terça-feira, 24 de agosto de 2010

O evangelho segundo Jesus Cristo - José Saramago, 1991


Esse livro teve forte censura em Portugal, e na Europa Católica em geral. Só por isso já se sabe que alguma coisa ele diz que não querem que a gente saiba, ou que não querem que a gente pense. E é justamente por esse aspecto que o livro é fantástico. Ele traz a vida de um Jesus Cristo humano. Como teria sido a vida do "messias" dadas as circunstâncias culturais da época. Se trata de uma interpretação livre do autor sobre como poderia ter se passado a vida do grande mártir, colocando em pauta questões e problemas fundamentais do pensamento e crença religiosos. Leiam, não se arrependerão.

SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991-2001. 445 p. 




"O Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro”. P. 18

“Descalça vai Maria à fonte, descalça vai ao campo, com os seus vestidos pobres que no trabalho mais se sujam e gastam, e que é preciso estar sempre a lavar e remendar, para o marido vãos os panos novos e os cuidados maiores, mulheres destas com qualquer coisa se contentam. Maria vai à sinagoga, entra pela porta lateral, que a lei impõe às mulheres, e se, é um supor, lá se encontram ela e trinta companheiras, ou mesmo todas as fêmeas de Nazaré, ou toda a população feminina de Galileia, ainda assim terão de esperar que cheguem ao menos dez homens para que o serviço do culto, em que só como passivas assistentes participarão, possa ser celebrado. Ao contrário de José, seu marido, Maria não é piedosa nem justa, porém não é sua a culpa dessas mazelas morais, a culpa é da língua que fala, senão dos homens que a inventaram, pois nela as palavras justo e piedoso, simplesmente, não têm feminino”. P. 31

“Ao cabo, postos primeiramente os burros à manjedoura, sentaram-se os viajantes a comer, principiando pelos homens, que as mulheres já sabemos que em tudo são secundárias, basta lembrar uma vez mais, e não será a última, que Eva foi criada depois de Adão e de uma sua costela, quando será que aprenderemos que há certas coisas que só começaremos a perceber quando nos dispusermos a remontar às fontes”. P. 57

“(...) mas esta idade é dura e de ferro, o tempo dos milagres, ou já passou, ou ainda está para chegar, além disso, milagre, milagre mesmo, por mais que nos digam, não é boa coisa, se é preciso torcer a lógica e a razão própria das coisas para torná-las melhores”. P. 77

“Agora, com o coração desanuviado de preocupações, pensou que estaria bem perguntar a Maria como ia de dores, porém não pronunciou a palavra, lembremo-nos de que tudo isto é sujo e impuro, desde a fecundação ao nascimento, aquele terrífico sexo da mulher, vórtice e abismo, sede de todos os males do mundo, o interior labiríntico, o sangue e as umidades, os corrimentos, o rebentar das águas, as repugnantes secundinas, meu Deus, por que quiseste que os teus filhos diletos, os homens, nascessem da imundície, quando bem melhor fora, para ti e para nós, que os tivesses feito de luz e transparência, ontem, hoje e manhã, o primeiro, o do meio e o último, e assim igual para todos, sem diferença entre nobres e plebeus, entre reis e carpinteiros, apenas colocarias um sinal assustador naqueles que, crescendo, estivessem destinados a tornarem-se, sem remédio, imundos.” P. 78

“O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo”. P. 83

“Com estas minhas mãos amassei este pão que te trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi”. P. 84

“Às tantas o infante Jesus acordou, mas agora a valer, que antes mal abrira os olhos quando sua mãe o enfaixara para a viagem, e pediu alimento com a sua voz de choro, única que ainda tem. Um dia, como qualquer de nós, outras vozes virá a aprender, graças às quais saberá exprimir outras fomes e experimentar outras lágrimas”. P. 96

“Lá dentro é uma forja, um talho e um matadouro. Em cima de duas grandes mesas de pedra preparam-se as vítimas de maiores dimensões, os bois e os vitelos, sobretudo, mas também carneiros e ovelhas, cabras e bodes. Perto das mesas encontram-se uns altos pilares onde se dependuram, em ganchos chumbados na pedra, as carcaças das reses, e vê-se a frenética atividade do arsenal dos açougues, as facas, os cutelos, os machados, os serrotes, a atmosfera está carregada dos fumos da lenha e dos coiratos queimados, de vapor de sangue e de suor, uma alma qualquer, que nem precisará ser santa, das vulgares, terá dificuldade em entender como poderá Deus sentir-se feliz em meio de tal carnificina, sendo, como diz que é, pai comum dos homens e das bestas (...)” P. 100

“Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolas pelas faces”. P. 149

“Que verá este sol que vai nascer? Alguma vez aprenderemos a não fazer perguntas inúteis, mas enquanto esse tempo não chega aproveitemos para perguntar-nos: Que verá este sol que vai nascer?” P. 160

“Dois mil homens crucificados é muito homem morto, mas mais haveriam de parecer-nos se os imaginássemos plantados a intervalos de um quilômetro ao longo duma estrada, ou rodeando, é um exemplo, o país que há de chamar-se Portugal, cuja dimensão, na sua periferia, anda mais ou menos por aí”. P. 167

“O tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar”. P. 168

“Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançássemos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido”. P. 169

“(...) na verdade não se sabe, depois de morrer, o que acontece às dores sentidas em vida, principalmente as últimas, é possível que com a morte se acabe realmente tudo, mas também nada nos garante que, ao menos durante umas horas, uma memória de sofrimento não se mantenha num corpo que dizemos morto, não sendo mesmo de excluir ser a putrefação o último recurso que resta à matéria para, definitivamente, se libertar da dor”. P. 171

“(...) mas isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade”. P. 194

“(...) afinal a ausência é também uma morte, a única e importante diferença é a esperança”. P. 195

“(...) o tempo leva-nos até onde uma memória se inventa, foi assim, não foi assim, tudo é o que dissermos que foi”. P. 204

“Acontece isto muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não respondam”. P. 231

“- (...) mas o que te posso dizer é que não gostaria de me ver na pele de um deus que ao mesmo tempo guia a mão do punhal assassino e oferece a garganta que vai ser cortada.
- Ofendes a Deus com esses pensamentos ímpios.
- Não valho tanto.
- Deus não dorme, um dia te punirá.
- Ainda bem que não dorme, dessa maneira evita pesadelos de remorso. P. 233

“(...) mas a lei é claríssima neste ponto, como em todos, Eis aquilo que podereis comer diversos animais aquáticos, podeis comer tudo o que, nas águas, mares ou rios, tem barbatanas e escamas, mas tudo o que não tem barbatanas e escamas, nos mares ou nos rios, quer o que pulula na água, quer os animais que nela vivem, são abomináveis para vós, e abomináveis continuarão a ser, não comeis a sua carne e considerai os seus cadáveres como abomináveis, tudo o que, nas águas, não tem barbatanas e escamas, será para vós abominável. Os peixes réprobos, de pele lisa, aqueles que não podem ir à mesa do povo do Senhor, foram assim restituídos ao mar, muitos deles, mesmo, já tinham ganho o costume e não se preocupavam quando os levava a rede, sabiam que pronto tornariam à água, sem risco de morrerem sufocados. Em sua cabeça de peixes criam beneficiar duma benevolência especial do criador, senão mesmo de um amor particular, o que os levou, ao cabo do tempo, a considerarem-se superiores aos outros peixes, os que ficavam nas barcas, que muitas e graves faltas esses deviam ter cometido a coberto das escuras águas para que Deus, assim, sem piedade, os deixasse morrer”. P. 275
“Repare-se que para que possa cumprir-se o destino de um encontro de umas pessoas com outras, é preciso que elas consigam encontrar-se num mesmo ponto e à mesma hora, o que custa não pouco trabalho, bastava que nos demorássemos, pouco que fosse, a olhar numa nuvem no céu, a escutar o canto duma ave, a contar as entradas e saídas de um formigueiro, ou, pelo contrário, que por distração não olhássemos nem ouvíssemos nem contássemos e seguíssemos adiante, e lá se deitava a perder o que tão bem ensejado parecia, o destino é o mais difícil que há no mundo”. P. 320/321
“(...) pois já se sabe que as palavras proferidas pelo coração não têm língua que as articule, retém-nas um nó na garganta e só nos olhos é que se podem ler”. P. 331
“(...) o Diabo que se vá embora, se quiser, de qualquer modo já tem garantida a sua parte, e se os benefícios forem proporcionais, como parece justo, quanto mais Deus crescer, mais crescerá o Diabo.
- Fico, disse o Pastor, era a sua primeira palavra desde que se tinha anunciado. Fico, repetiu, e depois, Posso eu próprio ver algumas coisas do futuro, mas o que nem sempre consigo é distinguir se é verdade ou mentira o que julgo ver, quer dizer, às minhas mentiras vejo-as como o que são, verdades de mim, porém nunca sei até que ponto são as verdades dos outros mentiras deles”. P. 378

“(...) segundo aquela lei não escrita que manda acreditar só no que se vê, embora, já se sabe, não vejamos sempre, nós, homens, as mesmas coisas da mesma maneira, o que, aliás, se tem mostrado excelente para a sobrevivência e relativa sanidade mental da espécie”. P. 378

“- Disse Jesus, Estou à espera.
- De quê? Perguntou Deus, como se estivesse distraído.
- De que me digas quanto de morte e de sofrimento vai custar a tua vitória sobre os outros deuses, com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em teu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros?
- Insistes em querer sabê-lo?
- Insisto.
- Pois bem, edificar-se-á a assembléia de que te falei, mas os cavoucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas”. P. 380/381

“Como foi que aconteceu é uma idéia que sempre nos acode diante do que já não tem remédio, perguntar aos outros como foi, desesperada e inútil maneira de distrair o momento em que iremos ter de aceitar a verdade, é isso, queremos saber como foi, e é como se pudéssemos ainda pôr no lugar da morte, a vida, no ligar do que foi, o que poderia ter sido”. P. 427

“- Que quer Deus afinal? Perguntou João.
- Quer uma assembléia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo pra si. Disse Jesus
- Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre? Perguntou Tomé”. P. 435

Um comentário:

Rafael Alexandre disse...

Um dos meus livros favoritos, e isso não é só da boca pra fora... Acredito que ele deve ser lido junto com o último livro do mestre, Caim, devido a tematica semelhante e complementar, tal qual o Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez. A cena em que jesus caminha na água, reconhece que o diabo e deus têm a mesma aparência - com a mínima diferença da barba - tem uma sequência de dialogos que eu nunca conheci parecido na literatura. Uma obra surpreendente e, na minha opinião, cem vezes mais inspiradora que a bíblia...