sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Rei de Amarelo - Richard W. Chambers, 1895.

Gostei muito desse livro. Fiquei sabendo dele através das referências feitas na série True Detective - recomendadíssima! -, e desde então o coloquei entre as minhas almejadas leituras.
É um livro relativamente curto, composto por contos. Confesso que gostei mais da primeira parte, ou seja, dos primeiros quatro contos, “O reparador de reputações”, “A máscara”, “O Pátio do Dragão” e “O Emblema Amarelo”. São os contos onde há o elemento sobrenatural, e que se passam em um mundo onde existe a infame obra O Rei de Amarelo, peça teatral macabra que tem o poder de levar seus leitores à insanidade.

A segunda parte do livro, composta por contos realistas, não me cativou tanto. Os últimos contos acabam sendo um pouco repetitivos em seus cenários e personagens. Em suas notas, Carlos Orsi chama a atenção para os elementos que se repetem, atentando para uma possível subliminar relação entre os contos em outros níveis de significado. 


De qualquer forma, adorei o livro. A aura que envolve o mito do Rei de Amarelo é muito intensa, e muito bem descrita pelo Chambers.
Essa edição de 2014 da Intrínseca, com prefácio e notas de Carlos Orsi ficou muito boa e suas notas são interessantes e esclarecedoras sobre a obra. Gostei.


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Introdução, por Carlos Orsi.

“Seu olhar caiu sobre o livro amarelo que Lorde Henry lhe enviara. O que seria isso, perguntou-se
(...) após alguns minutos, estava absorto. Era o livro mais estranho que já havia lido. Parecia
que, em vestes refinadas, e ao som delicado de flautas, os pecados do mundo desfilavam, em
silêncio, diante dele. Coisas com que havia sonhado de modo vago tornavam-se reais para ele.
Coisas que jamais imaginara eram-lhe reveladas.”
O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde (1854-1900)

Na última década do século XIX, o amarelo, cor dos trajes do Rei que dá título a esta coletânea,
era o matiz do pecado, da podridão, da decadência, da loucura — e, ao menos no mundo de
língua inglesa, da literatura de vanguarda, a ponto de a principal revista literária de Londres, nos
anos 1890, chamar-se O Livro Amarelo. Não era por acaso que o pecado, a doença e a arte
moderna tinham a mesma cor: importados para a Inglaterra, os livros dos autores decadentes
franceses vinham encadernados em amarelo.
A chamada escola decadente francesa inspirava-se na poesia de Charles Baudelaire (1821-
1867), autor que havia sido saudado por Victor Hugo como o criador de un frisson nouveau, “uma
nova emoção”. O decadentismo atingiu seu ponto alto na obra de Joris-Karl Huy smans (1848-
1907), principalmente em seu romance À Rebours (“Às Avessas”, mais conhecido em inglês
com o Against the Grains, “Contra a Natureza”, publicado em 1884). Muitos críticos acreditam
que o “livro amarelo” que tanto fascinou Dorian Gray, no romance de Wilde, era exatamente
esse volume de Huy smans.
O horror que a literatura “amarela” francesa causava ao establishment anglo-saxão pode ser
visto nesta crítica do jornal Daily Chronicle à primeira edição de O Retrato de Dorian Gray,
publicada em 1890, cinco anos antes de O Rei de Amarelo:
“Trata-se de um livro gerado pela literatura leprosa dos decadentes franceses — um livro
venenoso, cuja atmosfera está carregada dos odores mefíticos da putrefação moral e espiritual.”
Afinal, o que eram e o que queriam os “mefíticos” decadentes franceses? Humilhados pela
derrota da França na guerra de 1870 com a Prússia, desiludidos com o fim sangrento da Comuna
de Paris de 1871, esmagados pelo peso da geração de gigantes literários que os antecedera —
Balzac, Hugo, Flaubert —, os decadentistas viam-se como mentes velhas em corpos jovens, os
últimos filhos de uma civilização que já fizera tudo, provara tudo e, agora, rumava para a tumba
ou, já morta, decompunha-se.
Seu projeto era radicalizar o frisson nouveau de Baudelaire: descobrir, estimular e registrar
emoções inéditas, capazes de sufocar o tédio de uma existência crepuscular, apelando para
meios artificiais, como drogas, ou para tudo aquilo que a civilização moribunda, filha da Igreja e
do Iluminismo, havia banido: o absurdo, o pecado, a misantropia, o crime, o sexo não como
expressão de amor ou para gerar filhos, mas como mero gozo e perversão. Era a busca do efeito
estético sem qualquer tipo de amarra moral, do prazer sem consequência, do excesso sem
responsabilidade.

O livro

É nesse contexto que Robert William Chambers (1865-1933) publica, em 1895, um peculiar
volume de contos, contendo dez histórias — sendo que quatro delas giram em torno de uma peça
de teatro intitulada O Rei de Amarelo.
A cor das roupas rasgadas do Rei não foi escolhida por acaso: a peça, da qual temos apenas
vislumbres, é a epítome, a realização final do projeto decadente. Seu autor, cujo nome jamais é
revelado, foi tão bem-sucedido na criação de un frisson nouveau, tão radical, que a própria beleza
do texto se converte em uma maldição para quem o lê. Um crítico francês já havia escrito que,
depois de um romance como À Rebours, as únicas alternativas eram “o cano de uma arma ou o
pé da cruz”, e de fato tanto Huy smans quanto Wilde acabaram fugindo de seus excessos e
buscando refúgio no catolicismo. Já Chambers nos indica, por meio do destino de seus
personagens, que, depois de ler O Rei de Amarelo, nem a morte nem o claustro oferecem
segurança.
Curiosamente, os contos de O Rei de Amarelo não são, eles mesmos, exemplos de literatura
decadente. Pelo contrário: seus protagonistas, mesmo quando são jovens artistas boêmios
farreando pelas ruas de Paris da decadência e do fin de siècle, revelam uma tocante pureza de
coração, coisa que seria impossível de encontrar em um anti-herói de Huy smans. Vários deles
são católicos ou estão em busca da fé.
Há muita especulação sobre as inspirações de Chambers. É bem provável que Wilde e
Baudelaire estivessem em sua mente enquanto criava O Rei de Amarelo. Diversos nomes de
lugares e pessoas que aparecem nos trechos da obra teatral citados nos contos, como Hastur, Hali
e Carcosa, vêm de Ambrose Bierce (1842-1914?), o jornalista e escritor americano que
desapareceu da face da Terra enquanto se dirigia ao México para cobrir a revolta de Pancho
Villa. Bierce também é famoso por seus contos de terror, mas Chambers parece ter extraído
muito pouco dele para além de um punhado de nomes altissonantes: enquanto o horror, em
Bierce, é subjetivo — afeta, principalmente, a mente do protagonista — em Chambers ele é
externo, físico, quase cósmico.
Quando O Rei de Amarelo foi escrito, a ideia de que uma obra literária poderia ser escandalosa
demais para circular, ou perturbadora demais para que fosse seguro lê-la, ainda tinha alguma
plausibilidade. Em 1892, a escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) teve seu
conto “O papel de parede amarelo” (eis a cor da maldade, de novo) criticado por um médico
que declarou a história “perigosa” e questionou se “esse tipo de literatura deveria ser permitido”,
já que representava “perigo mortal” para pessoas suscetíveis a “distúrbios mentais”. É provável
que Chambers tivesse conhecimento do conto e da polêmica: a crítica psiquiátrica ao trabalho de
Gilman de certa forma ecoa em “O reparador de reputações”, texto que abre este volume.
Esta coletânea se divide em duas partes, com quatro contos cada, separadas por duas histórias
que podem ser consideradas de transição. A primeira, composta pelos contos “O reparador de
reputações”, “A máscara”, “O Pátio do Dragão” e “O Emblema Amarelo”, se passa em um
mundo onde existe uma peça de teatro, O Rei de Amarelo, que provoca estranhos efeitos, físicos
e psicológicos, em quem a lê. Essas histórias talvez se passem no fim do século XIX, ou em um
futuro distópico imaginado pelo autor.
A segunda parte é formada pelo que alguns comentaristas chamam de “Quarteto das Ruas”:
“A rua dos Quatro Ventos”, “A rua da primeira bomba”, “A rua de Nossa Senhora dos Campos”
e “Rue Barrée”. São contos românticos da vida boêmia na Paris do século XIX. As histórias de
transição, “A Demoiselle d’Ys” e “O paraíso do profeta”, marcam a passagem do registro
fantástico, entre o delirante e o alegórico, da primeira parte para a pegada mais realista da
segunda.
Algumas versões de O Rei de Amarelo, publicadas após a morte do autor, omitem a segunda
parte do livro, substituindo o “Quarteto das Ruas” por contos de terror e fantasia escritos por
Chambers para outras de suas coletâneas. Isso me parece um equívoco, pois há uma articulação
e uma unidade temática entre as partes, como se uma fosse a versão alternativa, distorcida, da
outra.

O autor

Antes de se tornar escritor, Chambers havia sido pintor e ilustrador, colaborando com importantes
revistas americanas. De 1886 a 1893, estudara arte em Paris. Há algo de autobiográfico, pode-se
imaginar, nas descrições da vida boêmia dos jovens artistas do Quartier Latin que compõem o
pano de fundo de boa parte desta coletânea.
O Rei de Amarelo foi um sucesso no lançamento, e hoje é a única obra de Chambers ainda
lembrada por leitores e crítica. Entre os estudiosos da literatura fantástica, há quem o considere o
volume mais importante publicado por um autor americano entre o tempo de Edgar Allan Poe
(1809-1849) e o surgimento dos primeiros modernos, como os de H. P. Lovecraft (1890-1937).
No entanto, embora O Rei tenha sido bem recebido na estreia, não foi como autor de histórias
de fantasia e terror que Chambers conquistou fama e fortuna ainda em vida: o maior sucesso
veio de uma série de romances água com açúcar, obras comerciais, escritas para satisfazer o
gosto de moças românticas. O crítico S. T. Joshi diz que o melhor termo de comparação, na
literatura contemporânea, são os romances publicados em profusão pela editora Harlequin para o
público feminino. Joshi destaca outra coletânea de contos de Chambers como digna de nota, The
Mystery of Choice, de 1897, que também inclui contos fantásticos e pouco mais.
Sua obra romântica, composta de dezenas de volumes, foi um fracasso de crítica — as
personagens femininas eram “o que os homens gostariam que as mulheres fossem, não mulheres
de verdade”, de acordo com um comentarista — e, a despeito do sucesso de público (dois desses
livros chegaram a ser best-sellers, com mais de duzentos mil exemplares vendidos), desapareceu
na obscuridade. Com o dinheiro dos livros ele se instalou em uma mansão confortável em Nova
York. Gostava de caçar, pescar, colecionava borboletas, arte oriental e livros raros. Morreu em
1933, já quase esquecido como autor.
Muitos críticos lamentam que Chambers tenha sido, de certa forma, um escritor superior à
própria obra: um homem que, com algum esforço, poderia ter criado um legado literário muito
superior ao que realmente produziu. É como se o sucesso comercial de seus romances baratos
tivesse sufocado o gênio que se vislumbra em O Rei de Amarelo.

Influências

O Rei de Amarelo deixou marcas nas gerações de escritores de terror e de ficção científica que
surgiram após sua publicação. Hoje em dia, a obra de Chambers é mais comumente citada em
relação à Mitologia de Cthulhu, o conjunto de deuses “antigos” e lendas “ancestrais” forjado por
H. P. Lovecraft e compartilhado por seus amigos nos anos 20 e 30, e que ainda hoje é utilizado
por diversos autores.
A influência de Chambers sobre a Mitologia de Cthulhu, no entanto, costuma ser gravemente
superestimada: a correspondência de Lovecraft indica que ele só teve contato com O Rei de
Amarelo em 1927, quando seu estilo e seus temas já estavam bem definidos. Mesmo o
Necronomicon, livro fictício que leva seus leitores à loucura, tinha sido criado por Lovecraft antes
de ele conhecer O Rei de Amarelo, obra fictícia de efeito semelhante.
A incorporação de Chambers à Mitologia de Cthulhu tem duas causas: a primeira, o fato de
Lovecraft citar vários nomes pinçados do livro de Chambers em um — mas apenas um — de
seus contos, “Um sussurro nas trevas”, de 1930; e a segunda é August Derleth (1909-1971). Após
a morte de Lovecraft, Derleth tomou para si a tarefa de sistematizar a mitologia artificial deixada
pelo amigo, convertendo as menções vagas e lendas fragmentárias em uma “teologia
alienígena” consistente.
A sabedoria e a qualidade da iniciativa de Derleth são discutíveis, mas com isso, nomes tirados
da obra de Chambers, como Hastur, o lago de Hali, Carcosa e o próprio Rei de Amarelo,
acabaram atraídos para a órbita do mito coletivo lovecraftiano. O conto em que Derleth
apresenta sua visão organizada e enciclopédica do Mito de Cthulhu chama-se, exatamente, “O
retorno de Hastur”, publicado pela primeira vez em 1939.
O impulso sistematizador de Derleth contagiou outros autores, e logo surgiram tentativas de
organizar a “mitologia amarela”, ou “Mitologia de Carcosa”, em linhas semelhantes às da
Mitologia de Cthulhu. O esforço mais conhecido foi o dos autores do role-playing game “The Call
of Cthulhu”, principalmente a partir do cenário seminal “Tell Me, Have You Seen the Yellow
Sign?”, publicado em 1989.
Chambers, no entanto, deixou ainda menos pistas sobre o mito subjacente à sua obra que
Lovecraft. Talvez Carcosa seja uma cidade em outro planeta, em outra dimensão ou, mesmo,
uma estação espacial — algo sugerido pela afirmação de que suas torres aparecem “atrás” da
Lua. Talvez Hastur seja uma pessoa, ou uma cidade; Hali, um profeta, o nome de um lago, ou
um profeta que deu nome a um lago. Foram feitas algumas tentativas de escrever a peça O Rei
de Amarelo na íntegra, embora nenhum texto real jamais possa cumprir a promessa de horror e
loucura evocada por Chambers.
Em 1975, o “Culto do Emblema Amarelo”, uma sociedade secreta que serve a Hastur, “que
reside em um local misterioso chamado Hali, que já foi um lago mas agora é um deserto”, perto
de “uma cidade chamada Carcosa”, foi introduzido como uma das sociedades secretas que lutam
pela dominação mundial no romance “cult”, satírico, paranoico e pós-moderno “Illuminatus!
Trilogy ”, de Robert Anton Wilson e Robert Shea.
Em tempos mais recentes, Hastur foi citado como um anjo caído e Duque do Inferno no livro
Belas maldições, de Terry Pratchett e Neil Gaiman. Gaiman também já mencionou Carcosa em
alguns de seus trabalhos solo, como o conto “Um estudo em esmeralda”, que mistura Sherlock
Holmes ao Mito de Cthulhu. No romance A maldição do cigano, de Stephen King, há um bar
chamado Hastur, que é destruído em um incêndio, e em seu lugar é construída uma loja de
produtos alternativos chamada O Rei de Amarelo. E no recente sucesso da tevê, a série True
Detective, um certo “Rei Amarelo” é figura-chave.
Fora do contexto da Mitologia de Cthulhu e das especulações em torno do que seria uma
“mitologia amarela” plenamente desenvolvida, nomes como Hastur e Carcosa também foram
usados pela escritora Marion Zimmer Bradley (1930-1999) em sua série de ficção científica
Darkover. E Ray mond Chandler (1888-1956), um dos grandes mestres do romance policial,
escreveu um conto intitulado “O rei de amarelo”, sobre o assassinato de um astro decadente do
jazz, vítima que lembra os protagonistas depravados de Huy smans.




Carlos Orsi é jornalista e escritor, publicado no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, na
Inglaterra e na Argentina. Seu conto “The Machine in Yellow”, sobre uma montagem da
pe ç a O Rei de Amarelo durante a ditadura brasileira de 1964-1985, foi publicado na
antologia americana Rehearsals for Oblivion, em 2006. É autor do romance Guerra justa e
do livro de contos Campo total.








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