sexta-feira, 2 de julho de 2010

As veias abertas da América Latina - Eduardo Galeano, 1971

Comentava com um amigo sobre esse livro e ele me disse que estava um pouco defasado. Bem, sem dúvida, algumas informações núméricas, estatísticas e porcentagens podem ter mudado ao longo destes quase 40 anos. Mas o fato é que esta obra é imprescindível para entender o mundo em que vivemos nos dias de hoje, entender como viemos parar nesta altura da estrada, principalmente para nós, latino-americanos. Uma dos melhores aspectos do livro é que o Galeano consegue dar uma cadência de romance para uma obra que é, em si mesma, extremamente densa. Essencial! Um livro que com certeza mudará suas perspectivas e concepções sobre muitas coisas!



GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. 48. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 365 p.


Temos guardado um silêncio bastante parecido com a estupidez...
(Proclamação insurrecional da Junta Tuitiva na cidade de La Paz, em 16 de julho de 1809)


Vivemos num mundo que trata melhor os mortos do que os vivos. Nós, os vivos, somos fazedores de perguntas e fornecedores de respostas, alem de termos outros defeitos graves, imperdoáveis aos olhos de um sistema em que a morte, como o dinheiro, aperfeiçoa as pessoas. P. 9

Vale a pena morrer por uma coisa sem a qual não vale a pena viver. P. 12                                                       

Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um conceito medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos dominados. “Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-americano Woodrow Wilson. Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido”. E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa identificação. P. 17

Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. P. 18

O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza, que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso.
Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento - São Paulo, Buenos Aires, a cidade do México -, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças; obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam. P. 20

A economia colonial latino-americana dispôs da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para possibilitar a maior concentração de riqueza que jamais possuiu qualquer civilização na história mundial. P. 58

Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis para as consciências culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de carga, porque resistiam a um peso maior do que o que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem comprovava-se que, na realidade, os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar “a maldade natural” dos indígenas. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os “homens degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa. P. 61

A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores conseqüências do que o sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas exigiam grandes deslocamentos da população e desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só extinguiam incontáveis vidas através do trabalho forçado, como abatiam indiretamente o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos socavãos, submetidos à servidão dos encomenderos e obrigados a entregarem por nada as terras que obrigatoriamente deixavam ou descuidavam. Na costa do Pacífico, os espanhóis destruíram ou deixaram extinguir enormes cultivos de milho, mandioca, feijão, amendoim, batata doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões de terra que tinham sido trabalhadas pela rede incaica de irrigação. Quatro séculos e meio depois da conquista, só restam pedras e capim bravo em lugar da maioria dos caminhos que unia o império. Embora as gigantescas obras públicas dos incas fossem, em sua maior parte, arrasadas pelo tempo ou pela mão dos usurpadores, sobram ainda, desenhadas na cordilheira dos Andes, os intermináveis terraços que permitiam e ainda permitem cultivar as ladeiras das montanhas. P.64

Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o contato com a morte.(...)
Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do extinto Serviço de Proteção aos Índios, designado pelo presidente Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968. P. 71

Portugal não se limitou a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos teares e fiadores brasileiros. P. 78

Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e um dos fatores primordiais da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas. P. 84

E é preciso levar em conta que, neste sentido, em uma sociedade socialista, ao contrário da sociedade capitalista, os trabalhadores já não atuam tangidos pelo medo ao desemprego nem pela cobiça. Outros motores - a solidariedade, a responsabilidade coletiva, a tomada de consciência dos deveres e direitos que colocam os homens além do egoísmo - devem ser colocados em funcionamento. E não se muda a consciência de um povo inteiro num instante. Quando a Revolução conquistou o poder, segundo Fidel Castro, a maioria dos cubanos não era sequer antimperialista. P. 104

O açúcar arrasou o Nordeste. A faixa úmida do litoral, bem regada por chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto por matas tropicais da Bahia até o Ceará. Esta região de matas tropicais converteu-se, como diz Josué de Castro, em região de savanas5. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo germinava com exuberante vigor, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados, terras erodidas.
Fizeram-se, a princípio, plantações de laranjas e mangas, que foram abandonadas e se reduziram a pequenas hortas que rodeavam a casa do dono do engenho, exclusivamente reservadas para a família do plantador branco. Os incêndios que abriam terras aos canaviais devastaram a floresta e com ela a fauna; desapareceram os cervos, os javalis, as toupeiras, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a flora e a fauna foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos. P. 87

O açúcar do trópico latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de política e também de moral”, dizia Augusto Cochin. P. 106

No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas inglesas os escravos acusados de crimes morriam esmagados entre os tambores dos trapiches de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenhos no Brasil, para evitar semelhantes excessos: “Aos administradores não se lhes deve consentir de nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que andam grávidas nem pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e podem ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus chicotes de couro ou cânhamo sobre as costas das escravas grávidas que houvessem cometido qualquer falta, porém não sem antes deitá-las de boca para baixo, com o ventre num pequeno buraco, para não estropiar a “peça”; P. 114

Do Nordeste vieram, transportados como gado, os homens nus que da noite para o dia levantaram a cidade de Brasília no centro do deserto. Esta cidade, a mais moderna do mundo, está hoje cercada por um vasto cinturão de miséria: terminado o trabalho, os candangos foram expulsos para as cidades satélites e, sempre prontos para qualquer serviço, vivem dos desperdícios da resplandecente capital. P. 117

Já agonizava o século quando os cafeicultores, convertidos na nova elite social do Brasil, apontaram o lápis e fizeram as contas: eram mais baratos os salários de subsistência do que a compra e a manutenção dos escassos escravos. Aboliu-se a escravidão em 1888, e ficaram assim inauguradas as formas combinadas de servidão feudal e trabalho assalariado que persistem em nossos dias. P. 129

(...) é lícito confundir prosperidade de uma classe com o bem-estar do país? P. 135

(...) o horror da violência não fez mais do que pôr em evidência o horror do sistema. P. 137


O gaúcho dos postais folclóricos, tema de quadros e poemas, tem pouco a ver com o peão que trabalha, na realidade, terras grandes e estranhas. As alpargatas ocupam o lugar das botas de couro; um cinturão comum, ou às vezes um simples barbante, substitui os largos cinturões com adornos de ouro e prata. Aqueles que produzem a carne perderam o direito de comê-la: os criollos raras vezes têm acesso ao churrasco criollo, a carne suculenta e tenra, dourada nas brasas. Embora as estatísticas internacionais sorriam, exibindo rendas médias enganosas, a verdade é que o “ensopado”, guisado de macarrões e tripas de capão, constitui a dieta básica, carente de proteínas, dos camponeses no Uruguai. P. 156

A reforma agrária já não é um tema maldito: os políticos aprenderam que a melhor maneira de não fazê-la consiste em invocá-la continuamente. P. 166

Os laboratórios científicos do governo, das universidades e das grandes corporações envergonham a imaginação com o ritmo febril de suas invenções e descobertas, mas a nova tecnologia não encontrou a maneira de prescindir dos materiais básicos que a natureza, e só ela, proporciona. P. 176

A imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescindíveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia brasileira. Na década de 60, numerosas empresas norte-americanas, conduzidas pela mão de aventureiros e contrabandistas profissionais, se lançaram num rush febril sobre esta selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipamentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de ondas de luz de intensidade variável, electromagnetrômetros, para radiografar o subsolo rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os informes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas, interessadas no assunto, graças aos bons serviços do Geological Survey do governo dos Estados Unidos. P. 179

Sempre entregam os recursos ao imperialismo em nome da falta de recursos. P. 179

(...) é sempre efêmero o sopro de glórias e o peso das catástrofes é sempre perdurável. P.182
Curiosa inversão das “leis do mercado”: o preço do petróleo cai, embora a demanda mundial não deixe de aumentar, à medida que se multiplicam as fábricas, os automóveis e as usinas geradoras de energia. E outro paradoxo: embora o preço do petróleo baixe, sobe em todos os lugares o preço dos combustíveis que os consumidores pagam. Há uma desproporção descomunal entre os preços do cru e dos derivados. Toda esta cadeia de absurdos é perfeitamente racional; não é necessário recorrer às forças sobrenaturais para encontrar uma explicação. Porque o negócio do petróleo no mundo capitalista está, como vimos, em mãos de um cartel todo-poderoso. P. 205

O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nasceram juntos para negar, aos países subdesenvolvidos, o direito de proteger suas indústrias nacionais, e para desalentar neles a ação do Estado. Atribuir-se-ão propriedades curativas infalíveis à iniciativa privada. Todavia, os Estados Unidos não abandonarão nunca uma política econômica que continua sendo, na atualidade, rigorosamente protecionista, e que certamente tem bons ouvidos às vozes da própria história: no norte, nunca confundiram a doença com o remédio. P. 265

A embaixada norte-americana participara diretamente no golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. A queda de Goulart, herdeiro de Vargas no estilo e nas intenções, assinalou a liquidação do populismo e da política de massas. P. 275

A terapêutica piora o doente para melhor impor-lhe a droga dos empréstimos e das inversões. O FMI proporciona empréstimos ou dá a imprescindível luz verde para que outros os proporcionem. Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional, sem cujo visto o sistema bancário norte-americano não afrouxa os cordões da bolsa; o Banco Mundial, a Agência para o Desenvolvimento Internacional e outros organismos filantrópicos de alcance universal também condicionam seus créditos à assinatura e cumprimento das Cartas de Intenções dos governos ante o onipotente organismo. Todos os países latino-americanos reunidos não chegam a somar a metade dos votos de que dispõem os Estados Unidos para orientar a política deste supremo fazedor do equilíbrio monetário mundial; o FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. P. 286

A propósito do dumping de preços, é ilustrativa a história da conquista de uma fábrica brasileira de fitas adesivas, a Adesite, por parte da poderosa Union Carbide. A Scotch, conhecida empresa com sede em Minnesota e tentáculos universais, começou a vender a preço cada vez mais baixos suas próprias fitas adesivas no mercado brasileiro. As vendas da Adesite iam descendo. Os bancos lhe cortaram os créditos. A Scotch continuava baixando seus preços: caíram em 30%, depois em 40%. E entrou, então, a Union Carbide em cena: comprou a fábrica brasileira a preço de desespero. Posteriormente, a Union Carbide e a Scotch se entenderam para repartir o mercado nacional em duas partes: dividiram o Brasil, a metade para cada uma. E, de comum acordo, elevaram os preços das fitas adesivas em 50%. Era a digestão. A lei antitruste, dos velhos tempos de Vargas, tinha sido derrogada anos atrás. P. 288

Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens. P.337

Mas provoca-me engulhos, confesso, ler alguns trabalhos valiosos de certos sociólogos, politicólogos, economistas ou historiadores que escrevem em código. A linguagem hermética nem sempre é o preço inevitável da profundidade. Em alguns casos pode estar simplesmente escondendo uma incapacidade de comunicação, elevando-a à categoria de virtude intelectual. Suspeito que o fastio serve, dessa forma, para bendizer a ordem estabelecida: confirma que o conhecimento é um privilégio das elites. P. 340

A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus? Culpa da natureza? Do clima modorrendo? Das raças inferiores? A religião e os costumes? Não será a desgraça um produto da história, feita por homens, e que, portanto, pelos homens pode ser desfeita?
A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita escolhe o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus privilégios pela herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e esta coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível. P. 341

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segunda-feira, 14 de junho de 2010

O príncipe - Niccolò Machiavelli, 1513


Eu sempre achei que esse livro constituísse uma leitura muito chata ou difícil, mas o fato é que ela é muito agradável de ler e tem um vocabulário simples, apesar das construções frasais bem rebuscadas, como característica da época, mas nada que atrapalhe ou impeça a leitura.São, inclusive, pensamentos bastante simples e objetivos que o autor expõe. Com certeza nos ajuda nas concepções sobre "Estado", "governo", etc. Li, em algum lugar que não me recordo agora, que o livro pode ser uma grande ironia do autor. Para tal é importante entender o contexto histórico no qual o livro foi concebido, e também a própria trajetória do autor, que foi funcionário diplomático do governo italiano, acusado de traição e afastado do mundo político. Ora o livro pode ser visto como uma tentativa de voltar para este cenário político, já que a obra é diretamente elaborada para o monarca italiano, ora pode se vislumbrar nela um certo nível de sarcasmo. Vai do leitor tirar suas conclusões. Não só recomendado como necessário, para um melhor entendimento da história do pensamento político.


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MACHIAVELLI, Niccolò. O príncipe. São Paulo: Círculo do Livro, 1982. 169 p.




Tanto nomini nullum par elogium

Tão grande nome nenhum elogio alcança
(Epitáfio no túmulo do autor)



Os principados são: ou hereditários, quando seu sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos. Os novos podem ser totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou o são como membros acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é o reino de Nápoles em relação ao rei da Espanha. Estes domínios assim obtidos estão acostumados, ou a viver submetidos a um príncipe, ou a ser livres, sendo adquiridos com tropas de outrem ou com as próprias, bem como pela fortuna ou por virtude. P. 37

Os romanos, nas províncias de que se assenhorearam, observaram bem estes pontos: fundaram colônias, conquistaram a amizade dos menos prestigiosos, sem lhes aumentar o poder, abateram os mais fortes e não deixaram que os estrangeiros poderosos adquirissem conceito. P. 45

É que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere ser destruído por ela, porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por benefícios recebidos. P. 55

Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado. P. 97

Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade. P. 101

Deve-se considerar não haver coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem mais perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas ordens. Isso porque o introdutor tem por inimigos todos aqueles que obtinham vantagens com as velhas instituições e encontra fracos defensores naqueles que das novas ordens se beneficiam. Esta fraqueza nasce, parte por medo dos adversários que ainda têm as leis conformes a seus interesses, parte pela incredulidade dos homens: estes, em verdade, não crêem nas inovações se não as vêem resultar de uma firme experiência. Donde decorre que a qualquer momento em que os inimigos tenham oportunidade de atacar, o fazem com calor de sectários, enquanto os outros defendem fracamente, de forma que ao lado deles se corre sério perigo. P. 59

Ainda, não evite o príncipe de incorrer na má faina daqueles vícios que, sem eles, difícil se lhe torne salvar o Estado; pois, se bem considerado for tudo, sempre se encontrará alguma coisa que, parecendo virtude, praticada acarretará ruína, e alguma outra que, com aparência de vício, seguida dará origem à segurança e ao bem-estar. P. 103

Conseqüentemente se conclui que os bons conselhos, venham de onde vierem, devem nascer da prudência do príncipe, e não a prudência do príncipe resultar dos bons conselhos. P. 139

















sexta-feira, 4 de junho de 2010

O lobo da estepe - Hermann Hesse, 1927



Todo mundo, em dados momentos, já se sentiu um pouco "lobo da estepe", fato que caracteriza o primeiro gancho que nos mantém presos ao livro. O lobo da estepe é existencialismo puro, e existencialismo do melhor. Embora o livro tenha em si um caráter um tanto quanto dramático, ainda assim nos inspira uma sensação de profunda esperança. A impressão que tive é a de ser levada ao fundo do poço, à decadência e ao desânimo mais profundos de um ser humano e, depois, quase que vertiginosamente, ascender ao mais belo e verdadeiro sentimento de esperança. É um livro muitíssimo curto em relação à tudo o que ele nos ensina, e ao enorme horizonte que nos abre. 




HESSE, Hermann. O lobo da estepe. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. 200 p. 

Quando se falava com ele e, o que era habitual, ele se deixava ir além dos limites do convencional e dizia coisas pessoais e singulares, então a palestra passava imediatamente a subordinar-se a ele, de vez que havia pensado mais do que os outros homens e tinha nas questões espirituais aquela quase fria objetividade, aquela segurança de pensar e de saber que só possuem os homens verdadeiramente espirituais, que carecem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade. P. 6

... o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! Lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade; expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: “Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!” E toda a celebridade, toda a inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas momices! P. 7

O ocupante daquele quarto devia ser um erudito; com isso concertava bem o cheiro de cigarro que impregnava todo o ambiente e as pontas caídas no chão e cinzeiros espalhados por toda a parte. Entretanto, a maior parte dos livros não era de conteúdo científico, mas obras de poetas de todos os tempos e países. P. 10

Um homem da Idade Média condenaria totalmente o nosso estilo de vida atual como algo muito mais cruel, terrível e bárbaro. Cada época, cada cultura, cada costume e tradição têm o seu próprio estilo, tem sua delicadeza e sua severidade, suas belezas e crueldades, aceitam certos sofrimentos como naturais, sofrem pacientemente certas desgraças. O verdadeiro sofrimento, o verdadeiro inferno da vida humana a reside ali onde se chocam duas culturas ou duas religiões.. Há momentos em que toda uma geração cai entre dois estilos de vida, e toda a evidência, toda a moral, toda a salvação e inocência ficam perdidos para ela. P. 19

AH! É difícil achar esse trilho de Deus em meio à vida que levamos, na embrutecida monotonia de uma era de cegueira espiritual, com sua arquitetura, seus negócios, sua política e seus homens! Como não haveria de ser eu um Lobo da Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito! Não consigo permanecer por muito tempo num teatro ou num cinema. Mal posso ler um jornal, raramente leio um livro moderno. Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias, embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros tantos anseiam. Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo. E, de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível. P. 26

... quando há dois inimigos mortais num mesmo sangue e na mesma alma, então a vida é uma desgraça. P. 40

... é necessário esclarecer que não se devem considerar suicidas somente aqueles que se matam. Entre estes há suicidas que só o chegaram a ser por mero acaso, e de cuja essência do suicídio não fazem realmente parte. Entre os homens sem personalidade, sem características definidas, sem destino traçado, entre os homens incapazes e amorfos, há muitos que perecem pelo suicídio, sem por isso pertencerem ao tipo dos suicidas, ao passo que há muitos que devem ser considerados suicidas pela própria natureza de seu ser, os quais, talvez a maioria, nunca atentaram efetivamente contra a própria vida. P. 45

O "burguês, como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio-termo entre os inumeráveis extremos e pares opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado, a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação de seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tente plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranqüilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável.
O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
E compreensível que esta débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios.
Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê? A resposta é a seguinte: Por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades de seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders* que, em conseqüência, a querem rodear com a vaga indecisão e a elasticidade de seus ideais. P. 49-50

Viver intensamente só se consegue à custa do eu. P. 49

O homem não é capaz de pensar em alta escala, e mesmo o mais espiritual e altamente intelectualizado pode contemplar o mundo e a si próprio através das lentes de fórmulas enganosas e simplistas — especialmente a si próprio! Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como unidade. E apesar de essa ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se recompõe. P. 54

... o ser se compõe de uma pluralidade de seres como um feixe de eus... P. 55

O peito, o corpo, é sempre uno, mas as almas que nele residem não são nem duas, nem cinco, mas incontáveis, o homem é um bulbo formado por cem folhas, um tecido urdido com muitos fios. P. 56

Mas as coisas não se passam na vida de maneira tão simples como em nosso pensamento, nem tão rude como em nosso pobre idioma de idiotas... P. 57

Religião e pátria, família e Estado careciam de significação para mim e já nada me importava; a presunção da ciência, das profissões, das artes me causava asco; meus pontos de vista, meu gosto, todo o meu pensamento, com o que em outras épocas brilhara como homem bem conceituado, tudo estava agora abandonado e embrutecido e causava suspeita a muita gente. Se em todas as minhas dolorosas transmutações adquirira algo de indizível e imponderável, caro tivera de pagá-lo, e em cada uma delas minha vida se tornara mais dura, mais difícil, mais solitária e perigosa. P. 64

Minha resolução de morrer não era o produto do humor de uma hora, era um fruto maduro e são, que havia sazonado lentamente até atingir a plenitude, embalado pelo vento do destino cujo próximo sopro haveria de deitá-lo ao chão. P. 65

Seria descoberto, talvez muito em breve, pois não só as imagens e acontecimentos presentes e momentâneos poderiam chegar continuamente até nós, como a música de Paris ou de Berlim se faz agora audível em Frankfurt ou em Munique, mas também tudo o que já aconteceu fica registrado e pode tornar-se atual; e que um dia, com fios ou sem eles, com ou sem ruídos, chegaremos a ouvir a voz do rei Salomão ou a de Walter Von der Vogelwide. E que tudo isto, como hoje os primórdios do rádio, só servirá ao homem para fugir de si mesmo e de sua meta e envolver-se numa rede cada vez mais cerrada de distrações e ocupações inúteis. P. 95

Não compreende, meu ilustre senhor, que eu lhe agrado e tenho importância para você exatamente por ser como um espelho seu, porque dentro de mim há algo que responde e compreende o seu ser? Na verdade, todos os homens deveriam ser espelhos uns dos outros e responder-se e compreender-se mutuamente; mas os corujões como você são um tanto estranhos e caem facilmente no engano de acreditar que não podem mais ler nem ver nada nos olhos dos demais, que isso já não lhes diz respeito. E quando um corujão encontra de repente um rosto que o contempla de verdade, sente nele algo assim como uma resposta e um parentesco, e se alegra, naturalmente. P. 99

Mas pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros. P. 102

Quer fosse alta perspicácia quer simples ingenuidade, quem vivia assim tão no presente e sabia apreciar tão cuidadosa e amigavelmente cada florzinha do caminho, estava acima de tudo e a vida nada podia contra ela. P. 102

— Bem, na minha opinião não há nenhum sentido em falar-se a respeito de música. Nunca falo sobre isto. Que responder, então, às suas observações eruditas e judiciosas? O senhor tem toda a razão naquilo que afirma. Mas, veja, eu sou um músico, não um erudito, e no que diz respeito à música acho que não há a menor importância em estar alguém com a razão. A música não depende de estarmos com razão, de termos bom gosto ou erudição musical e tudo o mais.
— Ah, não? E de que depende então?
— De se fazer música, Sr. Haller, de se fazer música tão boa e tão abundante quanto possível e com toda a intensidade de que alguém é capaz. Aí é que está a coisa, Monsieur. Ainda que eu tivesse na memória toda a obra de Bach e de Haydn e pudesse dizer as coisas mais admiráveis a respeito delas, isto não teria a menor utilidade para os outros. Mas quando tomo meu instrumento e toco um shitnmy bem movimentado, seja este bom ou mau, há de causar alegria a alguém, entrará pelas pernas e até chegará ao sangue. Isto e somente isto é o que importa. Observe a fisionomia dos pares num salão de dança no momento em que a música volta a tocar após uma pausa prolongada, observe como os olhos brilham, como as pernas se movem e os rostos começam a sorrir. É por isso que se faz música.
— Muito bem, Sr. Pablo. Mas não é só a música sensual que existe, existe também a espiritual. Além daquela música que se executa no momento, existe a música imortal que sobrevive mesmo quando já não é interpretada. Pode estar uma pessoa sozinha deitada e vir lhe ao pensamento um trecho da Flauta Mágica ou da Paixão Segundo Mateus, então a música se faz realidade sem que alguém precise de soprar a flauta ou de arranhar o violino.
— Sem dúvida, Sr. Haller. Também o Yearning e Valencia são reproduzidos cada noite por muitas pessoas solitárias e sonhadoras; até a mais humilde datilografa tem na cabeça, quando está no escritório, os ritmos do último one-step e acompanha no teclado o seu compasso. O senhor tem razão. A todas essas pessoas solitárias eu concedo a música muda, seja ela o Yearning, seja a Flauta Mágica ou Valencia. Mas, de onde recebem, porém, esses homens a música solitária e muda? Recebem-na de nós, dos músicos, pois primeiro ela tem de ser executada e ouvida e penetrar no sangue, antes que alguém possa pensar nela sozinho em seu quarto e com ela sonhar.
— De acordo — disse friamente. — No entanto, não se pode colocar no mesmo plano a música de Mozart e o último foxtrote. E não é a mesma coisa servir ao público música divina e eterna ou música barata e efêmera.
Quando Pablo percebeu a excitação de minha voz, assumiu a expressão facial mais amável, tocou-me o braço e falou com incrível doçura:
— Ah! meu caro senhor, nisto dos planos pode ser que o senhor tenha toda a razão.
Nada tenho a objetar que coloque Mozart, Haydn e Valentia no plano que melhor lhe agrade. A mim pouco importa. Nada tenho de decidir sobre tais planos, nunca me perguntaram nada sobre eles. É possível que continuem a executar Mozart daqui a cem anos e talvez daqui a dois anos já nenhuma orquestra toque Valencia, mas isso podemos deixar tranqüilamente nas mãos de Deus. Ele é justo e tem em suas mãos a duração da vida de todos nós, até mesmo de cada valsa e de cada foxtrote. Ele saberá fazer o que é justo. Mas nós os músicos temos de fazer a nossa parte, o que é nosso dever e nosso ofício: devemos tocar o que o público pede no momento e devemos fazê-lo bem e de maneira bela e tocar com todo o entusiasmo possível.
Suspirando, assenti também a isto. Não havia jeito de enquadrar o homem. P. 120

Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas "responsabilidades" políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país lêem esta espécie de jornal; lêem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe "pátria", não existe "ideal" algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas idéias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo.
Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.
— Sim — disse em seguida — você tem razão. Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.
— Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.
Estranho foi o olhar que Hermínia me dirigiu; um olhar de regozijo, cheio de ironia e malícia, de compreensão e camaradagem, mas também cheio de arrogância, de consciência e de profunda seriedade.
— Isto não se aplica a você — disse em tom maternal. — Sua vida não será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa alcançar? Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra resplandece tão radiosa num breve instante. P. 106-108

E não temos ninguém que nos guie, a não ser nosso desejo de chegar. P. 139







quinta-feira, 22 de abril de 2010

A história do ladrão de corpos - Anne Rice, 1993

Digo que este é um dos melhores da autora. Sempre profundamente comprometida com questões existenciais "vampirescas", Rice desta vez deixa Lestat nu em pelo. E pra quem é fã do vampiro mais inquieto  e perverso da autora, ganha uma viagem pela alma dele, entendendo um pouco melhor como funciona sua mente insana. Além desse aspecto, a autora traz também, como de costume, uma interessante teoria sobre uma bizarra experiência de "troca de corpos", Recomendadíssimo! Segue fichamento.




A civilização ocidental nem por um segundo vai oscilar à margem do abismo. E não haverá revelações de tempos remotos, nem meias-verdades e adivinhações apresentadas pelos velhos, nem promessas de respostas que de fato não existem e jamais existiram.
p. 12

         Era apenas melancólico, sombrio, a ausência do que faz a vida digna de ser vivida – o calor do fogo e das carícias, dos beijos e das discussões, do amor, do desejo e do sangue.
Ah, os deuses astecas deviam ser vampiros sedentos para convencer aquelas pobres almas humanas de que o universo cessaria de existir se o sangue não fosse derramado. Imagine, presidir a cerimônia naquele altar, estalando os dedos para outro e outro e mais outro, espremendo aqueles corações encharcados de sangue contra os lábios, como cachos de uva.
p. 39


Você tem razão. Foi desprezível o modo que o deixei. Pior, foi covardia. Prometo que, quando nos encontrarmos novamente, vou deixá-lo dizer tudo que tem a dizer.
Eu tenho uma teoria sobre Rembrandt. Passei muitas horas estudando seus quadros em todas as partes do mundo – em Amsterdã, Chicago, Nova York, nos lugares em que eles estão – e como eu disse, acredito que tantas almas tão perfeitas não poderiam ter existido como Rembrandt nos quer fazer acreditar.
Esta é a minha teoria e por favor, quando ler esta carta, lembre-se de que ela acomoda todos os elementos envolvidos. E essa acomodação era outrora a medida da elegância das teorias... antes da palavra “ciência” passar a significar o que significa hoje.
Acredito que Rembrandt vendeu a alma ao demônio quando era jovem. Foi um negócio simples. O demônio prometeu que ele seria o pintor mais famoso do seu tempo. O demônio enviou milhares de mortais para que Rembrandt os retratasse. Deu riqueza a Rembrandt, uma casa encantadora em Amsterdã, uma esposa e mais tarde uma amante, porque estava certo de que teria sua alma, no fim.
Mas o encontro com o demônio provocou uma mudança em Rembrandt. Depois de ver a prova inegável do mal, passou a ser atormentado pela seguinte pergunta. O que é o bem? Procurava nos rostos dos seus modelos a divindade interior e com surpresa viu que era capaz de encontrar uma fagulha dessa divindade nos homens mais desprezíveis.
Seu talento era tal que – e por favor, compreenda, o demônio não conferiu a Rembrandt nenhuma habilidade artística; ele possuía naturalmente esse talento – não só podia ver a bondade, como também podia reproduzi-la na tela, podia fazer com que seu conhecimento e sua fé nessa bondade impregnasse o todo.
A cada retrato ele compreendia mais profundamente a graça e a bondade que existiam nos homens. Compreendia a potencialidade de compaixão e de sabedoria que existe em cada alma humana. Sua arte foi se aperfeiçoando à medida que trabalhava; o vislumbre do infinito tornava-se cada vez mais sutil, a pessoa cada vez mais particular e mais grandioso e mais sereno o todo.
Finalmente, os rostos pintados por Rembrandt não eram mais rostos de carne e osso. Eram expressões espirituais, retratos do que havia no interior do corpo do homem ou da mulher, visões do que cada pessoa era no seu momento de maior grandeza, do que cada um havia se tornado a partir daquele momento.
Por isso os homens da associação dos mercadores de tecidos parecem todos com os mais antigos e mais sábios santos de Deus.
Porém em nenhum outro lugar essa intensidade espiritual manifesta-se com maior clareza do que nos auto-retratos de Rembrandt. E certamente você sabe que ele nos deixou nada menos do que vinte e dois.
Por que acha que Rembrandt fez tantos auto-retratos? Eram uma súplica para que Deus notasse o progresso deste homem que, observando outros iguais a ele, sofrera uma intensa transformação religiosa. “Esta é a minha visão do homem”, disse Rembrandt a Deus.
Quando Rembrandt chegava ao fim da sua vida, o demônio começou a ter suspeitas. Não queria que seu escravo criasse obras tão magníficas, tão repletas de calor e bondade. Acreditava que o povo holandês era materialista, portanto voltado para as coisas terrenas. E ali, nos quadros onde apareciam ricas roupas e objetos de valor, cintilava a prova inegável de que os seres humanos são completamente diferentes de qualquer outro animal do cosmo – são uma combinação preciosa de carne e chama imortal.
Bem, Rembrandt suportou todos os tormentos inventados pelo demônio. Perdeu a bela casa na Jodenbreestraat. Perdeu a amante e, por fim, até o filho. Contudo continuou a pintar, sem nenhuma demonstração de amargura ou de perversidade, continuou a infundir o amor nas suas obras.
Finalmente estava no seu leito de morte. O demônio cabriolava de alegria, pronto para apanhar a alma de Rembrandt e apertá-la entre os dedos do mal. Mas os anjos e os santos imploraram a intervenção de Deus.
“No mundo inteiro, quem conhece melhor a bondade?” Eles perguntaram, apontando para Rembrandt que agonizava. “Quem mostrou mais do que este pintor? Olhamos para seus retratos quando queremos saber o que há de divino no homem.”
Então Deus desfez o acordo entre Rembrandt e o demônio. Tomou para si a alma do pintor e o demônio, recentemente roubado da alma de Fausto pela mesma razão, ficou louco de raiva.
Bem, ele enterraria na obscuridade a vida de Rembrandt. Providenciaria para que todos os bens pessoais daquele homem e todos os registros sobre sua vida fossem engolidos pela corrente do tempo. Por isso pouco sabemos sobre a verdadeira vida de Rembrandt, ou que tipo de homem ele era.
Mas o demônio  não pôde controlar o destino dos seus quadros. Por mais que tentasse, não conseguiu fazer com que fossem queimados, jogados fora ou postos de lado para dar lugar aos artistas mais novos. Na verdade, aconteceu uma coisa muito curiosa, aparentemente de origem desconhecida. Rembrandt tornou-se o mais admirado pintor que já existiu. Rembrandt veio a ser o maior pintor de todos os tempos.
Essa é a minha teoria sobre Rembrandt e aqueles rostos.
Agora, se eu fosse mortal, escreveria um romance sobre Rembrandt com esse tema. Mas não sou mortal. Não posso salvar a minha alma através da arte ou de Boas Obras. Sou uma criatura igual ao demônio, com uma diferença. Eu amo os quadros de Rembrandt!
Mas olhar para eles me parte o coração. Meu coração se partiu quando vi você no museu. E tem razão quando diz que não há vampiros com rostos iguais aos dos santos da associação dos mercadores de tecidos.
Por isso eu o deixei daquele modo no museu. Não foi com a raiva do demônio. Apenas com mágoa.
Outra vez prometo que, no nosso próximo encontro, eu o deixarei dizer tudo que tem para dizer.
p. 48 – 51 – Carta de Lestat à David. 



Juro por Deus que não conto mentiras para os outros. Mas minto para mim mesmo.
p. 75


- Há mais inteligência contida nesse antigo poema do que na criação do mundo. Você fala como um episcopal. Mas eu sei o que quer dizer. Já pensei nisso uma vez ou outra. Estupidamente simples. Tem de haver alguma coisa nisto tudo. Tem de haver! Tantas peças faltando. Quanto mais você pensa no assunto, mais os ateus parecem falar como fanáticos religiosos. Mas acho que é uma ilusão. Tudo não passa de um processo.
- Peças que faltam, Lestat. É claro! Imagine por um momento que eu construí um robô, uma réplica perfeita da minha pessoa. Suponha que passei para ele toda a informação possível das enciclopédias, você sabe, programei no seu cérebro que é um computador. Muito bem, infalivelmente chegaria o momento em que ele ia dizer, “David, onde está o resto? A explicação! Como tudo começou? Por que você não explicou porquê do big bang que deu origem ao mundo, nem exatamente o que aconteceu quando os minerais e outros compostos inertes evoluíram de repente para formar células orgânicas? E o ele perdido no registro da evolução dos fósseis? ”
- E eu teria de revelar ao pobre robô – continuou David – que não existe explicação. Que eu não tenho as peças que faltam.
P. 82


  - A religião é primitiva com suas conclusões ilógicas. Imagine um Deus perfeito permitindo a existência do demônio. Isso não faz sentido. A grande falha na Bíblia é a idéia de que Deus é perfeito. Representa uma falta de imaginação da parte dos antigos estudiosos. Essa crença é responsável por todas as impossíveis questões teológicas a respeito do bem e do mal que há séculos procuramos responder. Porém, Deus é o bem, é maravilhosamente bom. Sim, Deus, é amor. Mas nenhuma força criadora é perfeita. Isso é evidente.
- E o demônio? Alguma coisa nova a respeito dele? – David olhou para mim com uma leve impaciência. – Você é um ser tão cínico.
- Não, não sou. Quero saber de verdade. É claro que tenho um interesse especial no demônio. Falo dele muito mais do que falo de Deus. Não compreendo por que os mortais o amam tanto, quero dizer, por que amam tanto a idéia da sua existência. Mas eles gostam.
- Porque não acreditam nele – disse David – Porque um demônio perfeito é menos lógico do que um Deus perfeito. Imagine um demônio jamais ter aprendido coisa alguma durante todo esse tempo, nunca ter mudado sua idéia de ser demônio. É um insulto à nossa inteligência.
- Então, qual é a sua verdade atrás da mentira?
- Ele não é simplesmente incapaz de ser redimido. É apenas uma parte do plano de Deus. Um espírito a quem foi concedida a licença para tentar os humanos. Ele não aprova os seres humanos, não aprova a experiência de Deus. A meu ver essa é a natureza da queda do demônio. Ele pensou que a idéia não ia funcionar. Mas a chave, Lestat, é compreender que Deus é matéria! Deus é um ser físico, Deus é o Senhor da Divisão Celular, e o demônio detesta o excesso de permitir que essa divisão continue sem controle.
P. 84 – 85


Ele usa a desgraça como os outros usam o veludo. O sofrimento o enfeita como a luz das velas. As lágrimas o adornam como jóias. Nada desse lixo combina comigo.
P. 130


Na verdade, a limpeza e a ordem extremas dos pequenos cômodos davam a impressão de que ninguém vivia neles.
P. 170


            Assim, estendemos a mão para o caos furioso, apanhamos alguma coisa pequena e brilhante e nos agarramos a ela, dizendo para nós mesmos que ela tem significado, que o mundo é bom, que não somos a encarnação do mal e que no fim iremos para casa.
P. 175


[...] na verdade não acredito que eu seja um herói para o mundo. Porém resolvi há muito tempo que devia viver como se fosse um – que devia vencer todas as dificuldades que aparecessem no meu caminho, porque elas são apenas meus inevitáveis círculos de fogo.
P. 193


            Mas, Senhor Deus, e se o vampiro Lestat jamais tivesse existido, se fosse apenas uma criação literária, pura invenção do homem em cujo corpo eu vivia e respirava! Que idéia maravilhosa!
P. 220


- Esse é o único meio pelo qual o verdadeiro demônio pode fazer o bem. Representar o próprio papel para expor o mal.
P. 245


Há séculos venho observando com interesse vários seres humanos de dois anos. São tremendamente infelizes. Eles querem corre e caem, e gritam o tempo todo. Eles detestam ser humanos! Já sabem que é uma espécie de truque sujo.
P. 329


- Existe algum ser no mundo que faça uso de tudo que possui? Talvez um pequeno número de seres geniais e corajosos conheçam os próprios limites. O resto de nós não faz outra coisa senão se queixar.
P. 341


Afinal, o que nosso mundo significa para as estrelas lá em cima? O que elas pensam do nosso minúsculo planeta, repleto de insanas justaposições, circunstâncias fortuitas, a luta eterna, as ensandecidas civilizações espalhadas por toda a sua superfície, que sobrevivem não por força de vontade, fé ou ambição comum, mas por uma capacidade onírica de milhões para ignorar e esquecer as tragédias da vida e mergulhar na felicidade, como os passageiros daquele navio – como se a felicidade fosse tão natural aos seres humanos como a fome ou o sono, a necessidade de calor e o medo do frio.
P. 376



- Em geral fazemos nossos heróis muito superficiais. Nós os fazemos frágeis e quebradiços. Compete a eles nos fazer lembrar do verdadeiro significado da força.
P. 393

[...] os humanos são capazes de agir como perfeitos animais quando se trata de dinheiro.
P. 419


            A noite, como sempre, estava à minha espera. E a minha sede não podia esperar mais. Parei por um momento, a cabeça inclinada para trás, olhos fechados, boca aberta, sentindo a sede, com vontade de rugir como um animal faminto. Sim, sangue outra vez, quando não há nada mais. Quando o mundo, em toda sua beleza, parece vazio e sem coração e eu me sinto completamente perdido. Dê-me minha velha amiga, a morte e o sangue que jorra com ela. O vampiro Lestat está aqui, sedento, e nesta noite de todas as noites não vai deixar de saciar sua sede.
P. 421


            E minha alma tenebrosa está feliz outra vez, porque há muito tempo não sabe sentir outra coisa e porque a dor é um mar profundo e escuro no qual posso me afogar se não conduzir meu frágil barco habilmente sobre a superfície, sempre na direção do sol que jamais vai nascer.
P. 431



RICE, Anne. A história do ladrão de corpos: crônicas vampirescas. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. 467 p.

terça-feira, 2 de março de 2010

A profecia celestina - James Redfield, 1993



Uma grande aventura atráves das terras peruanas. O livro realmente é muito bom, muito bem escrito, apesar de às vezes ser um pouco repetitivo, o que com certeza ajuda a compreender melhor a mensagem e a fazer as devidas conexões entre as concepções que vão sendo desveladas ao longo do livro. O autor envolve toda  uma teoria filosófica sobre a existência humana em uma teia de acontecimentos  contínuos e imprevistos. Vale a leitura. Ao lado foto do auto James Redfield. Mais abaixo segue a ficha de leitura do livro.




História não é só a evolução tecnológica; é a evolução do pensamento. Compreendendo a realidade das pessoas que nos precederam, podemos ver por que vemos o mundo como vemos, e qual é a nossa contribuição para que ele continue. Podemos precisar onde entramos nós, por assim dizer, no desenvolvimento mais amplo da civilização, e isso nos dá um senso de aonde estamos indo. P. 23

Pequena retrospectiva histórica da transição da Idade Média para a Idade Moderna:

- Tudo bem – ele respondeu. – Se imagine vivendo no ano 1000, no que chamamos de Idade Média. A primeira coisa que tem de entender é que a realidade dessa época está sendo definida pelos poderosos eclesiásticos da igreja cristã. Devido á sua posição, esses homens exercem grande influência sobre a mente da população. E o mundo que esses eclesiásticos descrevem como real é, acima de tudo, espiritual. Estão criando uma realidade que põe a idéia que eles fazem do plano de Deus para a humanidade no centro mesmo da vida.
“Visualize isso”, ele prosseguiu. “Você se descobre na classe de seu pai – essencialmente camponês ou aristocrata – e sabe que vai ficar sempre confinado nessa classe. Mas independentemente da classe a que pertença, ou do trabalho determinado que faça, logo compreende que a posição social é secundária em relação à realidade espiritual da vida como definida pelos clérigos.
“Descobre que a vida é passar numa prova espiritual. Os eclesiásticos explicam que Deus pôs a humanidade no centro de seu universo, cercado por todo o cosmos, para uma finalidade solitária: conquistar ou perder a salvação. E nesse julgamento você tem de escolher corretamente entre duas forças opostas: a força de Deus e as tentações ocultas do diabo.”
“Mas entenda que você não enfrenta essa disputa sozinho. Na verdade, como simples indivíduo, não está qualificado para determinar seu status a esse respeito. Esse é o domínio dos eclesiásticos; eles estão lá para interpretar as escrituras sagradas e revelar a você, a cada passo, se você está em harmonia com Deus ou ludibriado por Satanás. Se você seguir as instruções deles, terá assegurada uma vida após a morte recompensadora. Mas se não seguir o curso que eles prescrevem, aí, bem... há s excomunhão e a certeza da condenação.”
“(...) todo o aspecto do mundo medieval é definido em termos de um outro mundo. Todos os fenômenos da vida, desde o risco de um temporal ou terremoto até os sucessos da colheita ou a morte de um ser amado, são definidos como vontade de Deus ou malícia do diabo. Não há nenhuma idéia de clima, nem forças geológicas, nem horticultura ou doença. Tudo isso é secundário. Por ora, você crê inteiramente nos homens da igreja; o mundo que tem como certo funciona apenas por meios espirituais.”
A visão medieval do mundo, a sua visão do mundo, começa a ruir nos séculos 14 e 15. A princípio, você nota algumas impropriedades dos próprios eclesiásticos: violando em segredo os votos de castidade, por exemplo, ou aceitando espórtulas para ignorar quando as autoridades governamentais violam as leis das escrituras.
Essas impropriedades o perturbam, pois esses clérigos afirmam que são a única ligação entre você e Deus. Lembre-se de que eles são os únicos intérpretes das escrituras, os púnicos árbitros de sua salvação.
De repente, você está no meio de uma franca revolta. Um grupo liderado por Martinho Lutero convoca a um completo rompimento com o cristianismo papal. Dizem que os eclesiásticos são corruptos, e exigem o fim do reinado deles sobre a mente do povo. Formam-se novas igrejas, com base na idéia de que cada pessoa deve poder ter acesso individual às escrituras e interpretá-las como quiser, sem intermediários.
Sob seus olhos incrédulos, a revolta triunfa. Os padres começam a perder. Durante séculos, esses homens definiram a realidade, e agora, diante de você, perdem credibilidade. Portanto, todo mundo é posto em questão. O nítido consenso sobre a natureza do universo e o propósito da humanidade aqui, baseado como era na descrição dos eclesiásticos, entra em colapso – deixando você e todos os outros seres humanos na cultura ocidental numa situação bastante precária.
Afinal, você se acostumou a ter uma autoridade em sua vida para definir a realidade, e sem essa orientação externa se sente confuso e perdido. Se a descrição da realidade e da razão da existência humana pelos eclesiásticos está errada, você se pergunta: então, qual é a certa?
(...) foi um abalo terrível. A visão do mundo antigo era contestada em toda parte. Na verdade, no ano 1600 os astrônomos já haviam provado além de qualquer dúvida que o sol e as estrelas não giravam em torno da Terra, como defendia a Igreja. Claramente a Terra era apenas um pequeno planeta em órbita de um Sol menor, numa galáxia que continha bilhões desses astros.
- Isso é importante. A humanidade perdeu seu lugar no centro do universo de Deus. Percebe o efeito disso? Hoje, quando você observa o clima, ou plantas crescendo, ou alguém morrendo de repente, o que sente é uma ansiosa perplexidade. Antes, podia dizer que o responsável era Deus, ou o diabo. Mas quando a visão do mundo antigo desmorona, leva consigo essa certeza. Tudo o que você tinha como certo agora precisa de nova definição, sobretudo a natureza de Deus e sua relação com ele.
“Com essa consciência, começa a Idade Moderna. Há um espírito democrático cada vez maior, e uma descrença geral na autoridade papal e monárquica. As definições do universo baseadas na especulação ou na fé nas escrituras não são mais aceitas automaticamente. Apesar da perda da certeza, não queríamos correr o risco de algum novo grupo controlar nossa realidade como os eclesiásticos. Se você estivesse lá, teria participado da criação de um novo mandato para a ciência. (...) Você teria olhado esse vasto e indefinido universo exterior e pensado, como fizeram os filósofos de então, que precisávamos de um método formador de consenso, uma maneira de explorar sistematicamente aquele nosso novo mundo. E teria chamado essa nova forma de descobrir a realidade de método científico, que não é mais do que testar uma idéia de como funciona o universo, chegando depois a uma conclusão, e apresentando essa conclusão a outros para ver se concordam.
Aí vocês teria preparado exploradores para sair por esse novo universo, cada um armado do método científico, e teria dado a eles sua missão histórica: explorar esse espaço e descobrir como ele funciona, e o que significa estarmos nós próprios vivos aqui.
Você sabia que tinha perdido sua certeza sobre um universo governado por Deus, e portanto sobre a natureza do próprio Deus. Mas sentira que tinha um método, um processo formador de consenso, através do qual podia descobrir a natureza de tudo em volta, inclusive Deus e o sentido da existência da humanidade no planeta. Assim, mandou os exploradores saírem para descobrir a verdadeira natureza da sua situação e comunicá-la na volta.
Nesse ponto começa a preocupação da qual estamos despertando hoje. Mandamos nossos exploradores saírem em busca de uma explicação completa de nossa existência, mas, devido à complexidade do universo, eles não conseguiram voltar logo. Quando o método científico não conseguiu trazer de volta um novo quadro de Deus e do sentido da humanidade no planeta, a falta de certeza e explicação atingiu profundamente a cultura ocidental. Precisávamos de alguma outra coisa para fazer até que nossas perguntas fossem respondidas. Acabamos chegando ao que parecia ser uma solução bastante lógica. Nos olhamos uns aos outros e dissemos: ‘Bem, como os exploradores ainda não voltaram com nossa verdadeira situação espiritual, por que não nos instalamos neste nosso novo mundo enquanto esperamos?’ Certamente estamos aprendendo o suficiente para manipulá-lo em nosso benefício, logo por que não trabalharmos neste meio tempo para elevar nosso padrão de vida, nosso senso de segurança no mundo?
E foi o que fizemos. Há quatro séculos! Nos livramos da sensação de estar perdidos, tomando a coisa em nossas mãos, nos concentrando na conquista da Terra e usando os recursos dela para melhorar nossa situação, e só agora, quando nos aproximamos do fim do milênio, podemos ver o que aconteceu. Nossa concentração foi aos poucos se tornando uma preocupação. Nos perdemos totalmente ao criar uma segurança secular, econômica, em substituição à espiritual que havíamos perdido. A questão do motivo de estarmos vivos, do que na verdade estava acontecendo aqui espiritualmente, foi aos poucos sendo posta de lado e reprimida inteiramente.
O trabalho para estabelecer um estilo de sobrevivência mais confortável passou a parecer completo em si e por si, como uma razão para viver, e gradual e metodicamente esquecemos nossa pergunta original... Esquecemos que ainda não sabemos para que estamos sobrevivendo. P. 26-31

Todo o trabalho da vida de Einstein foi mostrar que o que percebemos como matéria sólida é em sua maior parte espaço vazio percorrido por um padrão de energia. Isso inclui a nós mesmos. E o que a física quântica revelou é que quando observamos esses padrões de energia em níveis cada vez menores, podemos ver resultados surpreendentes. As experiências demonstram que quando se fragmentam pequenos componentes dessa energia, o que chamamos de partículas elementares, e tentamos observar como funcionam, o próprio ato da observação altera os resultados - como se essas partículas elementares fossem influenciadas pelo que o cientista espera. Isso se aplica mesmo que as partículas tenham que aparecer em lugares onde não poderiam ir, em vista das leis do universo que conhecemos: dois lugares ao mesmo tempo, para frente e para trás no tempo, esse tipo de coisa.
Em outras palavras, o material básico do universo, no seu âmago, parece ser uma espécie de energia maleável à intenção e expectativas humanas, de uma maneira que desafia nosso antigo modelo mecanicista do universo; como se nossa expectativa fizesse nossa energia fluir para o mundo e afetar outros sistemas de energia. P. 49

Meu campo (psicologia) está em conflito, querendo saber por que os seres humanos se tratam uns aos outros com tanta violência. Sempre soubemos que essa violência surge do impulso dos seres humanos para controlar e dominar uns aos outros, mas só recentemente estudamos esse fenômeno de dentro, do ponto de vista da consciência individual. Perguntamos o que ocorre dentro de um ser humano que o faz querer controlar outra pessoa. Descobrimos que quando um indivíduo se dirige a outra pessoa e se empenha numa discussão, o que ocorre bilhões de vezes todos os dias no mundo, pode acontecer uma das duas coisas. O indivíduo sai se sentindo mais forte ou mais fraco, dependendo do que ocorre na interação.
Por esse motivo, nós, humanos, sempre parecemos adotar uma atitude manipuladora. Sejam quais forem os detalhes da situação, ou do assunto em questão, nós nos preparamos para dizer o que for preciso para prevalecer na conversa. Cada um de nós procura de algum modo encontrar um meio de controlar, e assim continuar por cima no combate. Se temos êxito, se nossa opinião prevalece, então em vez de nos sentirmos fracos, recebemos um reforço psicológico. P. 82

O papel do amor foi mal compreendido durante muito tempo. O amor não é uma coisa que devemos fazer para sermos bons ou tornar o mundo um lugar melhor, por alguma responsabilidade moral ou porque devemos desistir de nosso hedonismo. P. 135

Todo ser humano, quer tenha consciência disso ou não, ilustra com sua vida a maneira como acha que um ser humano deve viver. P. 160


 Referência Bibliográfica:

REDFIELD, James. A profecia celestina: uma aventura da nova era. Rio de Janeiro: Objetiva, 1994. 289p.