A saga macrocósmica futurista do inglês Douglas Adams, é sem dúvida um dos humores mais inteligentes e sarcásticos que já li. Dotado de um senso crítica afiado, e de uma perspectiva ampla sobre a humanidade, o autor transmite na sua obra uma reflexão vertiginosa sobre a vida, o universo e tudo mais. Utiliza o humor como método suave de pautar questões filosóficas e paradoxos existenciais. Traz em primeiro plano alegorias como a dos "Vogons" pra fazer uma alusão clara ao nosso próprio sistema burocrático, que já chega às raias da loucura. Assim, como também trata de forma crítica o nosso modelo econômico e social de vida. São cinco livros muito breves que realmente vão mudar seu horizonte de análise. Adorei! Seguem alguns trechos.
O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior
ainda. p. 25
Como é sabido, a vida apresenta
uma série de problemas, dos quais os mais importantes são, entre outros, Por que as pessoas nascem? Por que elas
morrem? Por que elas passam uma parte tão grande do tempo entre o nascimento e
a morte usando relógios digitais?. p. 122
[O guia do Mochileiro das Galáxias, 1979.]
Há muitos anos este era um
planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo
fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se
creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia
aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver
em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser
feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores
ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais
as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que
creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível
economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria.
Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles
poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por
mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés,
amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz. p.
55
O problema com a maioria das
formas de transporte é que basicamente não valiam a pena. Na Terra – quando
havia uma Terra, antes de ela ter sido demolida para dar lugar a uma via
expressa hiperespacial - o problema
eram os carros. As desvantagens envolvidas em arrancar toneladas de gosma preta
e viscosa do subsolo, onde a tal gosma tinha ficado escondida em segurança e
longe de todo o mal, transformá-la em piche para cobrir o chão, fumaça para
infestar o ar e espalhar o resto pelo mar, tudo isso parecia anular as
aparentes vantagens de se poder viajar mais rápido de um lugar para o outro.
Especialmente quando o lugar a que se chegava tinha ficado, por conta dessa
coisa toda, muito parecido com o lugar de que se tinha saído, ou seja, coberto
de piche, cheio de fumaça e com poucos peixes. p. 118
- O Jardim do Éden. A árvore. A
maçã. Essa parte, lembra? O tal de Deus põe uma macieira no meio de um jardim e
diz “vocês dois podem fazer o que vocês quiserem aqui, mas não comam essa
maça”. Obviamente eles comem a maçã, então Deus pula de trás de uma moita
gritando: “Peguei vocês, peguei vocês!” Não faria a menor diferença se eles não
tivessem comido a maçã.
- Por que não?
- Olha, quando você está lidando
com alguém que tem esse tipo de mentalidade – mais ou menos a mesma das pessoas
que deixam um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem
-, pode ter certeza de que ele não vai desistir. Ela vai acabar te pegando.
p. 150-1
[O restaurante no fim do Universo, 1980.]
O campo de Problema de Outra Pessoa e muito mais simples e mais eficaz. Melhor ainda, pode funcionar durante mais de 100 anos usando uma unica bateria de lanterna. Isso porque ele conta com a tendência natural das pessoas de não verem nada que não querem, que não estão esperando ou que não podem explicar.
[A vida, o universo e tudo mais, 1982.]
Muito além, nos confins
inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um
pequeno sol amarelo e esquecido.
Girando em torno deste sol, a uma
distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há um planetinha
verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes
de primatas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que
relógios digitais são uma grande idéia.
Este planeta tem – ou melhor,
tinha – o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre
infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte
delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel
colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os
tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes.
E assim o problema continuava sem
solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as
que tinham relógios digitais.
Um número cada vez maior de
pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das
árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima
idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.
Um dos maiores benfeitores de todas as formas de vida foi um homem que não conseguia se concentrar em qualquer trabalho que estivesse fazendo.
Foi brilhante?
Certamente.
Foi um dos maiores engenheiros genéticos de sua geração ou de qualquer outra, inclusive várias que ele mesmo projetou?
Sem dúvida.
Então, quando o seu mundo se viu ameaçado por invasores terríveis de uma estrela distante, que ainda estavam muito longe, mas viajavam bem rápido, foi conduzido a um lugar onde pudesse ficar completamente isolado, protegido pelos mestres de sua raça, com instruções para criar uma linhagem de superguerreiros fanáticos, prontos para resistir e para derrotar os temidos invasores. Ele tinha que criá-los o mais rápido possível e disseram-lhe: "Concentre-se!"
Então ele se sentou próximo a uma janela e contemplou um jardim em pleno verão e projetou, projetou e projetou, mas, inevitavelmente, distraiu-se um pouco com outras coisas e, quando os invasores já estavam praticamente em órbita em torno deles, inventou uma nova raça de supermoscas que podiam descobrir, por conta própria, como voar pela metade aberta de uma janela entreaberta e também um interruptor para desligar crianças. As comemorações dessas incríveis descobertas pareciam fadadas a durar muito pouco, porque o desastre era iminente — as naves espaciais já estavam pousando. Mas, para a surpresa de todos, os temíveis invasores, que, como a maioria das raças beligerantes, só estavam comprando briga com os outros porque não sabiam lidar com seus problemas domésticos, ficaram tão impressionados com as invenções extraordinárias que decidiram participar das comemorações e foram imediatamente persuadidos a assinarem uma série de acordos comerciais abrangentes e a instituírem um programa de intercâmbio cultural. E, em uma surpreendente inversão da prática tradicional na conduta desses assuntos, todos os envolvidos viveram felizes para sempre.
[Até mais, e obrigado pelos peixes, 1984]
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