de fazê-la, sacodem os ombros.

Os livros não precisam ser proibidos pela polícia: os preços já os proíbem.

(A televisão/3, p. 152)


Pela tela desfilam os eleitos e seus símbolos de poder. O sistema, que edifica a pirâmide social escolhendo pelo avesso, recompensa pouca gente. Eis aqui os premiados: são os usurários de boas unhas e os mercadores de dentes bons, os políticos de nariz crescente e os doutores de costas de borracha.

(A televisão/5, p. 155)


Celebração da desconfiança

No primeiro dia de aula, o professor trouxe um vidro enorme:
 — Isto está cheio de perfume — disse a Miguel Brun e aos outros alunos —. Quero medir a percepção de cada um de vocês. Na medida em que sintam o cheiro, levantem a mão.
E abriu o frasco. Num instante, já havia duas mãos levantadas. E logo cinco, dez, trinta, todas as mãos levantadas.
— Posso abrir a janela, professor? — suplicou uma aluna, enjoada de tanto perfume, e várias vozes fizeram eco. O forte aroma, que pesava no ar, tinha-se tornado insuportável para todos.
Então o professor mostrou o frasco aos alunos, um por um. Estava cheio de água.

p. 156


A alienação /l

Em meus anos moços, fui caixa de banco.
Recordo, entre os clientes, um fabricante de camisas. O gerente do banco renovava suas promissórias só por piedade. O pobre camiseiro vivia em perpétua soçobra. Suas camisas não eram ruins, mas ninguém as comprava.
Certa noite, o camiseiro foi visitado por um anjo. Ao amanhecer, quando despertou, estava iluminado. Levantou-se de um salto.
A primeira coisa que fez foi trocar o nome de sua empresa, que passou a se chamar Uruguai Sociedade Anônima, patriótico nome cuja sigla é U. S. A. A segunda coisa que fez foi pregar nos colarinhos de suas camisas uma etiqueta que dizia, e não mentia: Made in U. S. A. A terceira coisa que fez foi vender camisas feito louco. E a quarta coisa que fez foi pagar o que devia e ganhar muito dinheiro.

p. 158


A alienação/2

Os que mandam acreditam que melhor é quem melhor copia. A cultura oficial exalta as virtudes do macaco e do papagaio. A alienação na América Latina: um espetáculo de circo. Importação, impostação: nossas cidades estão cheias de arcos do triunfo, obeliscos e partenons. A Bolívia não tem mar, mas tem almirantes disfarçados de Lord Nelson. Lima não tem chuva, mas tem telhados a duas águas e com calha. Em Manágua, uma das cidades mais quentes do mundo, condenada a fervura perpétua, existem mansões que ostentam soberbas lareiras, e nas festas de Somoza as damas da sociedade exibiam estolas de raposa prateada.

p. 159

A alienação/3

Alaistair Reid escreve para The New Yorker, mas quase não vai a Nova York.
Ele prefere viver numa praia perdida da República Dominicana. Nessa praia desembarcou Cristóvão Colombo, alguns séculos atrás, numa de suas excursões ao Japão, e desde aqueles tempos nada mudou.
De vez em quando, o carteiro aparece entre as árvores. O carteiro vem dobrado debaixo da carga. Alaistair recebe montanhas de correspondência. Dos Estados Unidos é bombardeado por ofertas comerciais, folhetos, catálogos, luxuriosas tentações da civilização de consumo incitando a comprar.
Uma vez, entre muita papelada, chegou a propaganda de uma máquina de remar. Alaistair mostrou-a a seus vizinhos, os pescadores.
Dentro de casa? Se usa dentro de casa?
Os pescadores não conseguiam acreditar.
Sem água? Rema-se assim, sem água?
Não podiam acreditar, não podiam entender:
E sem peixes? Sem sol? E sem céu?
Os pescadores disseram a Alaistair que eles se levantavam todas as noites, muito antes do alvorecer, e se metiam mar adentro e jogavam suas redes enquanto o sol se erguia no horizonte, e que essa era a sua vida, e que gostavam daquela vida, mas que remar era a única coisa de merda naquele assunto inteiro:
Remar e a única coisa que odiamos — disseram os pescadores.
Então Alaistair explicou-lhes que a máquina de remar servia para fazer ginástica.
Para quê?
Ginástica.
Ah, bom. E o que é ginástica?

p. 160


No reino da chatice, os bons modos proíbem tudo aquilo que não é imposto pela rotina.
(A máquina de retroceder, p. 168)



A pálida

No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E tem dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem aquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado.

p. 169

O baixo astral

Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mal olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que, encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.

p. 170


O sistema/ 2

Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem oculta, rende-se culto a cultura do disfarce. Fala-se a dupla linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral para fazer. A moral para fazer se chama realismo.
A lei da realidade é a lei do poder. Para que a realidade não seja irreal, dizem os que mandam, a moral deve ser imoral.

p. 176 

Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido.
(O sistema/3, p. 178)


O crime perfeito

Em Londres, é assim: os aquecedores devolvem calor a troco das moedas que recebem. Em pleno inverno alguns exilados latino-americanos britavam de frio, sem nenhuma moeda para fazer funcionar a calefação de seu quarto.
Estavam com os olhos grudados no aquecedor, sem piscar. Pareciam devotos perante o totem, em atitude de adoração; mas eram uns pobres náufragos meditando sobre a maneira de acabar com o Império Britânico. Se pusessem moedas de lata ou papelão, o aquecedor funcionaria, mas o arrecadador encontraria as provas da infâmia.
O que fazer? Se perguntavam os exilados. O frio os fazia tremer como se estivessem com malária. E nisso, um deles lançou um grito selvagem, que sacudiu os alicerces da civilização ocidental. E assim nasceu a moeda de gelo, inventada por um pobre homem gelado.
Imediatamente, puseram mãos a obra. Fizeram moldes de cera, que reproduziam perfeitamente as moedas britânicas; depois encheram os moldes de água e os meteram no congelador.
As moedas de gelo não deixavam pistas, porque o calor as evaporava.
E assim aquele apartamento de Londres converteu-se numa praia do mar Caribe.

p. 181 

E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada.

(A casa, p. 194)

E disse que dali para a frente era conosco, porque a sorte não ajuda quem não a ajuda a ajudar.

(O exorcismo, p. 196)

Os sonhos do fim do exílio/3

As lentes dos óculos tinham se quebrado, e as chaves tinham se perdido. Ela buscava as chaves pela cidade inteira, às cegas, de joelhos, e quando finalmente as encontrava, as chaves diziam que não serviriam para abrir suas portas.

p. 200 

Como minhas incessantes viagens ao banheiro entre cerveja e cerveja me davam vergonha, resolvi dizer que o caminho da cerveja conduz ao banheiro da mesma forma que o caminho do tabaco leva ao cinzeiro, e me senti muito arguto.

(A última cerveja de Caldwell, p. 204)

Chorar

Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
Por que choram na frente dela, se ela ainda esta viva?
E os que choravam responderam:
Para que ela saiba que gostamos muito dela.

p. 214


Dizem as paredes/5

Na faculdade de Ciências Econômicas, em Montevidéu:

A droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci.

Em Santiago do Chile, nas margens do rio Mapocho:

Bem-aventurados os bêbados, porque eles verão Deus duas vezes.

Em Buenos Aires, no bairro de Flores:

Uma namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo.

p. 216

Eu, mutilado capilar

Os barbeiros me humilham cobrando meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror.
Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número.
A frase de um amigo piedoso me consola:
Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora.
Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas idéias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por ai.

p. 220 

O parto

Três dias de parto e o filho não saía:
Tá preso. O negrinho tá preso — disse o homem.
Ele vinha de um rancho perdido nos campos,
E o medico foi até lá.
Maleta na mão, debaixo do sol do meio-dia, o médico andou até aquela longidão, aquela solidão, onde tudo parece coisa do destino feroz; e chegou e viu.
Depois, contou para Glória Galván:
A mulher estava nas últimas, mas ainda arfava e suava e estava com os olhos muito abertos. Eu não tinha experiência nessas coisas. Eu tremia, estava sem nenhuma idéia. E nisso, quando levantei a coberta, vi um braço pequeninho aparecendo entre as pernas abertas da mulher.
O médico percebeu que o homem tinha estado puxando. O bracinho estava esfolado e sem vida, um penduricalho sujo de sangue seco, e o médico pensou: Não se pode fazer mais nada.
E mesmo assim, sabe-se lá por quê, acariciou o bracinho. Roçou com o dedo aquela coisa inerte e ao chegar à mãozinha, de repente a mãozinha se fechou e apertou seu dedo com força.
Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa.

p. 222

Ressurreições / 2

Eram os tempos da ditadura militar no Brasil.
Os generais deixaram-no entrar para que morresse em sua própria terra. Darcy Ribeiro chegou do exílio e uma ambulância, que o esperava ao pé do avião, levou-o diretamente ao hospital.
Darcy sabia que estava com câncer, e que o câncer tinha devorado pelo menos um de seus pulmões, mas estava alegre de alegria por estar na sua terra e sentir que ela estava tão sempre-viva e dançadoura.
O irmão de Darcy chegou da cidade de Montes Claros. Vinha para se despedir. Sentado ao lado de Darcy no hospital, olhava os próprios pés. Estava choroso e sombrio e Darcy tratava de levantar-lhe o ânimo. O cirurgião tomou Darcy pelo braço e levou-o para caminhar pelo corredor:
Não quero desanimá-lo — disse —, mas acho que o senhor deve preparar-se para o pior. Se o seu irmão sair vivo, será um milagre.
Darcy não pôde conter o riso, e o médico não entendeu.
No dia seguinte, foi operado. Darcy despertou com um pulmão a menos. Como tem tantos, nem percebeu.

p. 223 

As formigas

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

p.231


Celebração da amizade/2

Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda-chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais. Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam a manivela; e brandindo seu guarda-chuva, lançou-se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda-chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados. Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda-chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça-me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito?, senhora, que bicho picou a senhora?, esta mulher endoidou...
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou-se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silencio, ela disse:
Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa. Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende...
Meu filho morreu — repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade...
Cretinos — fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão. Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calcadas, propuseram:
Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar?
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah! Não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho. E se soubesse, também não ia levá-lo embora. Que direito tenho eu de separá-lo de seus amigos?

p. 239


E me perguntei: se Deus existe, por que fica de fora? Não será Deus ateu?
(Gelman, p. 241)


Profissão de fé

Sim, sim, por mais machucado e fodido que a gente possa estar, sempre é possível encontrar contemporâneos em qualquer lugar do tempo e compatriotas em qualquer lugar do mundo. E sempre que isso acontece, e enquanto isso dura, a gente tem a sorte de sentir que é algo na infinita solidão do universo: alguma coisa a mais que uma ridícula partícula de pó, alguma coisa além de um momentinho fugaz.

p. 243


A cerca de arame

À meia-noite da noite mais gelada do ano chegou, súbita, violenta, a ordem de formar fila. Aquela era a noite mais gelada daquele ano e de muitos anos, e uma nevoa inimiga mascarava tudo.
Aos gritos, debaixo de golpes das armas, os presos foram postos de cara contra a cerca de arame que rodeava as barracas. Das torres de vigia, os refletores atravessavam a nevoa e lentamente percorriam a longa fileira de uniformes cor-de-cinza, mãos crispadas e cabeças rapadas a zero.
Dar meia volta era proibido. Os presos escutaram ruídos de botas correndo e os sons metálicos das metralhadoras sendo armadas. Depois, silêncio.
Naqueles dias, tinha corrido na prisão o rumor:
Vão matar a gente.
Mario Dufort era um daqueles presos, e estava suando gelo.
Tinha os braços abertos, como todos, com as mãos agarrando a cerca: como ele estava tremendo, a cerca de arame tremia. Tremo de frio, disse a si mesmo, e repetiu; e não acreditou.
E teve vergonha de seu medo. Sentiu-se incomodado por aquele espetáculo que estava dando na frente dos companheiros. E soltou as mãos.
Mas a cerca de arame continuou tremendo. Sacudida pelas mãos de todos os outros, a cerca de arame continuou tremendo.
E então, Mario compreendeu.

p. 249

O céu e o inferno

Cheguei a Bluefields, no litoral da Nicarágua, no dia seguinte a um ataque dos contras. Havia muitos mortos e feridos. Eu estava no hospital quando um dos sobreviventes do tiroteio, um garoto, despertou da anestesia: despertou sem braços, olhou o médico e pediu:
Me mate.
Fiquei com um nó no estômago.
Naquela noite, noite atroz, o ar fervia de calor. Eu me estendi num terraço, sozinho, olhando o céu. Não longe dali, a música soava forte. Apesar da guerra, apesar de tudo, a cidade de Bluefields estava celebrando a festa tradicional do Paio de Mayo. A multidão dançava, jubilosa, ao redor da arvore cerimonial. Mas eu, estendido no terraço, não queria escutar a música nem queria escutar nada, e estava tentando não sentir, não recordar, não pensar: em nada, em nada de nada. E estava naquilo, espantando sons e tristezas e mosquitos, com os olhos pregados na noite alta, quando um menino de Bluefields, que eu não conhecia, estendeu-se ao meu lado e começou a olhar o céu, como eu, em silêncio.
Então, passou uma estrela cadente. Eu podia ter pedido um desejo; mas não lembrei.
O menino me explicou:
Você sabe por que as estrelas caem? A culpa é de Deus. Deus gruda elas mal. Ele gruda as estrelas com cola de arroz.
Amanheci dançando.

p. 251


As impressões digitais

Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações de meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixe chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

p. 267


Quando eu já não estiver, o vento estará, continuará estando.
(O ar e o vento, p. 269)


A ventania

Assovia o vento dentro de mim.
Estou despido. Dono de nada, dono de ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.

p. 270


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ressurreição - Machado de Assis, 1872

Um dos meus xodós literários. Esse é o primeiro romance publicado do autor. Já havia publicado poesia. Mas história romanceada é a primeira. Eu sou suspeita pra falar do Machado de Assis, simplesmente amo, sua retórica, seus enlaces, suas tramas, visceralmente humanos. Pra quem gosta de uma boa história à moda antiga, século XIX, é um livro curto que diz muito sobre a alma humana. É impossível não se identificar com algum, com alguns ou com todos os sentimentos que o autor disseca com tamanha propriedade que chega a fazer com que conheçamos à nós mesmos de maneiras diferentes a cada página. 



ASSIS, Machado de. Ressurreição. São Paulo: Saraiva, 1962. 159 p.


“O que eu peço à crítica vem a ser – intenção benévola, mas expressão franca e justa. Aplausos, quando os não fundamenta o mérito, afagam certamente o espírito e dão algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma coisa, prefere a lição que melhora ao ruído que lisonjeia. ” Advertência da primeira edição de Ressurreição, 1872.

“Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos, não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo, fruto da nossa ilusão, - e alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte”. p. 5

“- Cecília, disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado, eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, incapaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas”. Félix, p. 14

“O choro pertence ao cerimonial da separação”. Félix, p. 15

“Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos”. Meneses, p. 17.

“-Demais, continuou o doutor, animado pelo entusiasmo da viúva, a quadrilha francesa é a negação da dança, como o vestuário moderno é a negação da graça, e ambos são filhos deste século, que é a negação de tudo”. Félix, p. 26.

“Pela primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais”. p. 28

“É um pobre rapaz, inocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece?” Félix sobre Meneses, p. 38.

“A confiança também se parece com a indiferença, e a indiferença é o pior de todos os males”. Lívia à Félix, sobre seu ciúme, p. 61.

“- Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, numa espécie de sonho em ação, numa transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões... Erraríamos ambos, quem sabe?” Lívia sobre seu falecido marido, p. 76.

“- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações, que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu”. Félix, p. 78/79.

“Nem futuro nem esperanças havia; havia a candura dele, que era botão de flor, ainda entrefechado à corrupção da vida”. Sobre Meneses, p. 84.

“E se eu esperar que algum dia soe a hora da felicidade que me nega? Nada depende de nós; os próprios movimentos do coração parecem nascer de mil circunstâncias fortuitas, se não é que os rege uma lei misteriosa, e essa... Quem sabe? Um dia, talvez, - ouso crê-lo, - um dia sentirá que a simpatia que lhe inspiro se transforma, e...” Meneses à Lívia, p. 87.
“O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de uma circunstância fortuita, nem de uma longa intimidade, é uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem e completam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito, sinto que Deus não nos fez para que o amor nos unisse”. Lívia em resposta a Meneses, p. 88.

“A um coração desenganado não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes consolações”. p. 88

“Concentraste então toda a seiva do teu coração neste amor silencioso e quimérico? Não digas isso; amarás mais tarde a outro que te amará também, e serás feliz, creio eu. Murchará esta primeira flor do teu coração, mas, há seiva nele para dar vida a outra flor, tão bela talvez, e com certeza mais afortunada. O contrário Raquel, seria injustiça de Deus. O amor é a lei da vida, a razão única da existência. Encher de uma só vez a alma, sem que ninguém lhe beba o licor divino, e regressar ao céu sem ter conhecido a felicidade na terra, nem o quererá Deus, nem o temerás tu.  Falas pela boca da tua amargura de hoje; espera a ação do tempo, que é bom amigo”. Lívia à Raquel, p. 108.

“O mal que nos não espanta não nos dói contudo menos por isso”. p. 122

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O evangelho segundo Jesus Cristo - José Saramago, 1991


Esse livro teve forte censura em Portugal, e na Europa Católica em geral. Só por isso já se sabe que alguma coisa ele diz que não querem que a gente saiba, ou que não querem que a gente pense. E é justamente por esse aspecto que o livro é fantástico. Ele traz a vida de um Jesus Cristo humano. Como teria sido a vida do "messias" dadas as circunstâncias culturais da época. Se trata de uma interpretação livre do autor sobre como poderia ter se passado a vida do grande mártir, colocando em pauta questões e problemas fundamentais do pensamento e crença religiosos. Leiam, não se arrependerão.

SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991-2001. 445 p. 




"O Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro”. P. 18

“Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo, com os seus vestidos pobres que no trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o marido vãos os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina de Galileia, ainda assim terão de esperar que cheguem ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino”. P. 31

“Ao cabo, postos primeiramente os burros à manjedoura, sentaram-se os viajantes a comer, principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes”. P. 57

“(...) mas esta idade é dura e de ferro, o tempo dos milagres, ou já passou, ou ainda está para chegar, além disso, milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores”. P. 77

“Agora, com o coração desanuviado de preocupações, pensou que estaria bem perguntar a Maria como ia de dores, porém não pronunciou a palavra, lembremo-nos de que tudo isto é sujo e impuro, desde a fecundação ao nascimento, aquele terrífico sexo da mulher, vórtice e abismo, sede de todos os males do mundo, o interior labiríntico, o sangue e as umidades, os corrimentos, o rebentar das águas, as repugnantes secundinas, meu Deus, por que quiseste que os teus filhos diletos, os homens, nascessem da imundície, quando bem melhor fora, para ti e para nós, que os tivesses feito de luz e transparência, ontem, hoje e manhã, o primeiro, o do meio e o último, e assim igual para todos, sem diferença entre nobres e plebeus, entre reis e carpinteiros, apenas colocarias um sinal assustador naqueles que, crescendo, estivessem destinados a tornarem-se, sem remédio, imundos.” P. 78

“O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”. P. 83

“Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi”. P. 84

“Às tantas o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas”. P. 96

“Lá dentro é uma forja, um talho e um matadouro. Em cima de duas grandes mesas de pedra preparam-se as vítimas de maiores dimensões, os bois e os vitelos, sobretudo, mas também carneiros e ovelhas, cabras e bodes. Perto das mesas encontram-se uns altos pilares onde se dependuram, em ganchos chumbados na pedra, as carcaças das reses, e vê-se a frenética atividade do arsenal dos açougues, as facas, os cutelos, os machados, os serrotes, a atmosfera está carregada dos fumos da lenha e dos coiratos queimados, de vapor de sangue e de suor, uma alma qualquer, que nem precisará ser santa, das vulgares, terá dificuldade em entender como poderá Deus sentir-se feliz em meio de tal carnificina, sendo, como diz que é, pai comum dos homens e das bestas (...)” P. 100

“Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolas pelas faces”. P. 149

“Que verá este sol que vai nascer? Alguma vez aprenderemos a não fazer perguntas inúteis, mas enquanto esse tempo não chega aproveitemos para perguntar-nos: Que verá este sol que vai nascer?” P. 160

“Dois mil homens crucificados é muito homem morto, mas mais haveriam de parecer-nos se os imaginássemos plantados a intervalos de um quilômetro ao longo duma estrada, ou rodeando, é um exemplo, o país que há de chamar-se Portugal, cuja dimensão, na sua periferia, anda mais ou menos por aí”. P. 167

“O tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar”. P. 168

“Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançássemos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido”. P. 169

“(...) na verdade não se sabe, depois de morrer, o que acontece às dores sentidas em vida, principalmente as últimas, é possível que com a morte se acabe realmente tudo, mas também nada nos garante que, ao menos durante umas horas, uma memória de sofrimento não se mantenha num corpo que dizemos morto, não sendo mesmo de excluir ser a putrefação o último recurso que resta à matéria para, definitivamente, se libertar da dor”. P. 171

“(...) mas isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade”. P. 194

“(...) afinal a ausência é também uma morte, a única e importante diferença é a esperança”. P. 195

“(...) o tempo leva-nos até onde uma memória se inventa, foi assim, não foi assim, tudo é o que dissermos que foi”. P. 204

“Acontece isto muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não respondam”. P. 231

“- (...) mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada.
- Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios.
- Não valho tanto.
- Deus não dorme, um dia te punirá.
- Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita pesadelos de remorso. P. 233

“(...) mas a lei é claríssima neste ponto, como em todos, Eis aquilo que podereis comer diversos animais aquáticos, podeis comer tudo o que, nas águas, mares ou rios, tem barbatanas e escamas, mas tudo o que não tem barbatanas e escamas, nos mares ou nos rios, quer o que pulula na água, quer os animais que nela vivem, são abomináveis para vós, e abomináveis continuarão a ser, não comeis a sua carne e considerai os seus cadáveres como abomináveis, tudo o que, nas águas, não tem barbatanas e escamas, será para vós abominável. Os peixes réprobos, de pele lisa, aqueles que não podem ir à mesa do povo do Senhor, foram assim restituídos ao mar, muitos deles, mesmo, já tinham ganho o costume e não se preocupavam quando os levava a rede, sabiam que pronto tornariam à água, sem risco de morrerem sufocados. Em sua cabeça de peixes criam beneficiar duma benevolência especial do criador, senão mesmo de um amor particular, o que os levou, ao cabo do tempo, a considerarem-se superiores aos outros peixes, os que ficavam nas barcas, que muitas e graves faltas esses deviam ter cometido a coberto das escuras águas para que Deus, assim, sem piedade, os deixasse morrer”. P. 275
“Repare-se que para que possa cumprir-se o destino de um encontro de umas pessoas com outras, é preciso que elas consigam encontrar-se num mesmo ponto e à mesma hora, o que custa não pouco trabalho, bastava que nos demorássemos, pouco que fosse, a olhar numa nuvem no céu, a escutar o canto duma ave, a contar as entradas e saídas de um formigueiro, ou, pelo contrário, que por distração não olhássemos nem ouvíssemos nem contássemos e seguíssemos adiante, e lá se deitava a perder o que tão bem ensejado parecia, o destino é o mais difícil que há no mundo”. P. 320/321
“(...) pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler”. P. 331
“(...) o Diabo que se vá embora, se quiser, de qualquer modo já tem garantida a sua parte, e se os benefícios forem proporcionais, como parece justo, quanto mais Deus crescer, mais crescerá o Diabo.
- Fico, disse o Pastor, era a sua primeira palavra desde que se tinha anunciado. Fico, repetiu, e depois, Posso eu próprio ver algumas coisas do futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir se é verdade ou mentira o que julgo ver, quer dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são, verdades de mim, porém nunca sei até que ponto são as verdades dos outros mentiras deles”. P. 378

“(...) segundo aquela lei não escrita que manda acreditar só no que se vê, embora, já se sabe, não vejamos sempre, nós, homens, as mesmas coisas da mesma maneira, o que, aliás, se tem mostrado excelente para a sobrevivência e relativa sanidade mental da espécie”. P. 378

“- Disse Jesus, Estou à espera.
- De quê? Perguntou Deus, como se estivesse distraído.
- De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros?
- Insistes em querer sabê-lo?
- Insisto.
- Pois bem, edificar-se-á a assembléia de que te falei, mas os cavoucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas”. P. 380/381

“Como foi que aconteceu é uma idéia que sempre nos acode diante do que já não tem remédio, perguntar aos outros como foi, desesperada e inútil maneira de distrair o momento em que iremos ter de aceitar a verdade, é isso, queremos saber como foi, e é como se pudéssemos ainda pôr no lugar da morte, a vida, no ligar do que foi, o que poderia ter sido”. P. 427

“- Que quer Deus afinal? Perguntou João.
- Quer uma assembléia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo pra si. Disse Jesus
- Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre? Perguntou Tomé”. P. 435

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Memória de minhas putas tristes - Gabriel García Márquez, 2004


Ao passo que sabemos de que autor se trata, qualquer comentário se faria desnecessário. Contudo, uma vez mais García Márquez trata da velhice de uma maneira encantadora e existencialista. Numa obra bastante objetiva e breve, o autor consegue fazer com que mergulhemos na alma de seu personagem.Um lindo romance, que nos faz ir a um lugar onde nós, jovens, jamais realizamos estar, na velhice.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Memória de minhas putas tristes. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. 127 p.

Não preciso nem dizer, porque dá para reparar a léguas: sou feio, tímido e anacrônico. Mas às forças de não querer ser assim consegui simular exatamente o contrário. P. 8

[...] é um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais, mas raras vezes falhe para as que de verdade os interessam. P. 14

Ao passar na frente de O Arame de Ouro me olhei nas vitrines iluminadas e não me vi como me sentia, porém mais velho e mais mal vestido. P. 25

Que ninguém se engane, não, pensando que o que espera haverá de durar mais do que durou o que viu. P. 35

O mundo avança. Sim, respondi, avança, mas dando voltas ao redor do sol. P. 45

Os adolescentes da minha geração, ávidos pela vida, esqueceram de corpo e alma as ilusões do porvir, até que a realidade ensinou a eles que o futuro não era do jeito que sonhavam e descobriram a nostalgia. P 45

Maldição, como o rubor é desleal. P. 50

Voltei para casa atormentado pelo diabinho que sopra no ouvido as respostas devastadoras que não demos na hora certa [...]. P. 53

Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. P. 74

O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança. P. 79

É impossível não acabar sendo do jeito que os outros acreditam que você é. P. 107

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Entrevista com o Vampiro - Anne Rice, 1976

Pois então. Finalmente consegui ler o livro mais famoso da Anne Rice. Não tem o que dizer. Simplesmente fantástico. E uma ressalva, o filme sem dúvida é uma das melhores adaptações literárias para a telona que eu já vi. Além de ser fiel ao texto, com pequenas alterações, mais no sentido de traduzir melhor para a linguagem do cinema, o filme captura muito bem a atmosfera do livro. Enfim, mais que indicados, livro e filme. Vergonha eu ainda não ter lido o livro =P.


RICE, Anne. Entrevista com o vampiro.7ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 309 p.

Esta é uma idéia muito mais mundana. As pessoas que param de crer em Deus ou na bondade continuam a acreditar no diabo. Não sei por que. Não, realmente não sei por que. O mal é sempre possível. E a bondade é eternamente difícil. P. 20

Acho que é esta a função do monumento. Seja a pequena casa ou a mansão de colunas gregas ou ferro trabalhado. O monumento não diz que este ou aquele homem andou por ali. Não, mas que aquilo que sentiu em determinada época e em determinado local ainda continua. P. 45

- Mas por que... disse que Lestat não devia ter feito que começasse com pessoas. Quer dizer... que para você era uma opção estética, e não moral?
- Se tivesse me perguntado então, teria lhe dito que era estética, que pretendia compreender a morte por etapas. Que a morte de um animal me proporcionava tal prazer e experiência que mal tinha começado a compreendê-la, e desejava resguardar a experiência da morte humana para uma fase mais madura. Mas era moral. Por que na verdade, todas as decisões estéticas são morais.
- Não compreendo - disse o rapaz. – Pensava que a estética pudesse ser inteiramente amoral. O que diz do clichê do artista que abandona mulher e filhos para pintar? Ou Nero, tocando harpa enquanto Roma ardia?
- Ambas são atitudes morais. Ambas serviram a um bem maior, na mente do artista o conflito se estabelece entre a moral do artista e a sociedade, e não entre estética e moralidade. Mas freqüentemente isto não é compreendido. E aí surge o desperdício, a tragédia. Um artista, roubando quadros de uma loja, por exemplo, imagina ter tomado uma decisão inevitável mas imoral, e então se vê como um perseguido pelo destino. O que se segue é desespero e irresponsabilidade mesquinha, como se a moralidade fosse um imenso mundo de vidro que pudesse ser irremediavelmente maculado por um único ato. Mas, na época, esta mão era minha maior preocupação. Ainda não pensava nisso. Acreditava que só matava animais por razões estéticas, e me atinha à grande questão moral: se minha própria natureza era maldita ou não.
- Pois, compreende, apesar de Lestat nunca me dito nada sobre diabos ou infernos, acreditava estar condenado desde o momento em que me uni a ele, assim como Judas deve ter acreditado quando colocou um laço em torno do pescoço. Compreende? P. 73

- A grande aventura de nossas vidas. Qual o significado da morte quando se pode viver até o fim do mundo? E o que é “o fim do mundo”, além de uma frase, pois quem sabe, ao menos, o que é o mundo? Já vivi dois séculos, vi as ilusões de um serem transferidas para o outro, sendo eternamente jovem e eternamente velho, sem possuir ilusões, vivendo cada momento de um modo que me fazia pensar num relógio de prata tiquetaqueando no vazio: o painel pintado, os ponteiros delicadamente esculpidos por mãos jamais vistas por alguém, sem olhar para ninguém, iluminado por uma luz que não era luz, como aquela sob a qual Deus fez o mundo antes de criar a luz. Funcionando, funcionando, funcionando, com a precisão de um relógio, em uma sala tão vasta quanto o universo. P. 135

- Minha memória é nítida demais, aguçada demais. As coisas deviam ficar guardadas e o que não se resolvesse deveria se desvanescer. Mas as imagens ficam próximas de meu coração como retratos em medalhões, ainda que sejam retratados tão monstruosos que nenhum artista ou câmera jamais poderiam registrar [...]. P. 192

- Então não somos... – cheguei para a frente. - ...os filhos de Satã?
- Como poderíamos ser filhos de Satã? – perguntou. – Acredita que Satã criou este mundo que nos cerca?
- Não, creio que Deus o criou, se é que alguém o fez. Mas Ele também fez Satã, e quero saber se somos seus filhos!
- Exatamente. Se você acredita que Deus criou Satã, deve compreender que todos os poderes de Satã provêm de Deus, que Satã é simplesmente filho de Deus, e que nós também o somos. Na verdade não há filhos de Satã. P. 216

[...] Não há gradações de perversidade? Será o mal um imenso e perigoso poço onde se cai ao primeiro pecado, mergulhando até o fundo? P. 217

- Este mal, este conceito, ele nasce da decepção, da amargura. Vê? Filhos de Satã! Filhos de Deus! Esta é a única pergunta que me faz, este é o único poder que o obceca. Por que precisa nos transformar em deuses e diabos, quando o único poder que existe está dentro de nós mesmos? Como pode acreditar nessas mentiras fantásticas, nesses mitos, nessas caricaturas do sobrenatural? P. 220

[...] Para os vampiros, o amor físico culmina e se satisfaz em uma coisa: a morte. P. 234

[...] Quantos vampiros você pensa que têm condições para a imortalidade? Para começar, têm uma visão completamente distorcida de imortalidade. Ao se tornarem imortais, querem que todas as características de suas vidas permaneçam imutáveis: carruagens seguindo sempre a mesma moda, roupas com cortes a seu gosto, homens se comportando e falando do mundo que sempre compreenderam e apreciaram. Quando, na verdade, tudo muda, exceto o próprio vampiro. Tudo, a não ser o vampiro, está sujeito a corrupções e distorções constantes. Em pouco tempo, com uma mente inflexível, e geralmente mesmo para as mentalidades mais flexíveis, esta imortalidade torna-se uma sentença a ser cumprida num asilo de vultos e formas inexoravelmente incompreensíveis e sem valor. Numa noite o vampiro acorda e percebe aquilo que há décadas temia: que simplesmente não quer mais viver, a qualquer preço. O estilo, moda ou forma de existência que tornaram a imortalidade tão atraente foram varridos da face da terra. E não há mais nada para aliviar o desespero, a não ser o ato de matar. E este vampiro sai para morrer. Ninguém encontrará seus restos. Ninguém saberá para onde foi. E geralmente ninguém a sua volta – pudesse ele ainda procurar a companhia de outros vampiros – ninguém saberá que ele está desesperado. Há muito tempo terá parado de falar de si mesmo ou de qualquer outra coisa. Ele desaparecerá. P. 259 – 260

- Costumava acreditar que superaria isto. Que quando a dor por tudo que aconteceu o deixasse, voltaria a ter calor e se encheria de amor, e se encheria daquela curiosidade feroz e insaciável que demonstrou em nosso primeiro encontro, aquela consciência inveterada e aquela sede de saber que o levou à Paris e à minha cela. Pensei que fizessem parte de você e não pudessem morrer. [...] E acreditei que o atrairia e o prenderia a mim. E teríamos muito tempo, seríamos professor um do outro. Todas as coisas que lhe trouxessem felicidade também me trariam, e eu seria o guardião de sua dor. Meu poder seria o seu poder. Minha força também. Mas você está morto por dentro, é frio e está fora de meu alcance! É como se eu não estivesse aqui, a seu lado. E sem estar com você, tenho a terrível sensação de que simplesmente não existo. E você é tão insensível e distante quanto estas estranhas pinturas modernas de linhas e formas brutas que não posso amar ou compreender, tão enigmático quanto as esculturas mecânicas atuais, que não têm forma humana. Tremo quando estou próximo de você. Olho em seus olhos e não encontro meu reflexo... P. 304


Filme: Entrevista com o Vampiro
Direção: Neil Jordan
Ano: 1994
Origem: Estados Unidos